sábado, 11 de novembro de 2023

Então, eu era diferente de todos ali?


[…]
Então, eu era diferente de todos ali? Era. Por meu bom. Aquele povo da malfa, no dia e noite de relaxação, brigar, beber, constante comer. ― Comeu, lobo? E vozear tantas asneiras, mesmo de Diadorim e de mim já pensavam. Um dia, um disse! ― Eh , esse Reinaldo gosta de ser bom amigo... Ao quando o Leopoldo morreu ele quase morreu também, dos demorados pesares... Desentendi, mediante meu querer. Mas não me adiantou. Daí, persistentemente, essa história me remoía, esse nome de um Leopoldo. Tomava por ofensa a mim, que Diadorim tivesse tido, mesmo tão antes, um amigo companheiro. Até que, vai, cresci naquela ideia! que o que estava fazendo falta era uma mulher.
E eu era igual àqueles homens? Era. Com não terem mulher nenhuma lá, eles sacolejavam bestidades. ― Saindo por aí, ― dizia um ― qualquer uma que seja, não me escapole! Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas. ― Mulher é gente tão infeliz... ― me disse Diadorim, uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. Aqueles homens, quando estavam precisando, eles tinham aca, almiscravam. Achavam, manejavam. Deus me livrou de endurecer nesses costumes perpétuos. A primeira, que foi, bonita moça, eu estava com ela somente. Tanto gritava, que xingava, tanto me mordia, e as unhas tinha. Ao cabo, que pude, a moça ― fechados os olhos ― não bulia; não fosse o coração dela rebater no meu peito, eu entrevia medo. Mas eu não podia esbarrar. Assim tanto, de repente vindo, ela estremeceuzinha. Daí, abriu os olhos, aceitou minha ação, arfou seus prazeres, constituído milagre. Para mim, era como eu tivesse os mais amores! Pudesse, levava essa moça comigo, fiel. Mas, depois, num sítio perto da Serra Nova, foi uma outra, a moreninha miúda, e essa se sujeitou fria estendida, para mim ficou de pedras e terra. Ah, era que nem eu nos medonhos fosse ― e, o senhor crê? ― a mocinha me aguentava era num rezar, tempos além. As almas fugi de lá, larguei com ela o dinheiro meu, eu mesmo roguei pragas. Contanto que nunca mais abusei de mulher. Pelas ocasiões que tive, e de lado deixei, ofereço que Deus me dê alguma minha recompensa. O que eu queria era ver a satisfação ― para aquelas, pelo meu ser. Feito com a Rosa uarda, sempre formosa, a filha de Assis Wababa, sonhos meus, turcamente; e que a qual, não lhe disse: o pai dela, que era forte negociante, em todo tempo nanja que não desconfiou. Feito com aquela moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza. Digo ao senhor. Mas o senhor releve eu estar glosando assim a seco essas coisas de se calar no preceito devido. Agora: o tudo que eu conto, é porque acho que é sério preciso.
Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos-da-guarda. Só quase a boa gente. Sendo que são, por todos, estes: Capixúm ― caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Fonfrêdo ― que cantava todas as rezas de padre, e comia carne de qualidade nenhuma, e que nunca dizia de onde era e viera; o que rimava verso com ele: Sesfrêdo, desse já lhe contei; o Testa-em-Pé, baiano ladino, chupava muito; o Paspe, vaqueiro jaibano, o homem mais habilidoso e serviçal que já topei nesta minha vida; Dadá Santa-Cruz, dito o Caridoso, queria sempre que se desse resto de comida à gente pobre com vergonha de vir pedir; o Carro-de-Boi, gago, gago. O Catôcho, mulato claro ― era curado de bala. Lindorífico, chapadeiro minas-novense, com mania de aforrar dinheiro. O Diôlo, preto de beiço maior. Juvenato, Adalgizo, o Sangue-de-Outro. Ei, tantos; para quê que eu fui querer começar a descrever? Dagobé, o Eleutério, Pescoço-Preto, José Amigo...
