domingo, 31 de dezembro de 2023

As rãs | 9.




Minha tia entrou em nossa aldeia com uma grande força-tarefa de planejamento familiar. A chefe era ela, o vice-chefe era o vice-diretor do departamento de milícias da comuna. Também faziam parte Leoazinha e seis robustos milicianos. Vinham numa van com alto-falante, acompanhada de um possante trator de esteira.
Antes da chegada dessa força-tarefa, fui mais uma vez bater à porta do meu sogro. Dessa vez, ele fez a gentileza de me deixar entrar.
O senhor também serviu no Exército”, disse a ele, “sabe que uma ordem militar é como uma montanha vindo abaixo, não adianta resistir.”
O sogro fumava um cigarro, ficou quieto por um bom tempo e disse: “Já que você sabia que não iam deixá-la ter o bebê, por que engravidou minha filha? Já está com tantos meses de gravidez, como vai fazer o aborto? E se ela morrer? Essa é a única filha que eu tenho!”.
Mas não é culpa minha”, tentei explicar.
Se a culpa não é sua, então é de quem?”
Se alguém tem culpa nisso, é o filho da mãe do Yuan Bochecha, eu disse, “ele já foi levado pela polícia.”
Mas se acontecer qualquer coisa com a minha filha, vou te matar nem que isso me custe a vida.”
Minha tia diz que não tem problema”, expliquei, “diz que fez aborto até em mulher com sete meses de gravidez.”
Sua tia não é gente, é um demônio!”, disse minha sogra, surgida não sei de onde. “Quantas vidas ela já arruinou nesses anos todos? Está com as mãos sujas de sangue. Quando morrer, o rei do Inferno vai fazer picadinho dela!”
Por que se mete na nossa conversa?”, disse meu sogro. “Isto é assunto de homem.”
E como é que pode ser assunto de homem?”, ela gritou com voz estridente, “bem se vê que estão querendo empurrar minha filha para a porta do inferno, e ainda vem me dizer que isso é assunto de homem?”
Mãe, não vou discutir com a senhora. Pode chamar a Renmei? Quero conversar com ela”, eu disse
E por que acha que vai encontrar Renmei aqui? Ela é sua mulher e mora na sua casa. Ou será que você fez algum mal a ela? Eu é que devo te pedir para ir buscar minha filha!”
Renmei, sei que está me escutando”, gritei, “ontem fui conversar com minha tia, “disse a ela que estava pronto para deixar o Partido e o cargo, e voltar à lavoura, só para você ter esse filho. Mas minha tia disse que isso também não vai funcionar. O pessoal da província já sabe o que Yuan Bochecha fez, o distrito deu ordens expressas a minha tia para fazer o aborto de todas as mulheres que engravidaram ilegalmente.”
De jeito nenhum! Que sociedade é esta!” A sogra despejou sobre mim uma bacia de água suja, xingando. “Fale para aquela vadia da sua tia vir aqui, vou acabar com ela, nem que eu morra junto! Ela não consegue ter filho e fica com raiva, com inveja de quem tem.”
Encharcado de água suja, bati em retirada num estado de dar pena.

A van da força-tarefa estacionou na frente da casa do meu sogro. Praticamente qualquer um capaz de andar veio ver o que estava acontecendo. Nem a paralisia deteve Xiao Lábio Superior, que apareceu lá, de cara torta, apoiado numa bengala. Do alto-falante, saía uma voz cheia de entusiasmo e energia: “O planejamento familiar é uma grande prioridade, que diz respeito ao futuro do país e da nação… Para construir um país forte com as quatro modernizações, devemos fazer todo o possível para controlar o crescimento da população e melhorar sua qualidade… Quem engravidar de forma ilegal não deve confiar na sorte e tentar se safar… Nada escapa aos olhos das massas populares, mesmo que se esconda num buraco ou na mata fechada, não será capaz de escapar… Quem emboscar ou agredir um funcionário do planejamento familiar será punido como contrarrevolucionário em flagrante… Quem de alguma maneira sabotar os trabalhos de planejamento familiar, será rigorosamente punido conforme a disciplina do Partido ou a legislação nacional…”.
