segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Cimbelino


Na época de Augusto César, imperador de Roma, reinava na Inglaterra (então denominada Bretanha) um rei chamado Cimbelino.
A primeira mulher de Cimbelino morreu quando seus três filhos (dois meninos e uma menina) eram ainda de tenra idade. Imogênia, a mais velha, foi educada na corte do pai. Mas os dois filhos de Cimbelino foram raptados do próprio quarto, quando o primeiro tinha apenas três anos e o segundo era ainda criança de peito. O rei nunca descobriu o paradeiro deles, nem quem os roubou.
Cimbelino casou duas vezes: sua segunda esposa era uma mulher má e intrigante, uma cruel madrasta para Imogênia.
A rainha, embora odiasse Imogênia, queria casá-la com um filho seu, fruto de outro matrimônio anterior. Esperava, com isso, após a morte de Cimbelino, colocar a coroa da Bretanha na cabeça de seu filho Cloten, pois sabia que, se os filhos do rei não fossem encontrados, a princesa Imogênia seria a única herdeira do trono. Mas esse desígnio foi frustrado pela própria Imogênia, que se casou sem licença nem conhecimento do pai ou da rainha.
Póstumo (assim se chamava o marido de Imogênia) era o mais instruído e perfeito cavalheiro da época. Seu pai morrera na guerra, a serviço de Cimbelino, e sua mãe morrera de pesar com a perda do esposo.
Comovido com a sorte do órfão, Cimbelino adotara Póstumo (dera-lhe este nome, por ele haver nascido após a morte do pai) e educara-o em sua própria corte.
Imogênia e Póstumo estudaram com os mesmos mestres e brincaram juntos na infância. Amavam-se ternamente quando crianças e, aumentando com os anos o afeto, casaram secretamente ao chegarem na idade apropriada.
Desapontada, a rainha logo lhes descobriu o segredo, pois mantinha espiões vigiando continuamente a enteada. Imediatamente, ela comunicou ao rei o casamento de Imogênia com Póstumo.
Nada podia exceder a cólera de Cimbelino ao descobrir que a filha esquecera a sua alta dignidade, a ponto de se casar com um vassalo. Ordenou a Póstumo que deixasse a Bretanha, banindo-o de sua pátria para sempre.
A rainha, que fingia lastimar Imogênia pela dor de perder o marido, ofereceu-se para lhes proporcionar uma entrevista secreta antes da partida de Póstumo para Roma, onde ele residiria. Essa falsa bondade tinha como objetivo facilitar a realização dos seus projetos em relação a Cloten, pois pretendia persuadir Imogênia, após a partida de Póstumo, que seu casamento não era legal, por ter sido realizado sem o consentimento do rei.
Imogênia e Póstumo despediram-se ternamente. Imogênia deu ao esposo um anel de diamantes que pertencera à rainha sua mãe, e Póstumo prometeu nunca separar-se dele. Fechou depois uma pulseira no braço da esposa, pedindo-lhe que a conservasse com o maior cuidado, como penhor de seu afeto. Trocaram então os últimos adeuses, com juras de amor e fidelidade.
Imogênia permaneceu solitária e melancólica no palácio real, e Póstumo chegou a Roma, local que escolhera para seu exílio.
Logo, ele travou amizade em Roma com alguns alegres jovens de diferentes países. Estavam um dia a falar de mulheres e cada qual louvava as de sua própria terra, particularmente suas amadas. Póstumo, que sempre tinha a esposa em mente, afirmou que a linda Imogênia era a mais virtuosa, sensata e constante mulher do mundo.
