Outubro (1878), de Jules Bastien-Lepage
A
falsidade na qual caiu a arte do nosso povo foi provocada pela
aristocracia, que, tendo perdido a fé nas verdades da doutrina
cristã da Igreja, não ousou aceitar o verdadeiro cristianismo em
seu significado real e principal — filiação a Deus e irmandade
entre os homens — e continuou a viver sem fé alguma, tentando
suprir essa ausência, alguns com hipocrisia, fingindo que ainda
acreditavam nos absurdos da fé da Igreja, outros com uma corajosa
proclamação de sua descrença ou com um refinado ceticismo e
outros, ainda, com o retorno à veneração dos gregos pela beleza,
admitindo a legitimidade do egoísmo e elevando-o a uma doutrina
religiosa.
A
causa da doença foi a não aceitação do ensinamento de Cristo em
seu significado verdadeiro e pleno. A cura da doença reside em um só
ponto: o reconhecimento desse ensinamento em todo o seu significado.
Essa aceitação não é somente possível, mas necessária na nossa
época. Hoje é muito difícil para um homem que chegou ao nível de
conhecimento da época, seja ele católico, seja protestante, dizer
que acredita nos dogmas da Igreja — em Deus como Trindade, em
Cristo como divindade, na redenção, e assim por diante — e é
impraticável para ele ficar satisfeito com a proclamação de
descrença, com ceticismo ou retorno ao egoísmo e à veneração da
beleza, e, acima de tudo, é impossível dizer que não sabe o
verdadeiro significado do ensinamento de Cristo. Esse significado se
tornou acessível a todos, e a vida da nossa época está permeada
pelo espírito desse ensinamento, sendo, consciente ou
inconscientemente, guiada por ele.
Mesmo
que haja diferenças na forma pela qual as pessoas do nosso mundo
cristão definem o destino do homem, se o reconhecem como o progresso
da humanidade em um sentido ou outro, ou como a união de todos em um
estado socialista ou uma comuna, se o reconhecem como a união com um
Cristo fantástico ou a união da humanidade sob a orientação de
uma única Igreja, por diversas que possam ser na forma essas
definições do destino da vida humana, todos de nossa época
reconhecem que o destino do homem é o bem; e o bem mais elevado na
vida acessível às pessoas do nosso mundo é atingido com a união.
Por
mais que as classes superiores tentem — percebendo que sua
importância é baseada na sua separação, como pessoas ricas e
instruídas, dos trabalhadores pobres e sem instrução — inventar
novas visões de mundo que possam permitir-lhes manter suas
vantagens, seja ela o ideal do retorno aos velhos tempos, seja o
misticismo, o helenismo ou a teoria do super-homem, essas pessoas têm
que reconhecer, queiram ou não, a verdade que se declara em todos os
aspectos da vida, consciente e inconscientemente: nosso bem reside
somente na união e fraternidade entre os homens.
Inconscientemente,
essa verdade é afirmada pelo estabelecimento de meios de comunicação
(telégrafo, telefone, imprensa) e a crescente disponibilidade dos
bens deste mundo a todos. Conscientemente, ela é declarada pela
destruição das superstições que dividem as pessoas, pela difusão
das verdades do conhecimento, pela expressão dos ideais da
fraternidade entre os homens nas melhores obras de arte do nosso
tempo.
A
arte é um órgão espiritual da vida humana e não pode ser
destruída, e é por isso que, apesar de todos os esforços das
classes superiores em ocultar o ideal religioso pelo qual a
humanidade vive, esse ideal vem sendo reconhecido mais e mais e vem
sendo expressado, embora de forma parcial, pela ciência e pela arte,
na nossa sociedade pervertida. Cada vez mais frequentemente, desde o
início do século XIX, apareceram, na literatura e na pintura, obras
da mais alta arte religiosa, permeadas pelo verdadeiro espírito
cristão, assim como obras de arte comum e popular, acessíveis a
todos. De forma que a arte conhece o verdadeiro ideal da nossa época
e se esforça em direção a ele. Por um lado, os melhores trabalhos
artísticos de nossa época transmitem sentimentos que levam em
direção à união e fraternidade dos homens (assim são as obras de
Dickens, Hugo, Dostoiévski; na pintura, as de Millet,
Bastien-Lepage, Jules Breton, Lhermitte e outros); por outro lado,
buscam transmitir sentimentos não apenas apropriados às pessoas da
alta classe, como tais que possam unir todos os homens, sem exceção.
Essas obras ainda são poucas, mas a necessidade delas já é
compreendida. Além disso, nos últimos tempos tem havido tentativas
cada vez mais frequentes de fazer edições populares de livros e
quadros e de promover apresentações de peças e concertos de acesso
geral. Tudo isso ainda está muito distante do que deveria ser, mas
já se pode ver a direção na qual a arte se esforça, de sua parte,
para se colocar no caminho certo.
A
consciência religiosa da nossa época, que consiste em reconhecer
que a união é o objetivo geral e individual da vida, já se tornou
suficientemente clara, e as pessoas de hoje só precisam rejeitar a
falsa teoria da beleza, segundo a qual o prazer é reconhecido como
objetivo da arte; a consciência religiosa, então, se tornará
naturalmente a orientação da arte em nossos dias.
E
assim que a consciência religiosa, que inconscientemente já guia a
vida de todos em nossa época, for conscientemente reconhecida, a
divisão entre as artes da classe baixa e da classe alta será
anulada de imediato. Uma vez que exista uma arte comum e fraterna,
será rejeitada, primeiro, a arte que transmite sentimentos
discordantes da consciência religiosa dos nossos dias — que não
unem, mas, sim, desunem as pessoas — e, em segundo lugar, aquela
sem valor e exclusiva que agora goza de uma importância que não
merece.
E
quando isso acontecer, a arte imediatamente deixará de ser o que tem
sido nos tempos recentes — um meio de brutalizar e corromper as
pessoas — e se tornará o que sempre foi e deveria ser: um meio
para o progresso da humanidade rumo à unidade e ao bem-estar.
Por
mais terrível que possa ser dizer isto, o que aconteceu à arte de
nosso círculo e época é o mesmo que acontece a uma mulher que
vende seus atrativos femininos, destinados à maternidade, para o
prazer daqueles que são tentados por sua sedução.
A
arte do nosso tempo e meio se tornou uma prostituta. E essa
comparação se mostra verdadeira nos mínimos detalhes. Ela, da
mesma maneira, não é limitada no tempo, está sempre em roupas
extravagantes, está sempre à venda; é igualmente sedutora e
perniciosa.
A
obra de arte genuína manifesta-se na alma do artista muito
raramente. Ela é fruto de toda a sua vida anterior, tal como uma
criança é concebida por sua mãe. A arte forjada é produzida por
artesãos e artífices continuamente, desde que haja consumidores.
A
genuína não tem necessidade de se embelezar, como a esposa de um
marido amoroso. A falsificada, como uma prostituta, tem que estar
sempre enfeitada.
A
causa do aparecimento da arte genuína é uma necessidade interna de
expressar um sentimento guardado, como o amor é a causa da concepção
sexual para uma mãe. A causa da arte forjada é mercenária, tal
como na prostituição.
A
consequência da arte verdadeira é a introdução de um sentimento
novo da vida comum, tal como a consequência do amor de uma esposa é
o nascimento de um novo ser. A consequência da arte falsificada é a
corrupção, a insaciabilidade dos prazeres, a fraqueza espiritual do
homem.
É
isso que as pessoas do nosso meio precisam entender para livrar-se do
fluxo imundo dessa arte depravada e lasciva que nos está afogando.
Leon Tolstói, in O que é arte?
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