[…]
O
lugar onde esbarramos, no E-Já, era logo depois da ponte de pau, que
estando esburacada! atravessamos mais em baixo, mau vau, por espirro
de águas e escorrego em lisas pedras soltadas, no ribeirão lajeal.
Ter, lá, ainda não tinha ninguém; até me deu desengano. Mas tudo,
no redor, era verde capim em beira fresca, aguada e pastos bons.
Atrevi que quis! ― E Joca Ramiro? Mas Diadorim se compôs! ―
Agora, aqui, Riobaldo, é o ponto! inimigo vindo, morremos; mas nem
um bebelo não tem licença quieta de passar! Diadorim a tanto
impante, eu debiquei! ― Ah, me importa! Não é o que é se ver
Joca Ramiro? Pois eu estou vendo. ― Rezinga não, Riobaldo. A horas
destas, Joca Ramiro deve de estar investindo aqueles, e tudo
destralhado vencendo... ― foi o que ele perfez. Atrás disso, eu em
ojeriza! ― Você sabe, hem, sabe. Os grandes segredos... ― fui
falei. Mas, em passos desses, Diadorim sempre me apeava. Como o que
reprovou! ― Sei de nada. Sei o que você pode saber também,
Riobaldo. Mas conheço Joca Ramiro, sozinho que pensa as partes.
Conheço Sô Candelário ― que só comparece é em fecho de forte
decisão...
Ao
que era. Nos dias em que tivemos de montar guarda nos lajeiros e
lajeados, aprendi os rasgos daquele homem. Sô Candelário ― como
vou explicar ao senhor? Ele era um. Acho que nem dormia, comia o
nada, nada, às pressas, pitava o tempo todo. E olhava para os
horizontes, sem paciência neles, parecia querer mesmo: guerra, a
guerra, muita guerra. Donde ele era, donde vindo? Me disseram: desses
desertos da Bahia. Passava, não me olhava. Ocasião, então,
Diadorim a ele me mostrou: ― Este é o meu amigo Riobaldo, chefe...
Aí, Só Candelário me divisou, sempre me viu. Rir sorrir ele não
sabia ― mas sossegava um modo nos olhos, que tomavam um sério bom,
por um seu instante, apagando de serem aqueles olhos encarniçados: e
isso figurava de ser um riso. Que conhecia Diadorim, e prezando
muito, desde vi. ― Riobaldo, Tatarana, eu sei... ― ele
falou ― Tu atira bem, tem o adestro darmas... E foi andando; acho
que dele ainda ouvi: ... amizade nas festas...? Conseguia nem ficar
parado. E, por um ponto ou outro, que eu não divulguei bem, ele
tinha algum estilo de ar de parecença com o próprio Zé Bebelo.
Mas
o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam e nela
falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E bebia, quase
constantemente, sua forte cachaça. Por que? Digo ao senhor: ele
tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele tinha adoecido
disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que eram mais
velhos. Lepra ― mais não se diz: aí é que o homem lambe a
maldição de castigo. Castigo, de que? Disso é que decerto sucedia
um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de ideia. Lepra demora
tempos, retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer
hora, aquilo podia variar de aparecer. Só Candelário tinha um
sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a
ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E
carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada.
Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios ―
acordava com o propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía
para lavar o corpo, em poço, para a beira do córrego ia indo, nú,
nú, feito perna de jaburú. Aos dava. Hoje, que penso, de todas as
pessoas Sô Candelário é o que mais entendo. As favas fora, ele
perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo,
do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só
dava resultado que mandava mortes, e matava. Dôido, era? Quem não
é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao
menos, ele, possuía o sabido motivo.
Tanto
que o inimigo não dava de vir, pois bem a gente ficava em nervosias.
Alguns, não. Feito aquele Luzié, que cantava sem mágoas, cigarra
de entre-chuvas. As vezes, pedi que ele cantasse para mim os versos,
os que eu não esqueci nunca, formal, a canção de Siruiz. Adiantes
versos. E, quando ouvindo, eu tinha vontade de brincar com eles.