Um deles, Iáquimo, ofendido, por uma dama da Bretanha ser colocada acima das suas patrícias romanas, provocou Póstumo, pondo em dúvida a constância da tão louvada esposa. Depois de muito altercarem, Póstumo aceitou a seguinte proposta de Iáquimo: iria ele à Bretanha e tentaria conquistar o amor de Imogênia. Apostaram que, se Iáquimo não conseguisse seu intento, teria de pagar uma grande quantia. Mas, se obtivesse os favores de Imogênia e a induzisse a lhe entregar a pulseira (que Póstumo lhe dera como penhor de mútuo afeto), então Póstumo teria de dar a Iáquimo o anel que recebera da esposa. Tamanha era sua confiança na fidelidade de Imogênia que ele não ponderou que a honra desta pudesse correr perigo com semelhante aposta.
Ao chegar à Bretanha, Iáquimo foi cortesmente acolhido por Imogênia, na qualidade de amigo de seu esposo. Quando começou a lhe fazer declarações de amor, entretanto, ela o repeliu com desdém e ele logo compreendeu que não obteria sucesso nos seus desonestos propósitos.
Seu desejo de ganhar a aposta, porém, fê-lo recorrer a um estratagema para enganar Póstumo. Com esse fim, subornou alguns criados de Imogênia, para que estes o introduzissem no quarto dela, encerrado num grande baú. Ali permaneceu, até que Imogênia se recolheu ao quarto e adormeceu. Então, saindo do baú, Iáquimo examinou o quarto com grande atenção e tomou nota de tudo quanto viu, observando principalmente um sinal que Imogênia tinha no pescoço. Depois retirou cuidadosamente do braço dela a pulseira que Póstumo lhe dera e meteu-se de novo no baú. Imediatamente partiu para Roma. E gabou-se a Póstumo de que Imogênia lhe dera a pulseira, permitindo-lhe até que passasse a noite no quarto dela. Para reforçar sua assertiva, acrescentou:
O quarto dela é todo forrado de seda e prata. Os desenhos representam a história da orgulhosa Cleópatra ao se encontrar com Antônio e constituem na verdade um admirável trabalho.
É verdade — concordou Póstumo —, mas podias ouvir falar disso sem ver.
A lareira — continuou Iáquimo — fica ao sul do quarto e tem uma pintura que representa Diana no banho. Nunca vi figuras tão vivas.
Podias ter ouvido contar — objetou Póstumo —, pois falam muito nessa pintura.
Minuciosamente, Iáquimo descreveu então o teto do quarto e acrescentou:
Quase ia me esquecendo: os suportes da lareira são dois cupidos de prata. — Afinal mostrou a pulseira e disse: — Conheces esta joia? Pois foi ela quem me deu. Ela própria tirou-a do braço. Parece-me que ainda estou a vê-la... Seu lindo gesto valorizou ainda mais o presente. Deu-ma e disse que já a tivera em grande estima.
Por fim, descreveu o sinal que notara no pescoço dela.
Póstumo, que ouvia essa perversa história entre as torturas da dúvida, explodiu então nas mais arrebatadas imprecações contra Imogênia. E entregou a Iáquimo o anel de diamantes, que se havia comprometido a lhe dar, se ele trouxesse a pulseira.
Depois, num impulso de ciumenta cólera, escreveu a seu fiel amigo Pisânio, cavalheiro da Bretanha e um dos oficiais da corte de Imogênia. Contou-lhe a prova que tivera da infidelidade da esposa e ordenou-lhe que levasse Imogênia para Milford-Haven, um porto marítimo de Gales, e ali a matasse. Ao mesmo tempo, escreveu uma ardilosa carta a Imogênia, pedindo-lhe que acompanhasse Pisânio, pois sentia que não podia mais viver sem ela e que, embora estivesse proibido, sob pena de morte, de voltar à Bretanha, iria a Milford--Haven, para vê-la. Sem nada suspeitar, pois amava o marido acima de tudo e desejava, mais do que a própria vida, tornar a vê-lo, Imogênia apressou a partida com Pisânio, seguindo viagem na mesma noite em que recebeu a carta.
Quando estavam próximos do fim da viagem, Pisânio, que, embora fiel a Póstumo, não estava disposto a ajudá-lo numa ação daquelas, revelou a Imogênia a cruel ordem que recebera.
