terça-feira, 14 de novembro de 2023

O que é arte? | Capítulo XVII

Olympia (1863), de Édouard Manet

A arte é um dos dois órgãos do progresso da humanidade. Por meio da palavra, o homem se comunica em pensamento, e, por meio das imagens da arte, ele se comunica em sentimento com todas as pessoas, não somente do presente, mas do passado e do futuro. É correto para a humanidade empregar esses dois órgãos de comunicação, e, portanto, a perversão de qualquer um deles traz consequências danosas para a sociedade na qual ela ocorre. E essas consequências são necessariamente duplicadas: primeiro, a ausência, nessa sociedade, da atividade que deveria ser realizada por aquele órgão, e, em segundo lugar, a atividade prejudicial do órgão corrompido. São exatamente essas as consequências encontradas em nossa sociedade. O órgão da arte foi pervertido e, em resultado disso, a sociedade das classes altas foi privada, em considerável medida, da atividade que ele deveria ter realizado. Por um lado, as falsificações artísticas, servindo apenas para diversão e corrupção das pessoas, espalharam-se em nossa sociedade em escala enorme. Por outro lado, trabalhos artísticos sem valor e exclusivos, considerados como a mais alta arte, perverteram, na maioria das pessoas do nosso meio, a capacidade de se contagiarem com verdadeiras obras de arte, privando-as da possibilidade de conhecer os sentimentos mais altos que a humanidade atingiu e que só podem ser transmitidos pela arte.
Tudo o que de melhor a humanidade produziu na arte permanece desconhecido para as pessoas privadas da capacidade de ser contagiadas por ela e é substituído por imitações ou por arte sem valor que é confundida com a genuína. As pessoas da nossa época e nossa sociedade admiram os Baudelaires, Verlaines, Moréases, Ibsens e Maeterlincks na poesia; os Monets, Manets, Puvis de Chavannes, Burne-Joneses, Stucks e Böcklins na pintura; os Wagners, Liszts e Richard Strausses na música etc., e já não são capazes de entender nem a arte mais elevada nem a mais simples.
Devido à perda da capacidade de serem contagiadas, as altas classes crescem, são educadas e vivem sem o efeito suavizante e fertilizador da arte. Assim, além de não caminhar em direção ao seu aperfeiçoamento, tornam-se cada vez mais selvagens, grosseiras e cruéis.
Esse é o efeito da ausência da atividade do órgão da arte na nossa sociedade. No entanto, as consequências da atividade pervertida desse órgão são ainda mais prejudiciais, e elas são muitas.
A primeira consequência que salta aos olhos é o enorme desperdício de mão de obra de trabalhadores em algo que não apenas é inútil, mas, em geral, prejudicial e, além disso, o irredimível desperdício de vidas humanas nessa coisa desnecessária e má. É terrível pensar com que esforço, com que privações, milhões de pessoas trabalham sem ter tempo ou possibilidade de fazer coisas necessárias para si mesmas e para sua família, gastando dez, 12 ou 14 horas por noite montando linotipos para livros pseudoartísticos que difundem a depravação entre as pessoas, ou trabalhando para teatros, concertos, exposições e galerias que servem quase sempre à mesma depravação. Porém, mais terrível é pensar que crianças vivazes e gentis, capazes de tudo o que é bom, dedicam-se desde tenra idade a gastar seis, oito ou dez horas por dia, durante dez ou 15 anos, tocando escalas ou torcendo os membros, andando na ponta dos pés e levantando as pernas acima da cabeça, ou cantando solfejos ou declamando versos com afetações diversas, ou desenhando bustos e modelos nus e pintando esboços, ou escrevendo redações pelas regras de determinado período; e que nessas ocupações desonrosas para a dignidade humana, que continuam muitas vezes até bem depois da plena maturidade, perdem toda a sua força física e intelectual e toda a compreensão da vida. As pessoas dizem que é terrível e lastimável ver os pequenos acrobatas colocarem as pernas atrás do pescoço, mas não é menos lastimável ver uma criança de dez anos dando concertos, e, mais ainda, ver crianças de dez anos que sabem de cor as exceções da gramática do latim... Mas não se trata apenas de que essas pessoas são aleijadas física e mentalmente — elas são incapacitadas moralmente também, tornando-se impossibilitadas de fazer qualquer coisa que seja realmente proveitosa e necessária para os outros. Ocupando na sociedade o papel de promotores de recreação para ricos, perdem seu senso de dignidade humana, desenvolvem tal paixão pelo louvor público que sofrem permanentemente de vaidade insatisfeita — vaidade inflada até um grau mórbido — e usam todas as forças da sua alma para justificar essa paixão. E o mais trágico de tudo é que essas pessoas, destruídas para viver para a arte, não são de modo algum úteis a ela e lhe causam o maior dos danos.
