Um
amigo que tem consciência exacerbada do tempo confia-me que, depois
de certo ponto (ele não usa a palavra idade), a vida já não
oferece acontecimentos, e sim comemorações.
— Por
mais que o sujeito faça, não consegue realmente mover-se. Fica
parado diante de formas movediças, como naquele romance do Zé Lins
do Rego, que tem um seleiro batendo couro à beira da estrada.
E
continua:
— A
princípio você tem um sentimento rápido de que já viveu, no dia
em que faz anos. A melancolia em estado latente é absorvida pela
efusão dos amigos e pela justa porção de álcool que o indivíduo
ingere em tais ocasiões. Mas o fenômeno está circunscrito ao
espaço de algumas horas durante o ano inteiro. O resto é vida de
que participamos. Pouco a pouco, porém, insinuam-se outros
aniversários: formatura, casamento. Há também as mortes de
parentes e amigos, que por sua vez começam a encher nosso calendário
pessoal. Depois vem o centenário de pessoas que você ainda alcançou
vivas. E há as comemorações nacionais, em que antes não reparava.
Com o tempo, você mesmo se transforma em calendário, meu velho.
Tudo
vinha a propósito de um papel que ele trazia na mão.
— Este
convite indica uma fase já avançada do processo. Chega um ponto em
que começamos a negociar lembranças. Eu lhe vendo as minhas e você
me empurra as suas. Fundamos armazéns de lembranças, e, a pretexto
de qualquer data, ou sem pretexto algum, organizamos caravanas em
direção ao passado.
Aproximando-me,
li o cartão impresso: “Associação dos Antigos Alunos do Colégio
Gregório — A Diretoria convida o prezado gregoriano para a visita
ao antigo colégio. Será fretado um vagão especial. Haverá missa,
e almoço no refeitório, com a presença do velho padre Barlavento;
depois, assembleia geral dos gregorianos, no foro da cidade.
Compareça com sua família para gáudio dos velhos colegas.
Informações com o dr. Canuto, à rua Tal”.
— Aí
está. Toda essa gente havia desaparecido por esse mundo de Deus, na
pressa de cumprir seu destino. Só uns poucos não se perderam de
vista, pela circunstância do trabalho em comum. Mas passam-se vinte
e cinco anos, e começam a surgir de todos os lados cavalheiros
grisalhos, uns sorridentes, outros mais sérios, que nos olham
curiosamente, a conferir suas rugas com as nossas, e dizem: “Mas
então você não está me reconhecendo? Eu sou o 130, da Divisão
dos Médios…”.
Prossegue:
— Já
expliquei ao Canuto que não posso aderir às comemorações. Não
sou apenas um ex-aluno do famoso colégio Gregório. Sou um aluno
expulso, e com que cara ia voltar lá, depois do que me aconteceu?
Mas o Canuto sorri e me diz que deixe de patacoadas. Eles comemoram
trinta e cinco anos de colégio? Pois que eu comemore os meus trinta
e três de expulsão. Dá tudo na mesma. Lembro-lhe o padre Juquinha,
meu adversário daqueles tempos, e o Canuto dá de ombros: “Que o
quê, o Juquinha morreu há vinte anos, coitado, e lá do assento
etéreo já fez as pazes com você. Comemore a briga com o Juquinha,
e as pazes feitas no tempo”. Assim, nada mais é triste ou alegre
depois de um longo período; tudo é matéria comemorativa, e viver é
apenas ter vivido, compreende?
Eu
— ai de mim — compreendia.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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