Imogênia, que, em vez de encontrar um amoroso e amado esposo, se viu assim condenada à morte, caiu na maior aflição.
Pisânio convenceu-a a se tranquilizar e aguardar com paciência o dia em que Póstumo reconhecesse sua injustiça e dela se arrependesse. E como Imogênia, naquela situação, se recusasse a voltar com Pisânio para a corte paterna, ele a aconselhou a se vestir de rapaz, para maior segurança quando ficasse a sós. Ela concordou, planejando, com tal disfarce, chegar a Roma para ver o marido, a quem continuava a amar, embora tão barbaramente ele a houvesse tratado.
Depois de lhe fornecer trajes masculinos, Pisânio deixou-a entregue à sua incerta sorte, pois era obrigado a regressar à corte. Antes de partir, no entanto, deu-lhe um frasquinho de tônico, com o qual a rainha o presenteara, como um remédio infalível para todos os males.
A rainha odiava Pisânio, por sua amizade com Imogênia e Póstumo, e dera-lhe aquele frasco com o que supunha ser veneno — um veneno que pedira a seu médico, sob a alegação de querer experimentá-lo sobre alguns animais. Desconfiado dos seus intuitos malignos, o médico não a munira de veneno verdadeiro, mas lhe dera uma droga cujo único mal era causar, por algumas horas, um sono com todas as aparências da morte. Tal era a poção que Pisânio, julgando ser tônico, oferecia a Imogênia, recomendando-lhe que a usasse, caso se sentisse mal. E assim, com muitos votos de felicidade, despediu-se dela.
Quis a Providência que os passos de Imogênia a conduzissem até a moradia dos seus dois irmãos, roubados quando pequeninos. Belário, que os raptara, era um nobre falsamente acusado de traição e banido da corte de Cimbelino. Como vingança, roubara os dois filhos do rei, levando-os para uma floresta, onde passaram a viver numa caverna. Tendo-os raptado por vingança, sucedeu, porém, que começou a amá-los tão carinhosamente como se fossem seus próprios filhos e os educou cuidadosamente. Assim, ambos cresceram e se tornaram excelentes rapazes, cujo sangue principesco incitava às façanhas e ao perigo. Vivendo da caça, tornaram-se fortes e ousados e sempre insistiam com o suposto pai para que os deixasse tentar a sorte na guerra.
Foi à caverna onde moravam esses jovens que Imogênia teve a sorte de chegar. Perdera-se na grande floresta, na qual se embrenhara em busca de um caminho para Milford-Haven, de onde pretendia embarcar para Roma. Sem conseguir alimento, estava a ponto de morrer de fraqueza e fome — não basta um traje masculino para capacitar uma jovem dama, carinhosamente criada, a suportar a fadiga de percorrer uma floresta solitária, como se fosse um homem. Avistando aquela caverna, nela entrou, na esperança de encontrar alguém que lhe desse algum alimento. Achou a caverna deserta, mas, olhando ao redor, descobriu alguma carne fria. Sua fome era tão premente que, não podendo esperar convites, ela se assentou e pôs-se a comer.
Ah! — lamentou-se consigo mesma. — Que aborrecida é a vida de homem!
Como estou cansada! Por duas noites seguidas dormi na relva. Se minha resolução não me sustentasse, eu cairia doente. Quando Pisânio me mostrou Milford--Haven do alto da montanha, parecia tão perto!
Veio-lhe então à mente a lembrança do marido e de sua cruel sentença:
Meu querido Póstumo, tu és um pérfido!
Os dois irmãos de Imogênia, que tinham ido à caça com seu pretenso pai, Belário, estavam nesse momento de volta à caverna. Belário lhes dera os nomes de Polidoro e Cadwal, e eles se supunham seus filhos. Mas seus verdadeiros nomes eram Guidério e Arvirago.