Minha mãe, ela era que podia ter cantado para mim aquilo. A brandura
de botar para se esquecer uma porção de coisas ― as bestas coisas
em que a gente no fazer e no nem pensar vive preso, só por precisão,
mas sem fidalguia. Diadorim, quando cuidava que sozinho estivesse,
cantarolava, fio que com boa voz. Mas, próximo da gente, nunca que
ele queria. A ver que também fiquei sabendo que os outros não
consideravam naqueles versos de Siruiz a beleza que eu achava. Nem
Diadorim, mesmo. ― Você tem saudade de seu tempo de menino,
Riobaldo? ― ele me perguntou, quando eu estava explicando o que era
o meu sentir. Nem não. Tinha saudade nenhuma. O que eu queria era
ser menino, mas agora, naquela hora, se eu pudesse possível. Por
certo que eu já estava crespo da confusão de todos. Em desde aquele
tempo, eu já achava que a vida da gente vai em êrros, como um
relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida
devia de ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com
forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu
achava.
Ao
do jeito de Só Candelário? Esse variava raja. ― Arre, que vê,
estamos sem notícias, não sei... A notícia, a gente tem de ir por
ela, mesmo entrar no mundo para se buscar! ― isso Só Candelário
quase exclamava. Mandou três homens que saíssem a cavalo, estrada
avante, até a uma légua, colher do que houvesse, espiar os espias.
Me mandou, também. Mas, a bem dizer, fui eu quem quis: na hora, à
frente dei o passo, olhei muito para ele, encarado. ― Tu Tatarana,
vai... Quando ele falava Tatarana, eu assumia que ele estava sério
prezando minha valia de atirador. Montei, fui trotando travado.
Diadorim e o Caçanje iam já mais longe, regulado umas duzentas
braças. Arte que perceberam que eu vinha, se viraram nas selas.
Diadorim levantou o braço, bateu mão. Eu ia estugar, esporeei,
queria um meio-galope, para logo alcançar os dois. Mas, aí, meu
cavalo filosofou: refugou baixo e refugou alto, se puxando para a
beira da mão esquerda da estrada, por pouco não deu comigo no chão.
E o que era, que estava assombrando o animal, era uma folha seca
esvoaçada, que sobre se viu quase nos olhos e nas orêlhas dele. Do
vento. Do vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe ― a
briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o dóido
espetáculo. A poeira subia, a dar que dava escuro, no alto, o ponto
às voltas, folharada, e ramarêdo quebrado, no estalar de pios
assovios, se torcendo turvo, esgarabulhando. Senti meu cavalo como
meu corpo. Aquilo passou, embora, o ró-ró. A gente dava graças a
Deus. Mas Diadorim e o Caçanje se estavam lá adiante, por me
esperar chegar. ― Redemunho! ― o Caçanje falou, esconjurando. ―
Vento que enviesa, que vinga da banda do mar... ― Diadorim disse.
Mas o Caçanje não entendia que fosse! redemunho era dEle ―
do diabo. O demônio se vertia ali, dentro viajava. Estive dando
risada. O demo! Digo ao senhor. Na hora, não ri? Pensei. O que
pensei! o diabo, na rua, no meio do redemunho... Acho o mais
terrível da minha vida, ditado nessas palavras, que o senhor nunca
deve de renovar. Mas, me escute. A gente vamos chegar lá. E até o
Caçanje e Diadorim se riram também. Aí, tocamos.
Até
à barra dos dois riachos, onde tem a cachoeira de escadinhas. Nem
pensei mais no redemoinho de vento, nem no dono dele ― que se diz ―
morador dentro, que viaja, o Sujo! o que aceita as más palavras e
pensamentos da gente, e que completa tudo em obra; o que a gente pode
ver em folha dum espelho preto; o Ocultador. Ao então, chegamos na
barra dos riachinhos, na cachoeira; ficamos lá até o sol entrar.
Como é que se podia trazer notícias, para Sô Candelário? Notícia
é coisa que se tira, a desejo, do fim do sol? Lá tinha um
capão-de-mato. Ou era mata, muito velha. Os coatís desciam
espirrando, de sua sesta deles, nas árvores, e os jacús voavam para
outras árvores, se empoleirando para o sono da noite, com um
escarcéu de galinheiro. Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um
aperto de desânimo de sina, vontade de morar em cidade grande. Mas
que cidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo. Assim eu
aproveitei para olhar para a banda de donde ainda se praz qualquer
luz da tarde. Me lembro do espaço, pensamentos em minha cabeça. O
riacho cão, lambendo o que viesse. O coqueiro se mesmando. A
fantasia, minha agora, nesta conversa ― o senhor me atalhe. Se não,
o senhor me diga! preto é preto? branco é branco? Ou! quando é que
a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade. Noitezinha,
viemos. Primeira coruja que a ãoar, eu era capaz de acertar nela um
tiro.