Minha tia ia na frente, o vice-diretor do departamento da milícia da comuna e Leoazinha vinham atrás dela, de escolta. O portão da casa do meu sogro estava firmemente fechado, nos dois lados da entrada se liam os versos: “Infinita é a beleza de nossa terra; eterna é a primavera da pátria”. Minha tia disse aos curiosos que a cercavam: “Sem o planejamento familiar, a beleza de nossa terra vai acabar e a pátria vai entrar em colapso! Onde vamos encontrar a beleza infinita? De onde virá a primavera eterna?”. Ela bateu a argola da porta e gritou com a voz rouca que lhe era peculiar: “Wang Renmei, você está escondida no silo de batata-doce ao lado do chiqueiro. Acha que não sei? Seu caso já chegou aos ouvidos do comitê distrital e até do Exército, você é um mau exemplo. Agora há apenas dois caminhos à sua frente, ou você sai daí obediente, vem comigo fazer o aborto no posto de saúde. Levando em conta a fase avançada da sua gravidez e sua própria segurança, podemos acompanhá-la até o hospital do distrito e procurar o melhor profissional para fazer a sua cirurgia. Ou você continua resistindo até o final. Aí vamos usar o trator para pôr abaixo primeiro a casa dos vizinhos e por último a dos seus pais. Seu pai deverá arcar com todo o prejuízo dos vizinhos. E mesmo assim você ainda vai precisar fazer o aborto. Com os outros, eu poderia ser mais educada, mas com você não farei cerimônia! Wang Renmei, escutou o que falei? Wang Jinshan e Wu Xiuzhi, entenderam o que eu disse?”, perguntou minha tia mencionando os nomes dos meus sogros.
Houve um longo silêncio dentro do portão, depois se escutou o cantar estridente de um galo jovem. Em seguida foi minha sogra que abriu o berreiro enquanto rogava pragas: “Wan Coração, sua peste, coisa-ruim, demônio sem alma… Você não há de ter uma boa morte… Depois de morrer, vai escalar uma montanha de lâminas cortantes, vão jogar você num caldeirão de óleo fervente, vão arrancar sua pele e cavar seus olhos, vai queimar inteira numa Lanterna Celestial…”.
Minha tia sorriu com desdém e falou para o vice-diretor: “Podem começar!”.
Sob o comando do vice-diretor, os milicianos amarraram um cabo de aço grosso e comprido na velha acácia no portão do vizinho do meu sogro para o lado do nascente. Apoiado na bengala, Xiao Lábio Superior pulou para fora da multidão e gritou numa pronúncia confusa: “Isto é… árvore da minha família…”. Tentou bater na minha tia com a bengala, mas mal a levantou, perdeu o equilíbrio — a minha tia disse friamente: “É a árvore da sua casa? Que pena… azar o seu ter escolhido mal seu vizinho!”.
Vocês são uns bandidos… agem como o Partido Nacionalista… fazendo todas as famílias pagarem pelo erro de uma…”
O Partido Nacionalista nos chamava de ‘bandidos comunistas’”, disse minha tia com um sorriso sarcástico. “Mas para você somos apenas bandidos, você não chega nem à altura do Kuomintang.”
Vou denunciá-los… Meu filho trabalha no Conselho de Estado…”
Então denuncie, quanto mais alto chegar sua denúncia, melhor!”
Xiao Lábio Superior jogou a bengala de lado, abraçou a acácia e disse, chorando: “Não podem arrancar a minha árvore… Yuan Bochecha havia dito… que a árvore está ligada à força vital da minha família… Enquanto a árvore medrar, a vida da minha família vai prosperar…”.
Minha tia disse, rindo: “Yuan Bochecha não soube nem prever quando seria levado pela polícia”.
Então me matem primeiro…”, gritou Xiao Lábio Superior.
Xiao Lábio Superior”, disse a tia com voz severa, “onde está aquela pessoa temida que batia e torturava durante a Revolução Cultural? Por que fica aí soluçando como uma mulher?”
Eu sabia… você está agindo em causa própria a pretexto do bem público… quer se vingar de mim… foi a esposa de seu sobrinho que engravidou ilegalmente… com base em que vai arrancar a minha árvore?”