Belário entrou primeiro na caverna e, vendo Imogênia, fez os filhos parar:
Não entrem ainda. Estão a comer nossos alimentos. Será coisa de espíritos?
Que há, senhor? — perguntaram os jovens.
Por Júpiter! — exclamou Belário. — Há um anjo na caverna, ou pelo menos parece um anjo...
E assim parecia Imogênia, tão linda nas suas vestes de rapaz.
Ouvindo as vozes, ela foi até o limiar da caverna e lhes dirigiu estas palavras:
Bons senhores, não me façam mal. Antes de entrar na caverna, eu tencionava pedir ou comprar o que comi. Na verdade, nada roubei, nem o faria, embora encontrasse ouro espalhado pelo chão. Aqui está o dinheiro de minha comida e que tencionava deixar sobre a mesa ao partir, com bênçãos para os que assim me alimentaram.
Eles se recusaram terminantemente a aceitar o dinheiro.
Vejo que estão incomodados comigo — disse a tímida Imogênia. — Mas, senhores, se quiserem matar-me por minha falta, saibam que eu teria morrido se não a cometesse.
Qual é teu destino? — inquiriu Belário. — E como te chamas?
Fidele é meu nome — respondeu Imogênia. — Tenho um parente que parte para a Itália. Embarcou em Milford--Haven e foi, ao dirigir-me ao seu encontro, que eu, cheio de fome, me vi obrigado a incorrer nessa falta.
Por favor, belo jovem — interrompeu o velho Belário —, não nos julgues grosseiros, nem avalies nosso espírito pelo rústico lugar em que vivemos. Foi bom teres vindo. É quase noite. Terás melhor trato antes de partires, e os nossos agradecimentos por haveres ficado e comido conosco. Rapazes, deem-lhe as boas-vindas.
Os gentis rapazes, irmãos dela, acolheram então Imogênia na caverna com muitas frases amáveis, garantindo que haviam de amá-la (ou “amá-lo”, como diziam) tal qual a um irmão. Penetrando na caverna, Imogênia encantou-os com suas habilidades de dona de casa, ao preparar-lhes, para ceia, a caça que eles haviam trazido. Embora atualmente não seja costume que as mulheres de alto nascimento entendam de cozinha, assim não era naquele tempo, e Imogênia mostrava-se perita nessa arte vital. E, como seus irmãos amavelmente diziam, era como se Juno estivesse doente e Fidele fosse seu cozinheiro.
E além disso — considerou Polidoro — ele canta como um anjo!
Observaram também um para o outro que, embora Fidele sorrisse tão docemente, uma triste melancolia parecia nublar-lhe o amável rosto, como se tivessem tomado conta dele, ao mesmo tempo, o pesar e a resignação.
Devido às suas gentis qualidades (ou talvez por causa do parentesco que ainda desconheciam), Imogênia (ou Fidele, como lhe chamavam os rapazes) tornou-se o ídolo dos irmãos. Ela não os amava menos, pensando que, se não fosse a lembrança de seu querido Póstumo, seria capaz de viver e morrer na caverna, em companhia daqueles jovens. Assim, aceitou de bom grado permanecer com eles, até se refazer das fadigas da viagem.
Depois de comerem a carne que haviam trazido, eles saíram em busca de mais caça, mas Fidele não pôde acompanhá-los por não se sentir bem. O pesar pelo procedimento do marido e o cansaço de vaguear pela floresta eram sem dúvida a causa de sua doença.
Eles então se despediram dela e partiram para a caça, louvando pelo caminho as nobres qualidades e graciosas maneiras do jovem Fidele.
Ao ficar a sós, Imogênia lembrou-se do tônico que Pisânio lhe dera e tomou-o, caindo então num sono profundo, em tudo semelhante à morte.
