domingo, 26 de novembro de 2023

O que é arte? | Capítulo XVIII

Outubro (1878), de Jules Bastien-Lepage 

A falsidade na qual caiu a arte do nosso povo foi provocada pela aristocracia, que, tendo perdido a fé nas verdades da doutrina cristã da Igreja, não ousou aceitar o verdadeiro cristianismo em seu significado real e principal — filiação a Deus e irmandade entre os homens — e continuou a viver sem fé alguma, tentando suprir essa ausência, alguns com hipocrisia, fingindo que ainda acreditavam nos absurdos da fé da Igreja, outros com uma corajosa proclamação de sua descrença ou com um refinado ceticismo e outros, ainda, com o retorno à veneração dos gregos pela beleza, admitindo a legitimidade do egoísmo e elevando-o a uma doutrina religiosa.
A causa da doença foi a não aceitação do ensinamento de Cristo em seu significado verdadeiro e pleno. A cura da doença reside em um só ponto: o reconhecimento desse ensinamento em todo o seu significado. Essa aceitação não é somente possível, mas necessária na nossa época. Hoje é muito difícil para um homem que chegou ao nível de conhecimento da época, seja ele católico, seja protestante, dizer que acredita nos dogmas da Igreja — em Deus como Trindade, em Cristo como divindade, na redenção, e assim por diante — e é impraticável para ele ficar satisfeito com a proclamação de descrença, com ceticismo ou retorno ao egoísmo e à veneração da beleza, e, acima de tudo, é impossível dizer que não sabe o verdadeiro significado do ensinamento de Cristo. Esse significado se tornou acessível a todos, e a vida da nossa época está permeada pelo espírito desse ensinamento, sendo, consciente ou inconscientemente, guiada por ele.
Mesmo que haja diferenças na forma pela qual as pessoas do nosso mundo cristão definem o destino do homem, se o reconhecem como o progresso da humanidade em um sentido ou outro, ou como a união de todos em um estado socialista ou uma comuna, se o reconhecem como a união com um Cristo fantástico ou a união da humanidade sob a orientação de uma única Igreja, por diversas que possam ser na forma essas definições do destino da vida humana, todos de nossa época reconhecem que o destino do homem é o bem; e o bem mais elevado na vida acessível às pessoas do nosso mundo é atingido com a união.
Por mais que as classes superiores tentem — percebendo que sua importância é baseada na sua separação, como pessoas ricas e instruídas, dos trabalhadores pobres e sem instrução — inventar novas visões de mundo que possam permitir-lhes manter suas vantagens, seja ela o ideal do retorno aos velhos tempos, seja o misticismo, o helenismo ou a teoria do super-homem, essas pessoas têm que reconhecer, queiram ou não, a verdade que se declara em todos os aspectos da vida, consciente e inconscientemente: nosso bem reside somente na união e fraternidade entre os homens.
Inconscientemente, essa verdade é afirmada pelo estabelecimento de meios de comunicação (telégrafo, telefone, imprensa) e a crescente disponibilidade dos bens deste mundo a todos. Conscientemente, ela é declarada pela destruição das superstições que dividem as pessoas, pela difusão das verdades do conhecimento, pela expressão dos ideais da fraternidade entre os homens nas melhores obras de arte do nosso tempo.
A arte é um órgão espiritual da vida humana e não pode ser destruída, e é por isso que, apesar de todos os esforços das classes superiores em ocultar o ideal religioso pelo qual a humanidade vive, esse ideal vem sendo reconhecido mais e mais e vem sendo expressado, embora de forma parcial, pela ciência e pela arte, na nossa sociedade pervertida. Cada vez mais frequentemente, desde o início do século XIX, apareceram, na literatura e na pintura, obras da mais alta arte religiosa, permeadas pelo verdadeiro espírito cristão, assim como obras de arte comum e popular, acessíveis a todos. De forma que a arte conhece o verdadeiro ideal da nossa época e se esforça em direção a ele. Por um lado, os melhores trabalhos artísticos de nossa época transmitem sentimentos que levam em direção à união e fraternidade dos homens (assim são as obras de Dickens, Hugo, Dostoiévski; na pintura, as de Millet, Bastien-Lepage, Jules Breton, Lhermitte e outros); por outro lado, buscam transmitir sentimentos não apenas apropriados às pessoas da alta classe, como tais que possam unir todos os homens, sem exceção. Essas obras ainda são poucas, mas a necessidade delas já é compreendida. Além disso, nos últimos tempos tem havido tentativas cada vez mais frequentes de fazer edições populares de livros e quadros e de promover apresentações de peças e concertos de acesso geral. Tudo isso ainda está muito distante do que deveria ser, mas já se pode ver a direção na qual a arte se esforça, de sua parte, para se colocar no caminho certo.
A consciência religiosa da nossa época, que consiste em reconhecer que a união é o objetivo geral e individual da vida, já se tornou suficientemente clara, e as pessoas de hoje só precisam rejeitar a falsa teoria da beleza, segundo a qual o prazer é reconhecido como objetivo da arte; a consciência religiosa, então, se tornará naturalmente a orientação da arte em nossos dias.
E assim que a consciência religiosa, que inconscientemente já guia a vida de todos em nossa época, for conscientemente reconhecida, a divisão entre as artes da classe baixa e da classe alta será anulada de imediato. Uma vez que exista uma arte comum e fraterna, será rejeitada, primeiro, a arte que transmite sentimentos discordantes da consciência religiosa dos nossos dias — que não unem, mas, sim, desunem as pessoas — e, em segundo lugar, aquela sem valor e exclusiva que agora goza de uma importância que não merece.
E quando isso acontecer, a arte imediatamente deixará de ser o que tem sido nos tempos recentes — um meio de brutalizar e corromper as pessoas — e se tornará o que sempre foi e deveria ser: um meio para o progresso da humanidade rumo à unidade e ao bem-estar.
Por mais terrível que possa ser dizer isto, o que aconteceu à arte de nosso círculo e época é o mesmo que acontece a uma mulher que vende seus atrativos femininos, destinados à maternidade, para o prazer daqueles que são tentados por sua sedução.
A arte do nosso tempo e meio se tornou uma prostituta. E essa comparação se mostra verdadeira nos mínimos detalhes. Ela, da mesma maneira, não é limitada no tempo, está sempre em roupas extravagantes, está sempre à venda; é igualmente sedutora e perniciosa.
A obra de arte genuína manifesta-se na alma do artista muito raramente. Ela é fruto de toda a sua vida anterior, tal como uma criança é concebida por sua mãe. A arte forjada é produzida por artesãos e artífices continuamente, desde que haja consumidores.
A genuína não tem necessidade de se embelezar, como a esposa de um marido amoroso. A falsificada, como uma prostituta, tem que estar sempre enfeitada.
A causa do aparecimento da arte genuína é uma necessidade interna de expressar um sentimento guardado, como o amor é a causa da concepção sexual para uma mãe. A causa da arte forjada é mercenária, tal como na prostituição.
A consequência da arte verdadeira é a introdução de um sentimento novo da vida comum, tal como a consequência do amor de uma esposa é o nascimento de um novo ser. A consequência da arte falsificada é a corrupção, a insaciabilidade dos prazeres, a fraqueza espiritual do homem.
É isso que as pessoas do nosso meio precisam entender para livrar-se do fluxo imundo dessa arte depravada e lasciva que nos está afogando.

Leon Tolstói, in O que é arte?

Nenhum comentário:

Postar um comentário