terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Hollywood | 31



O cara não apareceu para matar Jon na primeira noite. Na segunda, Jon tinha uma arma e esperou. O cara não apareceu. Às vezes aparecem, às vezes não.
Enquanto isso, Francine Bowers havia-se recuperado de sua operação.
Cinquenta dólares por dia, mais quarto e comida, é só o que posso dar a ela – disse Friedman a Jon.
Discutiram um pouco sobre o pagamento da vinda dela de avião, da Califórnia, mas a Firepower finalmente concordou em pagar.
Eu devia ser pago no primeiro dia de filmagem, e também Jon, mas nada aconteceu. A Firepower devia pagar a Jon e ele me pagar. Não houvera nada. Eu não tinha ideia se as outras pessoas da equipe estavam recebendo.
Talvez tenha sido por isso que decidi ir à Festa dos Distribuidores. Podia perguntar a Friedman onde andava meu dinheiro.
A festa foi numa sexta-feira à noite, no Lemon Duck, um lugar enorme e escuro, com um grande balcão de bar e muitas mesas. Quando Sarah e eu chegamos, a maioria das mesas já estava ocupada. Eram distribuidores do mundo todo. Pareciam calmos e quase entediados. Comiam ou faziam seus pedidos, sem falar muito, sem beber muito. Encontramos uma mesa num canto.
Jon Pinchot apareceu e nos localizou imediatamente. Veio até a nossa mesa, sorrindo.
É uma surpresa encontrar vocês aqui. As festas de distribuidores são horríveis... A propósito, eu tenho uma coisa...
Trazia o argumento num envelope azul e abriu-o.
Esta cena aqui, a gente precisa reduzir um minuto e meio. Pode fazer isso?
Claro. Mas escuta, pode arranjar uns drinques pra mim e Sarah?
É claro...
Jon tem razão – disse Sarah –, esta festa não parece muito animada.
Talvez a gente possa acrescentar alguma coisa a ela – eu disse.
Jon, não temos de ser sempre os últimos a sair da festa.
Mas, de algum modo, sempre somos...
Comecei a riscar diálogos. Meus personagens falavam demais. Todo mundo falava demais.
Jon voltava com os drinques.
Como vai indo?
Meus personagens falam demais...
E bebem demais também...
Não, jamais bebem demais. Jamais será o bastante...
Ouviram-se aplausos.
É Friedman – disse Sarah.
Lá vinha ele num terno velho, sem gravata, faltando o botão de cima da camisa, a camisa amassada. Friedman pensava em outras coisas além de dinheiro. Mas tinha um sorriso fascinante e os olhos olhavam direto as pessoas, como se ele as submetesse a raios x. Viera do inferno e ainda estava no inferno, e poria a gente no inferno se a gente lhe desse a mínima chance. Saiu de mesa em mesa, largando frasezinhas pequenas e precisas.
Veio até a nossa. Fez uma observação sobre a bela aparência de Sarah.
Veja – apontei o argumento sobre a mesa –, o filho da puta do Pinchot me faz TRABALHAR durante esta festa!
ÓTIMO – disse Friedman, e voltou-se e encaminhou-se para outra mesa.
Acabei os cortes e entreguei o argumento a Jon. Ele leu-o.
Está ótimo – disse. – Nada importante ficou de fora, e acho que a leitura é a mesma.
Talvez melhor.
Ouviram-se mais aplausos. Francine Bowers fazia sua entrada. Não era muito velha, mas pertencia à velha escola. Parou muito ereta (ereta como uma rainha), mexendo a cabeça lentamente para um lado e para outro, sorrindo, depois deixando de sorrir, depois sorrindo de novo. Hesitou e ficou ali parada. Permaneceu como uma estátua por dez segundos, depois avançou graciosamente pelo salão adentro. Isso valeu-lhe mais aplausos. Alguns flashes espocaram. Aí ela relaxou. Parava em algumas mesas para uma ou duas palavrinhas, depois ia em frente.
Nossa, pensei, e o escritor? O escritor era o sangue, os ossos e o cérebro (ou a falta do mesmo) daquelas criaturas. O escritor fazia bater seus corações, dava-lhes palavras para falar, fazia-os viver ou morrer, o que quisesse. E onde estava o escritor? Quem jamais fotografava o escritor? Quem aplaudia? Mas era melhor assim, porra: o escritor estava no seu lugar: num canto escuro, observando.
E aí, vejam só! Francine Bowers se aproximou da nossa mesa. Sorriu para Sarah e Jon, e falou comigo:
Escreveu aquela cena das pernas pra mim?
Francine, está lá. Vai ter de fazer elas brilharem.
Você vai ver. Minhas pernas são sensacionais!
Eu certamente espero que sim.
Ela se curvou para mim por sobre a mesa, deu seu belo sorriso, os olhos brilharam acima dos famosos pômulos altos.
Não se preocupe.
Preciso falar uma coisa com Friedman – disse Jon.
É – eu disse –, pergunte a ele sobre o pagamento.
Sarah e eu continuamos sentados a estudar a multidão. Ela era boa em festas. Indicava-me pessoas, falava-me delas. Eu via coisas que jamais teria notado. Punha a humanidade numa escala muito baixa, e preferia não tomar conhecimento dela. Mas Sarah a tornava um pouco mais interessante, o que eu agradecia.

