domingo, 17 de dezembro de 2023

Guerra, a guerra, muita guerra


[…]
O lugar onde esbarramos, no E-Já, era logo depois da ponte de pau, que estando esburacada! atravessamos mais em baixo, mau vau, por espirro de águas e escorrego em lisas pedras soltadas, no ribeirão lajeal. Ter, lá, ainda não tinha ninguém; até me deu desengano. Mas tudo, no redor, era verde capim em beira fresca, aguada e pastos bons. Atrevi que quis! ― E Joca Ramiro? Mas Diadorim se compôs! ― Agora, aqui, Riobaldo, é o ponto! inimigo vindo, morremos; mas nem um bebelo não tem licença quieta de passar! Diadorim a tanto impante, eu debiquei! ― Ah, me importa! Não é o que é se ver Joca Ramiro? Pois eu estou vendo. ― Rezinga não, Riobaldo. A horas destas, Joca Ramiro deve de estar investindo aqueles, e tudo destralhado vencendo... ― foi o que ele perfez. Atrás disso, eu em ojeriza! ― Você sabe, hem, sabe. Os grandes segredos... ― fui falei. Mas, em passos desses, Diadorim sempre me apeava. Como o que reprovou! ― Sei de nada. Sei o que você pode saber também, Riobaldo. Mas conheço Joca Ramiro, sozinho que pensa as partes. Conheço Sô Candelário ― que só comparece é em fecho de forte decisão...
Ao que era. Nos dias em que tivemos de montar guarda nos lajeiros e lajeados, aprendi os rasgos daquele homem. Sô Candelário ― como vou explicar ao senhor? Ele era um. Acho que nem dormia, comia o nada, nada, às pressas, pitava o tempo todo. E olhava para os horizontes, sem paciência neles, parecia querer mesmo: guerra, a guerra, muita guerra. Donde ele era, donde vindo? Me disseram: desses desertos da Bahia. Passava, não me olhava. Ocasião, então, Diadorim a ele me mostrou: ― Este é o meu amigo Riobaldo, chefe... Aí, Só Candelário me divisou, sempre me viu. Rir sorrir ele não sabia ― mas sossegava um modo nos olhos, que tomavam um sério bom, por um seu instante, apagando de serem aqueles olhos encarniçados: e isso figurava de ser um riso. Que conhecia Diadorim, e prezando muito, desde vi. ― Riobaldo, Tatarana, eu sei... ― ele falou ― Tu atira bem, tem o adestro darmas... E foi andando; acho que dele ainda ouvi: ... amizade nas festas...? Conseguia nem ficar parado. E, por um ponto ou outro, que eu não divulguei bem, ele tinha algum estilo de ar de parecença com o próprio Zé Bebelo.
Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por que? Digo ao senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que eram mais velhos. Lepra ― mais não se diz: aí é que o homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de que? Disso é que decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de ideia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios ― acordava com o propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para a beira do córrego ia indo, nú, nú, feito perna de jaburú. Aos dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Sô Candelário é o que mais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava. Dôido, era? Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.
Tanto que o inimigo não dava de vir, pois bem a gente ficava em nervosias. Alguns, não. Feito aquele Luzié, que cantava sem mágoas, cigarra de entre-chuvas. As vezes, pedi que ele cantasse para mim os versos, os que eu não esqueci nunca, formal, a canção de Siruiz. Adiantes versos. E, quando ouvindo, eu tinha vontade de brincar com eles. Minha mãe, ela era que podia ter cantado para mim aquilo. A brandura de botar para se esquecer uma porção de coisas ― as bestas coisas em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão, mas sem fidalguia. Diadorim, quando cuidava que sozinho estivesse, cantarolava, fio que com boa voz. Mas, próximo da gente, nunca que ele queria. A ver que também fiquei sabendo que os outros não consideravam naqueles versos de Siruiz a beleza que eu achava. Nem Diadorim, mesmo. ― Você tem saudade de seu tempo de menino, Riobaldo? ― ele me perguntou, quando eu estava explicando o que era o meu sentir. Nem não. Tinha saudade nenhuma. O que eu queria era ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse possível. Por certo que eu já estava crespo da confusão de todos. Em desde aquele tempo, eu já achava que a vida da gente vai em êrros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava.