Amigo? Homem desses, alguém dizendo a um que ele é demônio de ruim, ele ira de não querer ser, capaz até de nessa raiva matar o outro. Afirmo ao senhor, do que vivi! o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra. Ezirino matou um companheiro, que Batatinha se chamava, o pobre dum cafuz magrelo, só que tinha o danado defeito de contrariar qualquer coisa que a gente falava. Ezirino caíu no mundo. Daí, começou voz que ele tinha fugido para se bandear com os zé-bebelos, pago por sua traição, e que Batatinha somente morreu porque disso sabia. Todo o mundo andava encrêspo, forjicavam muita cilada e enredos de desconfianças. Mudamos para outros lugares, mais a coberto, em distância! obra de sete léguas, para a parte do poente. Muito vi que não estávamos fazendo isso por escapulir; mas que o Hermógenes, Titão Passos e João Goanhá, antes acharam de combinar aquilo, em suas conversas ― era o arrumo para melhores combates com Zé Bebelo. Ah, e, aí, lá chegaram, com satisfação de todos, dez homens, a Sô Candelário pertencidos. Traziam cargueiros com mais sal, bom café e uma barrica de bacalhau. Delfim era um daqueles, tocava. E o Luzié, alagoano de Alagôas. Nesse dia, eu saí, com esquadra, fomos rondar os caminhos de porventura dos bebelos, andamos mais de três léguas e tanto, no meio da noite retornamos.
De manhã cedo, eu soube! tinham até dansado, aquela véspera. ― Diadorim, você dansa? ― logo, perguntei. ― Dansa?
Aquilo é pé de salão... ― quem respondeu foi o Garanço, o de olhos de porco. Ouvindo o que, me sobrou um enjôo. O Garanço, era um mocorongo mermado, com estúrdias feições, e pessoa muito agradável de seu natural. Ele tinha ideias, às vezes parecia criança pequena. Punha nome em suas armas: o facão era torturúm, o revólver rouxinol, a clavina era berra-bode. Com ele, a gente ria, sempremente. Mais o Garanço dava de procurar a companhia nossa, minha e de Diadorim; aquele tempo ele vinha costumeiro para perto. As vezes, como naquilo, ele me produzia jeriza, verdadeira. Diadorim não dizia nada, estava deitado de costas, num pelego, com a cabeça num feixe de capim cortado. Ali naquele lugar ele contumaz dormia ― Diadorim menos gostava de rede. O Garanço era sanfranciscano, dum lugar chamado Morpará. Hás-de, queria que a gente escutasse ele recontar compridas passagens de sua vida. Aquilo aborrecia. Eu queria estar-estâncias: dos violeiros, que tocavam sentimento geral. Depois, Diadorim se levantou, ia em alguma parte. Guardei os olhos, meio momento, na beleza dele, guapo tão aposto ― surgido sempre com o jaleco, que ele tirava nunca, e com as calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre. De repente, uma coisa eu necessitei de fazer. Fiz: fui e me deitei no mesmo dito pelego, na cama que ele Diadorim marcava no capim, minha cara posta no próprio lugar. Nem me fiz caso do Garanço, só com o violeiro somei. A zangarra daquela viola. Por não querer meu pensamento somente em Diadorim, forcejei. Eu já não presenciava nada, nem escutava possuído ― fiquei sonhejando: o ir do ar, meus confins. Aí pensei no São Gregório? A bem, no São Gregório, não; mas peguei saudade dos passarinhos de lá, do pôço no córrego, do batido do monjolo dia e noite, da cozinha grande com fornalha acesa, dos cômodos sombrios da casa, dos currais adiante, da varanda de ver nuvens.
O senhor sabe?! não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças. Ou quero enfiar a ideia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do que não houve. As vezes não é fácil. Fé que não é.
[…]

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nenhum comentário:

Postar um comentário