Mas
Só Candelário não era tolo nas meças. No outro dia, notícias
tivemos. E que! Dalí a lá, as notícias todas andaram de vir, em
lote e réstia. Um Sucívre, que fino chegou, esgalopado. Disse: ―
Nhó Ricardão deu fogo, no Ribeirão do Veado. Titão Passos pegou
trinta e tantos deles, num bom combate, no esporão da serra... Os
bebelos se desabelhavam zuretas, debaixo de fatos machos e zúo de
balas. A tanto, a gente em festa se alegrava. Só Candelário subiu
no jirau de varas ― que tinha mandado fazer, nele era que dormia
sem repousar ― e assim espiou esquecido tempo, espiava as paradas
distâncias, feito um gavião querendo partir em vóo. Agora, era a
guerra, mesmo, estariam rompendo as alelúias, lá por lá. Donde,
daí, veio o Adalgizo: ― Seó Hermógenes passou, obra de seis
léguas, vai dar combate... Nossa hora de fogo estava perto. Assim os
bebelos tinham de passar de fugida por ali no E-Já, rèsvés. Só
Candelário chega exclamava, chorava: dizia que nunca tinha chefiado
pessoal tão valente feito nós, com tantas capacidades. E queria,
logo, logo, o inimigo vindo. Todas as horas tocaiadas; e de noite com
um olho só se ia dormir, que das armas não se largava. A redobrar
as sentinelas, em ave-marias e alvorada. Combate vem é feito raio
cai. Tudo era alarme dado, cuquiada: um ponta-pé em tição, o
punhado de terra jogado para apagar as fogueiras, de repente, e se
assobiava cruzado. Vez, deram até tiros: mas nada não era, só um
boi loango, com muita fome e pouco sono, que veio sozinho pastando e
deu a cara comprida, ali foras d hora, no capinzal bom. ― Tudo que
é estúrdio comparece em tempo de guerra...Vote, vais! ― algum
disse. E teve gente que se riu disso, até à beira da madrugada.
Daquilo tudo eu gostei, gostava cada dia mais. Fui aprendendo a achar
graça no dessossego. Aprendi a medir a noite em meus dedos. Achei
que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que vem, de mansinho,
com uma risada boa, cachaça aos goles, dormida com a gente encostado
em coronha de sua arma. O que carece é a companheiragem de todos no
simples, assim irmãos. Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma
formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem. Sô
Candelário era o chefe ao meu gosto, como eu imaginava. Ah, e Joca
Ramiro?
Antes
foi uma coisa acontecida repentina! aquele alvoroço, na cavalhada
geral. Aí o mundo de homens anunciando de si e sobre o vasto
chegando, da banda do Norte. Joca Ramiro! ― Joca Ramiro! ― se
gritava. Sô Candelário pulou em sela, assim como ele sempre era!
mola de aço. Deu um galope, em encontro. Nós todos, de começo,
ficamos atarantados. Vi um sol de alegria tanta, nos olhos de
Diadorim, até me apoquentou. Eu tinha ciúme? ― Riobaldo, tu vai
ver como ele é! ― Diadorim exclamou, se abraçou comigo. Parecia
uma criança pequena, naquela bela resumida satisfação. Como era
que eu ia poder raivar com aquilo? E, no abre-vento, a toda
cavaleirama chegando, empiquetados, com ferragem de cascos no
pedregulho. Eram de ser uns duzentos, quase tudo manos-velhos
baianos, gente nova trazida. Gritavam vivas para a gente, saudavam. E
Joca Ramiro. A figura dele. Era ele, num cavalo branco ― cavalo que
me olha de todos os altos. Numa sela bordada, de Jequié, em lavores
de preto-e-branco. As rédeas bonitas, grossas, não sei de que
trançado. E ele era um homem de largos ombros, a cara grande, corada
muito, aqueles olhos. Como é que vou dizer ao senhor? Os cabelos
pretos, anelados? O chapéu bonito? Ele era um homem. Liso bonito.
Nem tinha mais outra coisa em que se reparar. A gente olhava, sem
pousar os olhos. A gente tinha até medo de que, com tanta aspereza
da vida, do sertão, machucasse aquele homem maior, ferisse,
cortasse. E, quando ele saía, o que ficava mais, na gente, como
agrado em lembrança, era a voz. Uma voz sem pingo de dúvida, nem
tristeza. Uma voz que continuava.
[…]
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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