Imitou,
na água limpa, vezes sem conta, o arrependimento imprestável do
animal branco, porque o mataria sempre. Mataria, desimportado com sua
humilhação, seu desespero, súplica ou tristeza. Imitou o branco
assustado, distraído, dormindo, imbecil, mais assustado ainda,
ingénuo, doente, morto, acabado de morrer. Imitou o branco
humilhado, culpado, condenado, seu espírito desfeito para os
eternos, pedindo perdão, em pânico, morto, acabado de morrer. E ele
vendo sobre sua morte. Então, começava a cantar. Entoava:
cobra
amistosa, nosso sagrado igarapé, obrigado por tão grande ajuda.
O
feio branco mais cantava e ficava ansioso, pedindo a Meio da Noite
atenção e pressa.
O
grito de ferro era sem cuspe. Muito o observaram e tornava-se simples
entender que não cuspiria. Faltava sua flecha. Tomaram lanças e
lâminas. Tomaram pedras e venenos. Matariam o branco sem piedade.
Se
dormisse, não acordaria mais. Se olhasse para cima, seria cortado
por baixo. Se nadasse, afogaria sem poder atonar de novo. Se comesse,
entortaria de estômago pelo veneno. Se levantasse a cabeça, a
partiria numa pedra voando. Se chamasse por outro, a boca aberta
comeria a flecha. O branco não faria nada sem que resultasse na
morte. Quando o avistassem na mata, cada gesto do branco seria o
último e logo sobraria como uma carne atrapalhada no chão. Talvez
nem o quisessem levar ao coto da figueira, talvez nem o abrigassem.
Seria deixado sem dignidade para que a mata devorasse sem ritual nem
memória.
Os
feios subiam suas armas pelo corpo e debatiam como sairiam
imediatamente para a caça. Honra não perderia tempo. Ele próprio
se convencia de cheirar a fera inimiga. Era de nariz no ar, e Meio da
Noite entoava nada, só obedecendo. O guerreiro branco sacudindo os
braços, limpando da pele os insectos que nunca conseguia ver, e
apressando mais ainda, numa fúria que lhe trazia uma estranha
alegria. Mataria o animal. Tardaria nada a matar o animal.
Então,
feios também de suas pinturas de pior guerra, feios também de suas
piores fúrias, sentaram diante da Pedra Que Soa e a viam combinando
suas forças. Honra entoava:
somos
fortes como unos.
E
Meio da Noite respondia:
somos
juntos.
O
guerreiro branco acrescentava:
mataremos
o inimigo e faremos muita alegria, cantaremos, tocaremos as flautas,
dançaremos até ao amanhecer. Passaremos o cachimbo e seremos
celebrados pela comunidade.
O
negro calava. Outra vez se ausentava de quase não estar ali. Honra
precisava de o olhar duas vezes para estar certo de o ver. Voltava a
entoar:
cortarei,
pisarei, usarei o veneno em cima do corte, mesmo depois de pisar, e
depois de apedrejar e de abrir, eu vou ainda envenenar e cortar mais
por dentro para deitar logo metade das porcarias pelo chão, e talvez
corte imediato a cabeça, e mesmo cortada, eu vou envenenar.
Escorrerei por sua boca para que engula e morra mais ainda. Quero que
esteja muitíssimo mais morto do que apenas de cabeça cortada.
Sabes, irmão. Quero que esteja muitíssimo mais morto. Que seja o
animal mais morto de que alguma vez se escutou. Rezará a sua lenda
acerca do dobro da morte. Acerca do triplo da morte. Acerca do
absoluto da morte. Se o lembrarmos, será apenas para garantir que
nada nele vive. Nada. Que seja tão morto que ninguém o possa
lembrar nem que queira.
E
o negro respondeu:
por
corte nenhum mudarás tua pele. Melhor para te cobrir a pele é o
sentimento. Um sentimento melhor.
Honra
levantou e caminhou um pouco sem rumo. Era em redor do tronco onde
haviam sentado. Não queria dar sentido ao que o negro lhe ensinara e
era tão habitual não descodificar o que conversavam. Era
subitamente sem negro. Olhara. Estava ali ninguém. Pensou que alguma
coisa covarde se colocava entre os dois de cada vez que as palavras
se tornavam insuportáveis, tão absurdas ou verdadeiras, tão à
revelia de sua vontade. E ele chamou:
sagrado
Meio da Noite, onde estás.