Ao do jeito de Só Candelário? Esse variava raja. ― Arre, que vê, estamos sem notícias, não sei... A notícia, a gente tem de ir por ela, mesmo entrar no mundo para se buscar! ― isso Só Candelário quase exclamava. Mandou três homens que saíssem a cavalo, estrada avante, até a uma légua, colher do que houvesse, espiar os espias. Me mandou, também. Mas, a bem dizer, fui eu quem quis: na hora, à frente dei o passo, olhei muito para ele, encarado. ― Tu Tatarana, vai... Quando ele falava Tatarana, eu assumia que ele estava sério prezando minha valia de atirador. Montei, fui trotando travado. Diadorim e o Caçanje iam já mais longe, regulado umas duzentas braças. Arte que perceberam que eu vinha, se viraram nas selas. Diadorim levantou o braço, bateu mão. Eu ia estugar, esporeei, queria um meio-galope, para logo alcançar os dois. Mas, aí, meu cavalo filosofou: refugou baixo e refugou alto, se puxando para a beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão. E o que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orêlhas dele. Do vento. Do vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe ― a briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o dóido espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me esperar chegar. ― Redemunho! ― o Caçanje falou, esconjurando. ― Vento que enviesa, que vinga da banda do mar... ― Diadorim disse. Mas o Caçanje não entendia que fosse! redemunho era dEle ― do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que pensei! o diabo, na rua, no meio do redemunho... Acho o mais terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca deve de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o Caçanje e Diadorim se riram também. Aí, tocamos.
Até à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de escadinhas. Nem pensei mais no redemoinho de vento, nem no dono dele ― que se diz ― morador dentro, que viaja, o Sujo! o que aceita as más palavras e pensamentos da gente, e que completa tudo em obra; o que a gente pode ver em folha dum espelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na barra dos riachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar. Como é que se podia trazer notícias, para Sô Candelário? Notícia é coisa que se tira, a desejo, do fim do sol? Lá tinha um capão-de-mato. Ou era mata, muito velha. Os coatís desciam espirrando, de sua sesta deles, nas árvores, e os jacús voavam para outras árvores, se empoleirando para o sono da noite, com um escarcéu de galinheiro. Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um aperto de desânimo de sina, vontade de morar em cidade grande. Mas que cidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo. Assim eu aproveitei para olhar para a banda de donde ainda se praz qualquer luz da tarde. Me lembro do espaço, pensamentos em minha cabeça. O riacho cão, lambendo o que viesse. O coqueiro se mesmando. A fantasia, minha agora, nesta conversa ― o senhor me atalhe. Se não, o senhor me diga! preto é preto? branco é branco? Ou! quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade. Noitezinha, viemos. Primeira coruja que a ãoar, eu era capaz de acertar nela um tiro.
Mas Só Candelário não era tolo nas meças. No outro dia, notícias tivemos. E que! Dalí a lá, as notícias todas andaram de vir, em lote e réstia. Um Sucívre, que fino chegou, esgalopado. Disse: ― Nhó Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado. Titão Passos pegou trinta e tantos deles, num bom combate, no esporão da serra... Os bebelos se desabelhavam zuretas, debaixo de fatos machos e zúo de balas. A tanto, a gente em festa se alegrava. Só Candelário subiu no jirau de varas ― que tinha mandado fazer, nele era que dormia sem repousar ― e assim espiou esquecido tempo, espiava as paradas distâncias, feito um gavião querendo partir em vóo. Agora, era a guerra, mesmo, estariam rompendo as alelúias, lá por lá. Donde, daí, veio o Adalgizo: ― Seó Hermógenes passou, obra de seis léguas, vai dar combate... Nossa hora de fogo estava perto. Assim os bebelos tinham de passar de fugida por ali no E-Já, rèsvés. Só Candelário chega exclamava, chorava: dizia que nunca tinha chefiado pessoal tão valente feito nós, com tantas capacidades. E queria, logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horas tocaiadas; e de noite com um olho só se ia dormir, que das armas não se largava. A redobrar as sentinelas, em ave-marias e alvorada. Combate vem é feito raio cai. Tudo era alarme dado, cuquiada: um ponta-pé em tição, o punhado de terra jogado para apagar as fogueiras, de repente, e se assobiava cruzado. Vez, deram até tiros: mas nada não era, só um boi loango, com muita fome e pouco sono, que veio sozinho pastando e deu a cara comprida, ali foras d hora, no capinzal bom. ― Tudo que é estúrdio comparece em tempo de guerra...Vote, vais! ― algum disse. E teve gente que se riu disso, até à beira da madrugada. Daquilo tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar graça no dessossego. Aprendi a medir a noite em meus dedos. Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aos goles, dormida com a gente encostado em coronha de sua arma. O que carece é a companheiragem de todos no simples, assim irmãos. Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem. Sô Candelário era o chefe ao meu gosto, como eu imaginava. Ah, e Joca Ramiro?
Antes foi uma coisa acontecida repentina! aquele alvoroço, na cavalhada geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro! ― Joca Ramiro! ― se gritava. Sô Candelário pulou em sela, assim como ele sempre era! mola de aço. Deu um galope, em encontro. Nós todos, de começo, ficamos atarantados. Vi um sol de alegria tanta, nos olhos de Diadorim, até me apoquentou. Eu tinha ciúme? ― Riobaldo, tu vai ver como ele é! ― Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia uma criança pequena, naquela bela resumida satisfação. Como era que eu ia poder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a toda cavaleirama chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manos-velhos baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente, saudavam. E Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco ― cavalo que me olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito. Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem pousar os olhos. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse, cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem tristeza. Uma voz que continuava.
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Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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