Nas academias, escolas e conservatórios, é-lhes ensinado como forjar arte, e, aprendendo isso, tornam-se tão pervertidas que perdem toda a capacidade de produzir arte genuína e passam a ser fornecedoras dessa arte falsificada, ou sem valor, ou depravada, que enche o mundo. Essa é a primeira consequência da perversão do órgão da arte que nos salta aos olhos.
A segunda consequência é que as obras de arte-divertimento, produzidas em tão assustadoras quantidades pelo exército de artistas profissionais, permitem que os ricos da nossa época vivam de uma forma que, além de não ser natural, é contrária ao princípio de humanitarismo professado por eles mesmos. Viver como vivem os ricos e ociosos, especialmente as mulheres — longe da natureza e dos animais, em condições artificiais, com músculos atrofiados ou anormalmente desenvolvidos pela ginástica e com uma energia vital enfraquecida —, seria impossível se não fosse por essa arte-divertimento, se não fosse pela distração que afasta os olhos dessas pessoas da falta de sentido de sua vida e as salva do tédio que as oprime. Tire delas os teatros, concertos e exposições, o piano, as trovas e os romances com que se ocupam na convicção de que isso é uma atividade muito refinada, estética e portanto boa; tire dos mecenas, que compram quadros, patrocinam músicos e frequentam escritores, a sua função de patronos do importante tema da arte, e eles serão incapazes de continuar a viver, morrerão todos de aborrecimento, de tédio, da percepção da falta de sentido e desregramento da sua vida. Somente as ocupações com o que é considerado arte nesse meio lhes permite, na violação de todas as condições naturais, seguirem vivendo sem perceber a sua insensatez e a sua crueldade. E esse suporte à falsa vida dos ricos é a segunda consequência, não insignificante, da perversão da arte.
O terceiro efeito da perversão da arte é a confusão que produz nas ideias das crianças e do povo em geral. Aqueles que não estão pervertidos pelas teorias falsas da nossa sociedade — trabalhadores, crianças — têm uma ideia bem definida dos motivos pelos quais uma pessoa pode ser homenageada e elogiada. Segundo a compreensão das pessoas simples e das crianças, o motivo para louvar e glorificar alguém só pode ser a força física (Hércules, super-homens, conquistadores) ou a força moral, espiritual (Shakya-muni abandonando sua linda esposa e seu reino para salvar os homens, ou Cristo indo para a cruz pela verdade que professava, e todos os mártires e santos). Ambos são compreensíveis para o povo e para as crianças. Eles entendem que não se pode deixar de respeitar a força física, porque ela se faz respeitar. Quanto à força moral do bem, um homem íntegro não pode deixar de respeitá-la porque todo o seu ser espiritual é atraído por ela. E então essas crianças e homens simples veem subitamente que, ao lado daqueles que são elogiados, homenageados e recompensados por sua força física ou moral, existem também aqueles que são elogiados, glorificados e recompensados em escala ainda maior do que os heróis da força e da bondade simplesmente porque cantam bem, escrevem poesia ou são bons dançarinos. Eles veem que cantores, escritores, pintores e dançarinos ganham milhões, que recebem mais homenagens que os santos — e ficam perplexos.
Quando, cinquenta anos após a morte de Pushkin, edições baratas de suas obras foram publicadas e se espalharam, ao mesmo tempo que um monumento foi erigido em sua homenagem em Moscou, mais de dez cartas de diferentes camponeses me foram enviadas perguntando por que Pushkin era tão glorificado. Um dia desses recebi a visita de um artesão alfabetizado de Saratov que aparentemente perdera a cabeça com esse assunto e estava a caminho de Moscou para acusar o clero por ter contribuído com a realização desse “munumento” ao sr. Pushkin.
De fato, basta imaginar a situação de um homem do povo, como esse, que fica sabendo pelos jornais e pelos comentários que lhe chegam que o clero, as autoridades, todos os poderosos da Rússia inauguraram em triunfo um memorial ao grande homem, ao benfeitor, à glória do país — Pushkin, de quem nunca até então ouvira falar. Ele lê ou ouve isso de todos os lados e pensa que, se tais homenagens são prestadas a um homem, este provavelmente fez algo extraordinário, seja em matéria de força, seja em matéria de bondade. Tenta descobrir então quem foi Pushkin e, ao saber que não foi um homem de poder nem um líder militar, conclui que deve ter sido um santo e um mestre do bem, e se esforça para ler ou ouvir sobre sua vida e suas obras. Mas quão grande será a sua perplexidade ao tomar conhecimento de que Pushkin foi um homem de moral menos que ligeira, que morreu em um duelo — isto é, enquanto tentava matar outro homem — e que todo o seu mérito consiste simplesmente em ter escrito poemas sobre o amor, muitos deles bem indecentes?
