quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O Azarão | 9


No domingo, Rube voltou a perder de lavada era campo, o time de Steve perdeu sem ele, e eu perambulei um pouco pelas ruas. Não estava com vontade de voltar para casa naquele dia. Algumas vezes, você simplesmente não tem vontade, sabe? Era hora de esclarecer umas coisas.
Primeiro, deixei que os terríveis acontecimentos da véspera nublassem meu caminho enquanto andava. Andei além do Lumsden Oval, me aprofundando na cidade, e preciso lhe dizer que tinha tanta gente esquisita que, quando cheguei em casa, me sentia realmente satisfeito por voltar.
Estava usando jeans e botinas, tinha tomado banho de manhã e, na verdade, lavado o cabelo. Enquanto caminhava, ainda sentia o cabelo arrepiando de maneira incontrolável, como se fizesse isso para me expor. Mesmo assim, eu me sentia bem por estar limpo.
Talvez o coroa esteja certo pensei comigo mesmo. Toda aquela ladainha que ele repete de que somos sujos, uma vergonha... Acho que é bom estar limpo.
As lojas de sempre ficaram para trás quando passei. Sorveterias. Lanchonetes. Também passei por uma barbearia, e lá tinha um careca cortando o cabelo de um cara de um jeito tão feroz que me deu medo. Sempre vejo uma coisa assim, um tipo de maldade contra um ser humano que só pode me fazer cair ou tropeçar com uma surpresa cruel. Ou ficar inquieto. Naquele dia, lembro que isso me fez tentar convencer o cabelo a baixar, mas imediatamente ele voltou a ficar espetado.
No fim das contas, o dia e a caminhada não foram o sucesso nem a renovação que eu estava procurando.
Continuei andando.
Você já fez isso? Só andar.
Só andar, sem ideia de aonde vai chegar? Não era uma sensação boa, mas também não era ruim. Eu me senti preso e livre, ao mesmo tempo, como se eu mesmo fosse a única pessoa que não me permitisse ser grande ou infeliz. Como sempre, o trânsito ecoava a meu redor, aumentando a sensação de que eu não pertencia a lugar nenhum. Nada era fixo. Tudo se movia. Se transformava em alguma coisa. Igualzinho a mim.
Desde quando eu tinha algo dentro de mim para uma garota? Desde quando me importava com minha irmã e com o que acontecia na vida dela? Desde quando ligava para o que Rube tinha na cabeça? Desde quando ouvia Steve Bem-Sucedido e me importava se ele olhava ou não de cara feia? Desde quando ficava andando sem rumo? Caminhando, quase vagando, pelas ruas? Então me dei conta.
Eu estava só.
Eu estava só.
Não dava pra negar.
Tinha certeza.
Sabe, eu nunca fui um cara com um monte de amigos. Além do Greg Fienni, nunca tive realmente amigos. Meio que fiquei na minha. Odiava isso, mas também me orgulhava.
Cameron Wolfe não precisava de ninguém. Não precisava estar no meio do bando. Nem todo mundo gosta de andar por aí. Não, precisava apenas do instinto. Precisava apenas era dele mesmo, e poderia sobreviver às lutas de boxe no quintal de casa, aos roubos e a qualquer outra vergonha que viesse pela frente. Então, por que me sentia tão estranho agora? Vamos ser sinceros. Tinha que ser por causa da garota.
Tinha que ser.
Não.
Era por causa de tudo.
Era a minha vida.
Estava ficando complicada.
Minha vida, e, enquanto caminhava ao longo da rua agitada, vi o céu acima de mim. Vi os edifícios, os apartamentos caindo aos pedaços, uma tabacaria cheia de fuligem, outra barbearia, fios elétricos, lixo nas sarjetas. Um morador de rua me pediu dinheiro, mas eu não tinha. A cidade estava à minha volta, inspirando e expirando como os pulmões de um fumante.
Quase de imediato, parei de caminhar quando percebi que toda aquela sensação boa tinha desaparecido de mim. Talvez tivesse saído de mim para ser dada ao morador de rua. Talvez tivesse desaparecido em alguma parte do meu estômago e eu nem tivesse percebido. Tudo o que havia agora era essa ansiedade que eu não podia explicar.
