Na
plateia achei o Lobo Neves, de conversa com alguns amigos; falamos
por alto, a frio, constrangidos um e outro. Mas no intervalo
seguinte, prestes a levantar o pano, encontramo-nos num dos
corredores, em que não havia ninguém. Ele veio a mim, com muita
afabilidade e riso, puxou-me a um dos óculos do teatro, e falamos
muito, principalmente ele, que parecia o mais tranquilo dos homens.
Cheguei a perguntar-lhe pela mulher; respondeu que estava boa, mas
torceu logo a conversação para assuntos gerais, expansivo, quase
risonho. Adivinhe quem quiser a causa da diferença; eu fujo ao
Damasceno que me espreita ali da porta do camarote.
Não
ouvi nada do seguinte ato, nem as palavras dos atores, nem as palmas
do público. Reclinado na cadeira, apanhava de memória os retalhos
da conversação do Lobo Neves, refazia as maneiras dele, e concluía
que era muito melhor a nova situação. Bastava-nos a Gamboa. A
frequência da outra casa aguçaria as invejas. E rigorosamente
podíamos dispensar-nos de falar todos os dias; era até melhor,
metia a saudade de permeio nos amores. Ao demais, eu galgara os
quarenta anos, e não era nada, nem simples eleitor de paróquia.
Urgia fazer alguma coisa, ainda por amor de Virgília, que havia de
ufanar-se quando visse luzir o meu nome... Creio que nessa ocasião
houve grandes aplausos, mas não juro; eu pensava em outra coisa.
Multidão,
cujo amor cobicei até à morte, era assim que eu me vingava às
vezes de ti; deixava burburinhar em volta do meu corpo a gente
humana, sem a ouvir, como o Prometeu de Esquilo fazia aos seus
verdugos. Ah! tu cuidavas encadear-me ao rochedo da tua frivolidade,
da tua indiferença, ou da tua agitação? Frágeis cadeias, amiga
minha; eu rompia-as de um gesto de Gulliver. Vulgar coisa é ir
considerar no ermo.
O
voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no meio de um mar de
gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se alheado,
inacessível, ausente. O mais que podem dizer, quando ele tomar a si,
– isto é, quando toma aos outros, – é que baixa do mundo da
lua; mas o mundo da lua, esse desvão luminoso e recatado do cérebro,
que outra coisa é senão a afirmação desdenhosa da nossa liberdade
espiritual? Vive Deus! eis um bom fecho de capítulo.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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