Não vamos só arrancar sua árvore”, respondeu a tia, “ainda vamos derrubar seu portão e pôr sua casa abaixo. Não adianta nada você ficar chorando aqui, deve reclamar com Wang Jinshan!” Minha tia recebeu da Leoazinha o megafone e disse para a multidão: “Atenção vizinhos dos dois lados da casa de Wang Jinsha! Segundo as disposições especiais da Comissão de Planejamento Familiar da Comuna, como Wang Jinshan escondeu a filha que engravidou de forma ilegal, resistiu obstinadamente ao governo, agrediu com insultos os funcionários, está decidido que serão derrubadas as casas dos vizinhos, todos os prejuízos serão responsabilidade da família de Wang Jinshan. Quem não quiser ter a casa destruída, que venha logo convencer Wang a entregar a filha”.
Os vizinhos começaram a bater boca e a confusão se instalou.
Minha tia disse ao vice-diretor da milícia: “Mãos à obra!”.
O rugido do trator de esteira sacudiu o chão sob os pés.
O colosso de metal avançava ruidoso, o cabo de aço zunia à medida que tensionava. Os galhos e as folhas da árvore tremiam, farfalhavam.
Xiao Lábio Superior avançou trôpego até o portão da casa do meu sogro e bateu na porta, enlouquecido: “Wang Jinshan, malditos sejam seus antepassados! Você só traz prejuízos para seus vizinhos, jamais descansará em paz!”.
No desespero, até sua pronúncia indistinta ficou mais clara.
O portão da casa do meu sogro continuava firmemente fechado. Do lado de dentro vinha o choro incontido da minha sogra.
Minha tia acenou para o vice-diretor da milícia levantando o braço direito e abaixando-o abruptamente.
Aumente a potência!”, gritou o vice-diretor para o motorista do trator.
O trator produziu um ronco de estourar os tímpanos. Esticado em linha reta, o cabo de aço zumbia, apertava a acácia, e apertava ainda mais, entranhava-se na casca da árvore, a seiva brotava. O trator avançava lento, centímetro a centímetro, anéis azulados de fumaça saíam empilhados dos tubos metálicos sobre o capô. O condutor dirigia a máquina olhando para trás. Vestia um uniforme azul, bem lavado, de tecido grosso, levava uma toalha imaculadamente branca no pescoço e um boné enviesado na cabeça. Os dentes de cima mordiam o lábio de baixo e, sob o nariz, crescia um bigode preto. Parecia um rapaz bem competente… A árvore, inclinando-se, estralejava em ruídos secos, doídos. O cabo, que já ia fundo no tronco, arrancara um pedaço da casca e revelava a brancura das fibras internas…
Wang Jinshan, seu desgraçado, venha aqui fora…” Xiao Lábio Superior esmurrava, dava joelhadas, dava cabeçadas na porta. Mas na casa do meu sogro não se ouvia um pio, até o choro da minha sogra tinha cessado.
A árvore inclinou-se e inclinou-se ainda mais até que sua copa exuberante tocou o chão com estardalhaço.
Xiao Lábio Superior cambaleou até chegar à acácia: “Minha árvore… árvore do nosso destino…”
O movimento das raízes abriu rachaduras no solo.
Xiao Lábio Superior reuniu forças para voltar ao portão da casa do meu sogro: “Wang Jinshan, seu filho de uma puta! Somos vizinhos há décadas, por pouco não nos tornamos compadres, e você vem me arruinar a vida desse jeito…”.
Fora do solo, as raízes da árvore mostravam um amarelo-pálido, pareciam grandes jiboias… Estrepitavam à medida que eram arrancadas, algumas se partiam, quanto mais se puxavam, mais se estendiam, um punhado de grandes jiboias… A copa caída por terra parecia uma enorme vassoura arrastada ao contrário. Os galhos mais finos iam se quebrando, a poeira subia do chão. A multidão abria as narinas para sentir o cheiro de terra fresca e seiva…
Porra, Wang Jinshan, vou morrer de tanto bater na sua porta…” As cabeçadas de Xiao Lábio Superior no portão pareciam mudas, não porque não fizessem barulho, mas porque seu ruído era abafado pelo ronco do trator.