Que visão. Que sensação. Era terrível: um garoto muito magro, parado, sozinho. Essa era a conclusão. Sozinho, e não me sentia preparado para lidar com isso. Muito de repente. Sim, de repente, não me senti como se pudesse lidar com meu sentimento de solidão.
Era assim que ia ser para sempre? Eu sempre ia viver com esse tipo de falta de confiança em mim mesmo, de dúvida em relação à civilização à minha volta? Eu sempre ia me sentir tão pequeno que ia doer, e que mesmo o grito mais alto, rugindo da minha garganta, era, na verdade, apenas um lamento? Será que meus passos sempre iam parar de modo tão súbito e afundar no caminho? Eu ia sempre? Eu ia? Ia? Era terrível, mas ergui os pés e continuei andando. Não pense, falei para mim mesmo. Não pense em nada. Porém, mesmo o nada era alguma coisa. Era um pensamento.
Era um pensamento, e as sarjetas ainda estão cheias das entranhas inchadas e soltas da cidade Eu não me achava capaz de lidar com isso, mas caminhei sem prestar atenção, tentando desencavar uma nova ideia que faria as coisas melhorarem de novo.
Você não pode se preocupar assim, aconselhei a mim mesmo um pouco mais tarde, quando cheguei à Central Station. Parei perto de uma banca de jornal durante um tempo, olhando a Rolling Stone e todo tipo de coisas. Era perda de tempo, claro, mas, de qualquer forma, fiz isso. Se tivesse dinheiro comigo, teria entrado num trem e ido até o cais, só para dar uma olhada na ponte, na água e nos barcos por lá. Talvez houvesse um mendigo lá ou algum outro pobre-diabo a quem eu não pudesse dar dinheiro, de qualquer forma, porque não tinha nada comigo.
Mas, então, se tivesse dinheiro para o trem, talvez tivesse para dar ao pobre artista de rua. Talvez pudesse dar uma volta de barca pelo porto. Talvez. Talvez…
A palavra talvez estava começando a me irritar, porque a única coisa certa era que talvez me acompanhasse para sempre.
Talvez a garota tivesse algo dentro dela para mim.
Talvez Sarah e Bruce ficassem bem.
Talvez Steve voltasse para o trabalho e para o campo de jogo tão rápido quanto queria. Talvez, um dia, não olhasse de cara feia para mim.
Talvez o coroa sentisse orgulho de mim um dia, talvez, quando a gente terminasse o serviço dos Conlon.
Talvez minha mãe não tivesse que ficar na frente do fogão, à noitinha, preparando cogumelos e salsichas, depois de trabalhar o dia inteiro.
Talvez eu pudesse cozinhar.
Talvez Rube me dissesse uma noite dessas o que se passava na cabeça dele. Ou talvez deixasse a barba crescer até o pé e virasse um tipo de sábio.
Talvez eu acabasse fazendo alguns amigos uma hora dessas.
Talvez tudo isso acabasse amanhã.
Talvez não.
Talvez só tivesse que andar um pouco mais, até o Circular Quay, pensei, mas decidi que não, pois uma coisa que não era só um talvez era que mamãe e papai iam acabar comigo, se eu me atrasasse.
Depois de ouvir o cara do alto-falante dizer cinquenta vezes: "O trem na plataforma dezessete vai para MacArthur" ou outro lugar qualquer, voltei para casa, vendo todas as minhas dúvidas pelo outro lado. Você já viu dessa forma? Como quando se está de férias. Na volta para casa, tudo está igual, mas parece um pouco diferente do que era no caminho. É porque você está vendo de trás para a frente.
É assim que as coisas são, e, quando voltei para casa, fechei o pequeno portão principal, meio quebrado, que não fechava direito, entrei e me sentei no sofá. Perto da almofada fedida. Na frente do Steve.
Depois de meia hora da reprise de Agente 86 e de uma parte do noticiário, Rube entrou na sala. Sentou, olhou para o relógio e comentou: — Que droga, a mamãe está mesmo atrasada com o jantar.
Olhei para ele.
