Você
leu um texto meu em que eu falava sobre as múltiplas utilidades das
vacas. De fato, das vacas se aproveita tudo. Quem tem um rebanho de
vacas tem o futuro garantido. Razão por que, em tempos idos, se
media a riqueza de uma pessoa pela quantidade de cabeças de gado que
possuía. Primeiro, é o leite. Do leite, o queijo, a manteiga, o
requeijão, a ricota, a coalhada, o iogurte, o doce de leite, os
sorvetes, os bolos. Seguindo o leite, a utilidade da carne:
churrascos, bifes, assados, caldos, pastéis, picadinhos, sanduíches,
etc. A carne, como se sabe, tem também uma utilidade médica: um
bife cru aplicado sobre um hematoma, diz-se, tem um poder curativo. E
aqui, bem baixinho, se vocês não leram o livro Portnoy’s
Complaint [A queixa de Portnoy], de Philip Roth –, leiam-no
para dar risadas e para aprender sobre um uso erótico inominável
que Portnoy dava aos bifes que posteriormente seriam comidos pela
família. Há também a utilidade do couro: couro decorativo, como
tapete; couro para fazer roupa; couro para fazer cabrestos; couro
para fazer escudos de guerra, nos tempos antigos; couro para fazer
sapatos, pastas, botas, móveis; couro para fazer chicotes. A
utilidade dos chifres, que se usam como instrumentos musicais,
berrantes, para fazer botões, para fazer taças de guerreiros
ferozes. Não sei as razões das expressões “chifrudo”, “pôr
chifre”. Até a bosta das vacas é útil, como se sabe. Pois,
usadas como esterco, delas pode nascer a beleza delicada das flores.
E um amigo meu, já encantado, o Geraldo Jurgensen, usou pizzas de
bosta de vaca secas, depois de escovadas e pintadas a spray
dourado, para fazer móbiles levíssimos para decoração de loja
grã-fina no shopping... Tudo isso você entendeu.
Mas
eu disse que das vacas também se faz sabão. Isso você não
entendeu. O que revela sua pouca idade e o fato de você não ter
vivido na roça, em lugares de fogão de lenha. O sebo da vaca, que
você pede que o açougueiro tire, era cuidadosamente guardado
embaixo do fogão. Ele era matéria-prima para a feitura do famoso
sabão preto (que alguns afirmam ter propriedades embelezadoras). Era
assim que se fazia. Numa lata de querosene de 18 litros, na qual se
faziam alguns furos a prego no fundo, se colocava a cinza retirada do
fogão. A cinza era impiedosamente pilada por meio de um pilão, até
ficar dura como pedra. Então, diariamente, se colocava um pouquinho
de água sobre a cinza. A água filtrava e pingava, através dos
furos, num prato. O líquido era negro como café, conhecido por
“diquada” (esse nome não se encontra no Aurélio). Segundo me
disseram, esse líquido continha potássio, de propriedades
detergentes. Aí se ajuntavam, num tacho enorme de cobre, o sebo e a
“diquada” e se acendia um fogaréu embaixo. A coisa ia
derretendo, misturando, fervendo, bolhas infernais estourando, a
poção sendo mexida com uma longuíssima colher de pau, para evitar
que os estouros das bolhas caíssem na pele. Ao final, esfriada a
pasta negra, ela era enrolada em forma e tamanho de laranjas e
embrulhada em palha de milho. Esse sabão era parte importantíssima
do uso e da economia de qualquer casa de antigamente.
Uma
vez, visitando a aldeia de Salem, nos Estados Unidos – aquela da
caça às bruxas –, encontrei-me com uma reprodução da aldeia dos
primeiros colonizadores ingleses que vieram para a América do Norte.
Do jeito mesmo como viviam. Pois, num canto, estava a sua fabriqueta
de sabão, que era igualzinha àquela que havia na minha casa.
Se
os fabricantes modernos de sabão ainda usam sebo de vaca, não sei.
Mas o cheiro que se sente ao passar perto de suas fábricas me cria
suspeitas. Quem sabe, o delicado e perfumado sabonete que você usa
para aveludar a sua cútis é feito com sebo de vaca?
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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