A grande acácia foi parar a dezenas de metros da casa de Xiao. No seu lugar, ficou um grande buraco cheio de raízes quebradas e crianças à procura de ninfas de cigarra.
Minha tia anunciou pelo alto-falante elétrico: “Agora vamos pôr abaixo o portão da casa de Xiao!”.
Umas pessoas carregaram Xiao para um lado, apertaram-lhe o meio do bigode para reanimá-lo, massagearam seu peito.
E vocês, vizinhos de Wang Jinshan”, disse a tia serenamente, “voltem para casa e peguem seus objetos de valor, depois de derrubar a casa de Xiao Lábio Superior, será a vez de vocês. Sei que isso não faz sentido, mas uma razão menor precisa obedecer a uma razão maior, e qual é a razão maior? É o planejamento familiar, o controle populacional. Não me importo de ser a malvada, alguém sempre terá de ser a malvada. Sei que vocês já me condenaram ao inferno! Uma comunista não acredita nessas coisas, uma materialista de verdade não tem medo de nada! Mesmo que o inferno existisse, eu iria sem medo! Se eu não for ao inferno, quem irá?* Soltem o cabo de aço e amarrem no portão da casa de Xiao!”
Os vizinhos se apinharam na porta do meu sogro como um enxame de abelhas, esmurravam o portão, chutavam, jogavam pedaços de tijolo e cacos de telha por cima do muro. Um deles até trouxe palha de milho, enfiou sob o beiral da casa e gritou: “Wang Jinshan, se você não sair, vamos tacar fogo na sua casa!”.
A porta finalmente se abriu, mas quem estava lá não era meu sogro nem minha sogra, era minha esposa. Tinha o cabelo desgrenhado, a roupa suja de terra e lama, um sapato no pé esquerdo, o pé direito descalço, aparentemente acabara de sair do silo.
Ela se aproximou da minha tia e disse: “Tia, vou fazer o aborto, o que mais você quer?”.
Eu sabia que a mulher do meu sobrinho era uma pessoa de princípios!”, disse minha tia com um sorriso.
Tia, eu realmente admiro você!”, disse minha esposa. “Se fosse homem, seria capaz de comandar um grande exército!”
Você também”, disse minha tia, “desde que desmanchou o noivado com o filho do Xiao, tão decidida, já sabia que era uma grande mulher.”
Renmei”, eu disse, “quanto sofrimento te causamos.”
Corre Corre, me deixe ver sua mão.”
Sem entender o que ela queria, mostrei-lhe minha mão.
Ela a agarrou e mordeu meu pulso com força.
Eu nem tentei resistir.
Os dentes deixaram no pulso duas fileiras bem marcadas, escorria um sangue escuro.
Ela cuspiu e disse brava: “Você me faz sangrar, eu também te faço”.
Estendi a ela o outro pulso.
Ela o empurrou para o lado e disse: “Não quero morder mais! Fede a cachorro!”.
Xiao Lábio Superior recuperou os sentidos e pôs-se a uivar enquanto batia no chão como uma mulher: “Wang Renmei, Wan Corre Corre, vocês vão me indenizar… vão me indenizar pela árvore…”.
Não vou indenizar bosta nenhuma!”, disse minha mulher. “Seu filho passou a mão no meu peito e ainda me deu um beijo na boca! Esta árvore vale como indenização pela minha juventude perdida!”
Ó! ó! ó!”, fez um grupo de adolescentes aplaudindo o brilhante discurso da minha esposa.
Renmei!”, gritei enfurecido.
Para que tanto alvoroço?” Ela subiu na van da minha tia e disse, pondo a cabeça para fora: “Foi por cima da roupa!”.

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* Referência a uma frase do bodisatva Dizang (Ksitigarbha em sânscrito), encarregado da instrução de todos os seres em todos os domínios da existência, incluindo o inferno. Na frase original, Dizang promete só se tornar um buda depois de esvaziar o inferno.

Mo Yan, in As rãs

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