Talvez eu o conhecesse.
Talvez não.
Eu conhecia o Steve, porque ele era menos complicado. Os vencedores sempre são. Sabem exatamente o que querem e como vão conseguir.
Desde que não seja o de sempre — falei em voz alta para Rube.
O quê? — O jantar de sempre.
Ah, tá. — Fez uma pausa. — É só o que ela prepara, não é? Nesse momento, tenho que admitir que todas as queixas sobre o jantar me envergonham agora, sobretudo, por causa do modo como as pessoas nas ruas da cidade ficam pedindo comida. Mas é fato: eu me queixava.
Mesmo assim, fiquei nas nuvens quando descobri que não íamos ter cogumelos no domingo à noite.
Talvez as coisas finalmente melhorassem.
Ou, talvez, não.

Estou correndo.
Indo atrás de alguém que não parece existir, e, de vez em quando, digo a mim mesmo que estou atrás de nada. Digo a mim mesmo para parar, mas nunca paro.
A cidade é invadida à minha volta pela ampla luz do dia, mas não tem ninguém na rua.
Não tem ninguém nos edifícios, nem nos apartamentos, nem nas casas. Não tem ninguém em parte alguma. Os trens e ônibus se movem sozinhos. Sabem o que fazer. Expiram, mas nunca inspiram. É só um jorro contínuo de algo sem emoção, e estou só.
Tem Coca-Cola derramada na rua. Escorre para dentro dos bueiros feito sangue.
Ouvem-se as buzinas dos carros.
Os freios respiram ruidosamente, e então, os carros seguem adiante.
Caminho.
Ninguém.
Ninguém.
É estranho, penso, como tudo pode simplesmente seguir em frente sem todas as pessoas. Talvez as pessoas estejam lá, mas eu não possa vê-las. As vidas delas as varreram da minha visão. Pode ser que as almas vazias delas as tenham engolido.
Vozes.
Ouço vozes? Estou num cruzamento, um carro me acompanha, e sinto que alguém está olhando para mim, mas é o vazio que me encara. Quando o carro parte, ouço uma voz, que desvanece.
Corro.
Persigo o carro, ignorando os sinais barulhentos de "não atravesse" que piscam para mim e ressoam em meus ouvidos, caso eu seja cego.
Sou cego? Não. Eu vejo.
Continuo correndo, e toda a cidade passa correndo por mim como se eu fosse conduzido por uma força humano-alienígena. Esbarro em pessoas invisíveis e continuo correndo.
Estou vendo... carros, rua, poste, ônibus, faixa de pedestres, faixa contínua, cruzamento, atravesse, motor engasgando, não atravesse, poluição, sarjeta, não ultrapasse, sorveteria, loja de armas, facas baratas, reggae, discoteca, garotas ao vivo, outdoor da Calvin Klein com um homem e uma mulher de roupa íntima. Imenso. Fios, monotrilho, verde, amarelo, vermelho, todos os três, ande, pare, corra, corra, cruze, vire sempre à esquerda com cuidado, Howard Showers, bueiros, salve o Timor Leste, parede, janela, espírito, saí para o almoço, volto em cinco minutos.
Não havia tempo.
Corro até minha calça rasgar e meus sapatos serem apenas o peito do pé com um resto de material em volta dos tornozelos. Os dedões estão sangrando. Tento andar em meio à Coca-Cola e à cerveja. Respinga na minha perna e escorre.
Ninguém está lá.
Onde está todo mundo? Onde? Nenhum rosto, só movimento.
Caio. Estou exausto. Cabeça rachada na sarjeta. Acordado.
Mais tarde.
As coisas mudaram, e agora as pessoas estão em toda parte. Estão em toda parte onde devem estar: nos ônibus, nos trens, na rua.
Ei! — digo para o homem de terno que aguarda o sinal de pedestres. Ele age como se pudesse ter ouvido alguma coisa, mas segue em frente quando vê o sinal correto.
As pessoas vão direto até mim e posso jurar que estão tentando me pisotear.
Então, percebo.
Elas vão direto até mim porque não podem me ver.
Agora eu é que estou invisível.

Markus Zusak, in O Azarão

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