Eu
poderia não me abaixar para pegar o fio de cabelo no piso branquinho
do banheiro. Mas ele começa a falar comigo: “então você pretende
mesmo seguir com seu dia como se este piso branquinho não estivesse
maculado com esse fio de cabelo? Do seu cabelo, da sua sujeira velha,
da morte do sebo da sua cabeça? Você quer mesmo que seu marido e
sua empregada e sua amiga e sua cachorra convivam com a sua
finitude?”.
Eu
poderia parar, mas não é o caso. Poderia não pegar outro
quadradinho do chocolate. Não é nem pelo prazer, é para “fazer
parar”. Acabar com o chocolate para que eu não fique com o
pensamento apitando: “tem lá um chocolate”. Acabar com a paixão
para que eu não fique com o pensamento “tem lá uma paixão”.
Aniquilo qualquer possibilidade pequena porque pequeno me irrita. É
o anão do David Lynch dançando para causar estranheza… bom em
filme, mas no meio da minha sala não quero agora.
Um
saco de bolinhas de gude. Não posso perder nenhuma. O saco está bem
amarrado com um barbante e eu o carrego com as duas mãos fechadas,
apertando, suando. Eu sou aquela quantidade de bolinhas do saco e por
isso não posso abrir, não posso romper, não posso afrouxar, não
posso perder, não posso ser roubada, não posso dar, não posso
ganhar. Eu sou as setenta bolinhas independentes e desmembradas e não
sou jamais uma a menos. Nem a mais. Esse é o medo. De me esparramar
pelo mundo e nunca mais saber do que sou feita.
Não
sei quem mora aqui. Não tenho ideia do tamanho. Só tenho medo.
Muito medo. Medo de, de repente, assim, num fim de tarde qualquer,
morder alguma canela ou sair correndo de quatro. Não sei.
Medo
de comer demais, dormir demais, cagar no meio da rua, latir. Morrer
de repente. Medo de o corpo não aguentar o tamanho. Medo de
alimentar demais o bicho, perder forças para ele. Deixar que ele
ganhe de mim, arrebente a coleira.
Não
sei que bicho é. Não sei se é manso. Só sei que evito tudo.
Beber, fumar, amar, me drogar, sonhar, viajar, passar muito tempo
longe de casa, perder o controle, vomitar, virar do avesso, olhar
para ele. Eu não posso perder o controle porque não sei o tamanho
do meu bicho.
É
tanta raiva, eu sei. Meu bicho perdeu a data da vacina. Um corpo 52,
pés 33 e mãos menores que as do meu primo de dez anos. Isso é tudo
o que eu tenho contra ele. Esse é o tamanho da jaula que arrumaram
para a fera.
Como
pouco, sinto pouco, nado raso, amo o superficial, bebo só as
beiradas, belisco a vida. Tudo para me manter imaculada. Tudo para
sentir o mínimo possível o mundano das coisas. Tudo para ser quase
desumana de tanto negar a vida. Para negar minhas vontades de bicho.
Para jamais me lembrar dele. Eu sempre fico com fome, eu sempre
acordo antes de o sono acabar, eu sempre paro antes de o peito
arrebentar, eu sempre sento antes de a pressão cair, eu sempre tenho
prazer antes de sentir prazer. Eu sempre vou até onde é seguro. Eu
tenho medo do meu abismo e da soltura do meu bicho. O que ele pode
fazer comigo? O que ele pode fazer com você?
Tenho
medo do meu bicho. Medo de ir seja aonde for. De nunca mais voltar.
De esquecer quem eu sou. Medo de gritar bem alto no meio do
restaurante. Chutar carros. Rasgar contratos. Uivar para a lua. Dar o
bote. Matar ou morrer por uma questão de sobrevivência. Ranger os
dentes. Babar. Enfurecer os olhos. E ligar para aquela amiga falsa e
mandá-la à merda. Ela e sua pose de merda. E mugir aos ponderados
tão bem penteados. E encontrar o garoto-sorriso e picar de verdade o
seu peito. Fazer ninho em seu coração. Até sangrar. Até que eu
possa cantar ali dentro. Para ensurdecer o seu batimento. Quero
ganhar sem educações e civilidades.
Eu
tenho medo do tanto que ele rumina. Do tanto que ele jamais perdoa.
Ele guarda um mundo de rancor em seu corpo pronto para atacar. O
tempo todo. Meu touro pronto a sair chifrando o mundo. Expirando
diante de gente que torce contra e a favor. Tenho medo de que meu
bicho seja frágil e morra. E de só me restar uma casca, um
plástico, uma vida oca.
Talvez
eu seja injusta. Talvez ele seja apenas um cão de guarda me guiando
cega pelo mundo. Talvez um pássaro louco para sair voando. Mas tenho
medo. Não quero ver a cara dele. Tenho medo de ele esquecer que
tenho amigos, empregos e gente me julgando o tempo todo. E me fazer
bicho. Me fazer implorar carinho, comida, colo. Medo de ele andar com
o cu por aí, sem roupa, mostrando meu lado sujo para quem quiser
olhar. Medo de ele avançar, atacar, assustar. Medo de ele me comer
por dentro e eu sucumbir.
Medo
de eu me descontrolar. Calma, Monga! Calma! E virar a mulher-gorila.
E quebrar a jaula e afugentar todo mundo. “A Tati é louca. A Tati
é estranha.” Que medo de ser louca. Que medo de ser estranha. “Ela
brigou com o namorado, a amiga, a mãe, o chefe, a empregada, a
atendente da NET. Ela foi embora antes da hora, ela disse o que
sentia, ela fez cara de que estava tudo uma grande merda.” Calma,
Monga. Calma! E quem não briga, quem não é verdadeiro, em lugar de
bicho tem o quê? Câncer? Ninguém escapa dessa vida. Nem quem
medita. Nem quem compra a maior e a melhor coleira do universo.
Ninguém escapa. Nascemos bicho, morremos bicho e passamos a vida com
medo de saber que bicho somos.
Tenho
medo de ele ser mais forte que eu. Tenho mais medo ainda de ele ser
mais fraco. Mas pavor mesmo eu tenho quando é ele quem está com
medo. Medo de ele entrar em parafuso e eu parecer uma aberração.
Solta por aí. Se mijando, se cagando, se vomitando, dizendo que ama,
que odeia, sentindo coisas que não parecem muito humanas e ao mesmo
tempo são as que nos dão alguma humanidade. Pedindo abrigo, pedindo
comida, latindo, mugindo, miando, relinchando, coaxando, urgindo,
vendo o mundo de quatro, arregaçada no chão, com as tetas inchadas,
a barriga para cima, por um pouco de segurança. Um pouquinho só.
E
ele com medo é lama na certa. Ele me maltrata, pula em mim, rouba
minha fome, me martela o cérebro latindo mais alto que tudo, arranha
meu peito, caga no meu caminho, mija nas minhas certezas… Só
sossega quando volto para casa, para o equilíbrio, para o centro,
para o seguro. Até que eu seja eu novamente. Até que ele possa me
soltar para que eu esqueça dele aqui dentro e dos outros lá fora. E
siga a dura vida dos bípedes com dores nas costas e dentes grandes.
Ruth Manus, in Depois a louca sou eu
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