Que alguns homens poderosos como Alexandre da Macedônia, Gengis Khan ou Napoleão sejam grandes ele pode entender, porque qualquer um deles poderia esmagar milhares como ele. Também pode entender que Buda, Sócrates e Cristo sejam grandes, porque sabe e sente que todas as pessoas deveriam ser como eles; mas por que uma pessoa há de ser grande por ter escrito poemas sobre o amor às mulheres — isso ele não consegue entender.
O mesmo se deve passar na cabeça de um camponês bretão ou normando que fica sabendo da existência de um memorial, une statue, como se fosse à Mãe de Deus, a Baudelaire, quando lê ou lhe contam o conteúdo de As flores do mal, ou — ainda mais espantoso — a Verlaine, quando lê a sua poesia ou fica sabendo da vida patética e depravada que esse homem levou. E que confusão deve ocorrer na cabeça desse povo simples quando fica sabendo que alguma Patti ou Taglioni[110] recebe cem mil por temporada, que um pintor consegue o mesmo por um quadro e que os autores de romances que descrevem cenas de amor recebem ainda mais.
O mesmo acontece também com as crianças. Lembro-me de ter experimentado esse espanto e perplexidade. Somente pude aceitar essa exaltação dos artistas, colocados no mesmo plano dos homens poderosos e heróis morais, ao diminuir, na minha consciência, a importância do valor moral e aumentar a importância falsa e antinatural das obras de arte. O mesmo acontece na alma de cada criança e de cada pessoa simples quando sabe das estranhas homenagens e recompensas dadas a artistas. Essa é a terceira consequência da atitude falsa de nossa sociedade em relação à arte.
A quarta consequência de tal atitude é que as classes privilegiadas, à medida que encontram mais e mais frequentemente a contradição entre a beleza e o bem, colocam o ideal de beleza mais alto, livrando-se assim das exigências da moralidade. Essas classes, em vez de reconhecer a arte à qual servem pelo que ela é — isto é, uma coisa retrógrada —, invertem os papéis e reconhecem a moralidade como uma coisa retrógrada que não pode ter nenhuma importância para pessoas de um grau elevado de desenvolvimento, como imaginam que elas próprias sejam.
Essa consequência da atitude errada em relação à arte se tornou explícita em nossa sociedade há muito tempo, mas ultimamente, com seu profeta Nietzsche e seus seguidores, assim como com os decadentes e com os estetas ingleses — todos idênticos —, ela vem se expressando com insolência especial. Decadentes e estetas como Oscar Wilde escolhem como tema de suas obras a negação da moralidade e o elogio à depravação.
Uma parte dessa arte produziu uma doutrina filosófica semelhante. Recebi recentemente da América um livro intitulado The Survival of the Fittest: Philosopby of Power [A sobrevivência do mais apto: filosofia do poder], de Ragnar Redbeard (Chicago, 1896). A essência desse livro, como é expressa no prefácio do editor, é que avaliar o bem pela falsa filosofia dos profetas hebreus e dos messias chorosos é loucura. O certo não resulta de nenhuma doutrina, mas do poder. Todas as leis, mandamentos e doutrinas sobre não fazer aos outros o que você não quer que lhe façam não significam nada, inerentemente, e adquirem alguma importância somente quando se usa o cacete, a prisão e a espada. Uma pessoa realmente livre não é obrigada a obedecer a nenhuma injunção, humana ou divina. A obediência é o sinal da degeneração; a desobediência é o sinal do herói. As pessoas não deviam ser obrigadas a seguir tradições inventadas por seus inimigos. O mundo todo é um campo de batalha escorregadio. A justiça ideal consiste em que os vencidos sejam explorados, torturados e desprezados. Os livres e os bravos podem conquistar o mundo todo. E, portanto, dessa injunção, deve haver guerra eterna pela vida, pela terra, pelo amor, pelas mulheres, pelo poder e pelo ouro. (Algo semelhante foi proferido há vários anos pelo famoso e refinado acadêmico Vogüé. A terra com seus tesouros é o “prêmio dos audaciosos”.
O autor, sem dúvida por si mesmo, independentemente de Nietzsche, chegou à mesma conclusão que é professada pelos artistas modernos.
Expostos na forma de uma doutrina, esses princípios nos chocam. Na verdade, eles estão contidos no ideal da arte que serve à beleza. A arte de nossas classes altas cultivou esse ideal do super-homem — que de fato é o antigo ideal de Nero, Stenka Razin, Gengis Khan, Robert Macaire, Napoleão e todos os seus cúmplices, satélites e bajuladores — e o mantém nelas com toda a sua força.
Essa suplantação do ideal de moralidade pelo ideal do belo — ou seja, do prazer — é a quarta consequência, terrível, da perversão da arte em nossa sociedade. É assustador imaginar no que poderia acontecer à humanidade se uma arte assim fosse difundida entre as massas. E isso já está começando a acontecer.