A noite esvaía-se, e como sempre Sarah e eu não pedimos comida alguma. Comer era trabalho duro, e após dois ou três drinques a comida tornava-se insípida. Estranho como o vinho se tornava mais cálido e mais gostoso. Então, surgindo do nada, lá estava Jon Pinchot.
Olha – disse –, lá está um dos advogados de Friedman.
Ótimo – eu disse. – Vou lá. Por favor, vem comigo, Sarah...
Aproximamo-nos e sentamo-nos. O advogado já estava bem mamado. Tinha ao lado uma dona loura muito alta. Ela sentava-se rígida, como congelada. Tinha um pescoço longo, que se esticava muito, também rígido. Era doloroso olhá-la. Parecia congelada.
O advogado nos conhecia.
Ah, Chinaski – disse –, e Sarah...
Oi – disse Sarah.
Oi – disse eu.
Dissemos oi a Helga. Ela não respondeu. Estava congelada, sentada ereta na cadeira.
O advogado acenou pedindo alguns drinques. Apareceram duas garrafas. O negócio parecia bom. O advogado, Tommy Henderson, serviu.
Aposto que você não gosta de advogados – disse.
Como grupo, não.
Bem, eu sou um advogado às direitas, não sou nenhum escroque. Acha que porque eu trabalho pro Friedman estou a fim de foder todo mundo?
Acho.
Bem, não estou…
Tommy emborcou seu copo de vinho, serviu outro. Eu enxuguei o meu.
Vá com calma, Hank – disse Sarah –, a gente tem de voltar dirigindo.
Se eu ficar muito ruim a gente toma um táxi na volta. O advogado paga.
Certo, eu pago...
Bem, nesse caso... – Sarah virou seu copo de vez.
A dona alta e congelada continuava congelada. Era doloroso olhá-la. Tinha o pescoço tão longo e esticado que as veias saltavam – veias longas, duras e doloridas. Realmente terrível.
Minha esposa – disse o advogado – deixou de beber.
Oh, estou vendo... – eu disse.
Bom pra você – disse Sarah –, isso exige coragem, especialmente com pessoas bebendo em volta.
Eu não poderia fazer isso – eu disse. – A pior coisa do mundo é ficar sóbrio no meio de um bando de bêbados idiotas.
Eu acordei sozinha e nua uma manhã, às cinco horas, nas areias de Malibu. Foi o basta pra mim.
Bom pra você – eu disse. – É preciso raça pra cortar assim.
Não deixe ninguém te influenciar para o contrário – disse Sarah.
O advogado, Tommy Henderson, serviu novas doses para si mesmo, para Sarah e para mim.
Chinaski não gosta de mim – disse à sua esposa Helga. – Me acha um escroque.
Não censuro ele – disse Helga.
Oh, ééé, ééé? – disse o advogado. Virou a maior parte de sua bebida e me olhou. Fitou-me intensamente.
Você acha que eu sou um escroque?
Bem – eu disse –, eu disse provavelmente...
Acha que não vamos te pagar?
É o que estou sentindo…
Bem, escute, eu li a maioria de seus livros, que acha disso? Acho você um grande escritor. Quase tão bom quanto Updike.
Obrigado.
E, escute só isso, essa manhã eu pus todos os cheques no correio. Vocês vão receber. Vão receber seu dinheiro na próxima correspondência.
É verdade – disse Helga. – Eu vi ele pôr os cheques no correio.
Sensacional – eu disse. – Sabe, é apenas o devido...
Claro que é devido. A gente quer ser justo. Tivemos um problema de fluxo de caixa. Agora está resolvido.
Vai ser um bom filme – eu disse.
Eu sei. Li o argumento – disse Tommy. – Agora, está se sentindo melhor sobre tudo isso?
Diabos, sim.
Ainda me acha um escroque?
Bem, não, não posso.
Vamos beber a isso! – disse Tommy.
Encheu os copos e os levantamos num brinde. Quer dizer, Tommy, Sarah e eu.
A um mundo honesto – eu disse.
Tocamos os copos e bebemos de vez.
Notei que as veias no pescoço de Helga saltavam mais que nunca. Apesar disso, continuamos bebendo.
Conversamos bobagens. Grande parte era sobre a bravura de Helga.
Fomos os últimos a sair. Quer dizer, Helga, Tommy, Sarah e eu. Os dois últimos garçons lançaram-nos olhares muito feios quando saímos. Mas Sarah e eu estávamos acostumados a isso. E, com a máxima probabilidade, Tommy também. Helga encaminhou-se conosco para a saída, ainda rígida e sofredora. Bem, não ia ter ressaca pela manhã. Então, seria a nossa vez.

Charles Bukowski, in Hollywood

Nenhum comentário:

Postar um comentário