E
sentou. Meio da Noite respondeu:
queria
saber o que o branco diria de teu rosto. Esse teu rosto igual. Queria
saber o que haverá no seu interior perante um filho.
E
Honra saltou alterado.
Filho
nenhum. Filho nenhum.
Berrou.
O
animal branco não teria conceito amoroso. Saberia nada sobre o
cuidado entre pais e filhos, o orgulho e a ternura. Como chorariam em
elogio mútuo. O guerreiro branco não queria ofender-se com o amigo
mas era-lhe ofensiva a ideia de ir ao encontro de um pai. Prepotente,
chefiou:
sigamos
para o areal. Sigamos às pirogas e naveguemos.
Quis
mover mas o corpo desobedeceu. Toda a sua pele poderia ser agora
tocada pelos bichos que jamais conseguira ver, retido que ficou ali
mesmamente sentado, atónito. Mais do que se coçar, arrepiou. Um
medo imediato o percorreu. Um medo triste.
Naquele
instante, Meio da Noite entoou:
vejo,
irmão. Vejo a Pedra Que Soa. Não apenas o que sabes ver também.
Vejo como se agiganta e quase retira o céu do lugar. Como existem no
alto aves bizarras ou são corpos de animais que não conhecemos. São
de pernas altas e balançam, como transparentes a brincar.
Observam-nos sempre sorrindo. Para os encantados, todos os caminhos
são para aquela salvação. E tomam sol. Estão frescos na brisa
levantada ao cimo, muito mais altos do que as copas mais altas da
mata. A Pedra Que Soa é para muito depois da altura da mata. Irmão,
é tão grande que quase vejo mais nada, como se o mundo inteiro
subisse do chão e fosse vertical. Eu vejo. Peço-te que não
comovas. Existi só para te conhecer. Eu existi só para te conhecer.
E assim é bom. É bom.
Honra
respondeu:
suplico
que não me deixes agora, que não desapareças na sombra mais
convicta, que não morras, não me abandones, não deixes de me
responder, não pares de entoar. Suplico, irmão negro, que sejas
alguém. Logo agora que sairei pelo mar em torno de nossas ilhas à
morte de meu inimigo. Suplico que feches os olhos e não vejas o que
juras estar a ver. A Pedra Que Soa é à disposição dos deitados a
encantar e tu não encantarás, estarás vivo e cheio de glória. Por
favor. Promete-me que vomitas o jacaré, berras vinte onças, acendes
a pele, mas não separas de mim, não separas de mim. Estaremos
diante de nosso inimigo e voltaremos com seu sangue, amados por todos
os nossos povos, como dizes. Eu, tu e nossos povos. Meio da Noite,
onde estás.
Meio
da Noite entoou:
aqui.
Estou aqui.
Honra
limpou o insecto que não viu em sua pele e mais suplicou:
toma
minha mão. Fecha os olhos. Verás apenas quando estivermos à
distância, encobertos pela mata, no outro lado, junto ao primeiro
mar para navegar as pirogas à morte do branco. Anda. Não vamos
comover. Vamos guerrear o pior que formos capazes.
Os
feios correram como puderam e Honra apertou a mão do negro para ter
a certeza de que o negro jamais sumiria e quis até que para toda a
vida assim ficassem. Que nada lhe tirasse aquele toque de verdade, o
tamanho do negro agarrado por si, em direcção a todas as coisas.
Honra quis que o negro não pudesse apartar. Pensou:
não
me morras, Meio da Noite. Sinto que és no meu lugar, confuso comigo,
por teus pulmões em parte respiro, por teus lábios em parte sorrio,
por tua paciência em parte medito. Minha inteligência, em parte, és
tu. Minha coragem em parte és tu. Sinto que há necessidade nenhuma
de sermos dois ou nenhuma possibilidade de prosseguirmos sozinhos.
Meio da Noite, não escureças que te apagues. Não desilumines que
te apagues. Não silencies que não te volte a escutar. Entoa, meu
irmão. Entoa por mim, por teus povos que precisam de ser contados,
precisam de ser amados na mais pura alegria de que formos capazes.
Meu irmão não deixes minha mão.
E
Honra entoou:
não
deixes minha mão. Segura com toda a força e corre. Não deixes
minha mão.
O
negro talvez tivesse sorrido. Alguma coisa na ternura de Honra se
tornava uma comunhão que fazia tudo ter valido a pena. Também o
guerreiro branco, sem maturidade para o entender logo então,
pressentia que jamais se perderiam por completo. Aquele sofrimento
valeria toda a pena.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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