A última e principal consequência é que a arte que floresce no meio das classes altas da sociedade europeia corrompe as pessoas diretamente, ao contagiá-las com os piores e mais danosos sentimentos da superstição, do patriotismo e, principalmente, da sensualidade.
Observe atentamente as causas da ignorância nas massas populares e você verá que a principal não é de forma alguma a falta de escolas e bibliotecas, como estamos acostumados a pensar, mas as superstições, tanto as eclesiásticas quanto as patrióticas, das quais elas estão imbuídas e que são geradas por todos os recursos da arte. As superstições da Igreja são apoiadas pela poesia das orações e dos hinos, pela pintura dos ícones, pela escultura das imagens, pelo canto, pelos órgãos, pela música e pela arquitetura, e até mesmo pela arte dramática nas suas cerimônias. As superstições patrióticas são apoiadas por versos e por histórias que são contadas até nas escolas; por música, canto, desfiles solenes, cerimônias reais, pinturas militares e memoriais.
Se não fosse pela atividade constante de todos os ramos da arte na perpetuação da intoxicação e do amargor dessas superstições entre o povo, as massas populares há muito tempo teriam atingido a verdadeira iluminação. Mas não é somente a corrupção eclesiástica e patriótica que esse tipo de arte produz.
Em nossa época, a arte serve também como a principal causa da corrupção das pessoas na questão mais importante da vida social: as relações sexuais. Nós todos sabemos por nós mesmos, e os pais e mães sabem também por seus filhos, que terríveis sofrimentos espirituais e corporais, que inútil desperdício de energia as pessoas vivenciam somente por causa da licenciosidade do desejo sexual.
Desde o princípio do mundo, desde o tempo da Guerra de Troia — que começou por causa da licenciosidade sexual —, até os suicídios e assassinatos por amor que hoje são relatados nos jornais quase todos os dias, uma grande parcela dos sofrimentos da humanidade foi causada por essa licenciosidade.
E o que tirar daí? Toda arte, tanto a genuína quanto a forjada, com raríssimas exceções, é dedicada unicamente a retratar e incitar o amor sexual, em todas as suas formas. Basta lembrar todos os romances com sensuais descrições de amor, das mais refinadas às mais cruas, com os quais a literatura popular está cheia; todos aqueles quadros e estátuas retratando o corpo feminino nu e todo tipo de obscenidades que são incluídas nas ilustrações e propagandas; basta lembrar todas as desprezíveis óperas, operetas, canções e baladas com as quais nosso mundo está inundado — e pensa-se involuntariamente que a arte existente só tem um objetivo preciso: a ampla difusão da depravação.
Essas são, se não todas, pelo menos as consequências mais diretas da perversão da arte que se deu na nossa sociedade. E, como resultado, o que é chamado de arte não só não contribui para o progresso da humanidade, como, talvez mais do que qualquer outra coisa, também atrapalha a realização do bem na nossa vida.
E, desse modo, a pergunta feita involuntariamente por qualquer homem que não participe de atividades artísticas e, portanto, que não é ligado à arte existente por nenhum interesse próprio, é a questão número um colocada no início deste texto: se é justo que sejam oferecidos tantos sacrifícios na forma de trabalho e de vidas humanas àquilo que chamamos arte se apenas uma pequena parcela da sociedade usufrui dela. A resposta natural e de bom senso a essa questão é: não, isso não é justo e não deveria ser. Não apenas não deveria ser assim, não apenas não deveriam ser oferecidos sacrifícios àquilo que é reconhecido como arte entre nós, como, ao contrário, todos os esforços daqueles que desejam viver uma boa vida deveriam ser dirigidos a destruir essa arte, porque ela é um dos males mais cruéis que oprimem a humanidade. Assim, se fosse colocada a questão sobre o que seria melhor para o mundo cristão: perder tudo o que é hoje considerado arte, inclusive tudo o que é bom nela, junto com a falsa arte, ou continuar a incentivar ou permitir a arte que existe hoje; eu penso que qualquer pessoa decidiria essa questão da forma como foi decidida por Platão para a sua República e por todos os mestres da Igreja cristã e muçulmana. Ou seja, essa pessoa diria: “É melhor que não exista arte do que continue a existir como hoje, a arte depravada ou o seu simulacro.” Felizmente, ninguém tem que enfrentar essa questão nem tem que decidir sobre ela de uma forma ou de outra. Tudo o que o homem pode fazer, tudo o que nós, pessoas chamadas cultas — que estamos em posição de entender o significado dos fenômenos da nossa vida —, podemos e devemos fazer é compreender o engano em que estamos e não persistir nele, mas buscar sair dele.

Leon Tólstoi, in O que é arte?

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