Quando Belário e os irmãos dela voltaram da caçada, Polidoro foi o primeiro a entrar. Julgando-a adormecida, descalçou os pesados sapatos para que nenhum rumor a despertasse, tamanha era a delicadeza que aflorara no espírito selvagem dos príncipes. Mas logo percebeu que ela não poderia ser despertada por barulho algum e concluiu que estava morta. Polidoro pôs-se a chorá-la com um terno e fraternal sentimento, como se nunca tivessem vivido separados.
Belário propôs então carregarem-na para o interior da floresta e ali lhe celebrarem os funerais com solenes cânticos, como então era costume.
Os dois irmãos de Imogênia levaram-na para um recesso abrigado e sombrio, depuseram-na delicadamente sobre a relva, entoaram os cânticos pelo repouso de sua alma e cobriram-na de folhas e flores.
Enquanto o verão durar e eu aqui viver, Fidele, virei diariamente visitar tua sepultura. A pálida primavera, a flor que mais se parece com a tua face, a glicínia, da cor das tuas veias, e a folha da eglantina, que não é mais suave do que o teu hálito, todas estas flores eu desfolharei sobre ti. E no inverno, quando não houver flores, hei de cobrir-te de musgos o querido corpo — declarou Polidoro.
Findas as cerimônias fúnebres, eles se retiraram cheios de tristeza.
Não fazia muito tempo que fora deixada sozinha, quando, passado o efeito da droga, Imogênia despertou e facilmente sacudiu a leve coberta de folhas e flores que tinha sobre o corpo. Ergueu-se e, imaginando ter sonhado, disse consigo:
Parece-me ter estado numa caverna e cozinhado para umas boas criaturas... Mas como acordei toda coberta de flores?
Não podendo achar o caminho para a caverna e não encontrando sinal dos seus novos companheiros, chegou à conclusão de que aquilo tudo não passava de um sonho. E mais uma vez reencetou a viagem, esperando chegar afinal a Milford-Haven, de onde embarcaria em algum navio para a Itália. Todos os seus pensamentos ainda estavam em Póstumo, com quem pretendia encontrar-se, disfarçada de pajem.
Mas nesse tempo estavam sucedendo grandes acontecimentos de que Imogênia nada sabia. Recomeçara subitamente uma guerra entre o imperador romano Augusto César e Cimbelino, rei da Bretanha. E um exército romano desembarcara para invadir a Bretanha, tendo avançado até a floresta pela qual viajava Imogênia. Com tal exército viera Póstumo.
Embora chegasse à Bretanha com os romanos, ele não tencionava lutar contra os seus próprios patrícios, mas pretendia juntar-se ao exército da Bretanha e bater-se pela causa do rei que o banira.
Continuava convencido de que Imogênia lhe fora infiel. Contudo, a morte daquela a quem tanto amava e que morrera por sua ordem (pois Pisânio lhe escrevera dizendo que cumprira à risca suas instruções) lhe pesava no coração. Por isso, voltava ele à Bretanha, desejando, ou morrer em combate, ou ser condenado à morte por Cimbelino, por haver regressado do exílio.
Imogênia, antes de alcançar Milford-Haven, caiu em poder do exército romano. Por seu aspecto e boas maneiras, foi levada para servir de pajem a Lúcio, o general romano.
As forças de Cimbelino também avançavam ao encontro do inimigo. Ao entrarem na floresta, Polidoro e Cadwal juntaram-se a elas. Os jovens estavam ansiosos por praticar atos de bravura, embora nem por sombras desconfiassem de que iam combater pelo próprio pai. Também o velho Belário uniu-se a eles na batalha. Há muito se arrependera do mal que fizera a Cimbelino, raptando-lhe os filhos, e, tendo sido guerreiro na juventude, juntou-se alegremente ao exército para combater pelo rei a quem tantos desgostos causara.
Uma grande batalha se travou entre os dois exércitos.
E os britânicos teriam sido derrotados e morto o próprio Cimbelino, se não fosse o extraordinário valor de Póstumo, de Belário e dos dois filhos do rei. Eles acudiram ao rei, salvaram-lhe a vida e de tal modo influíram na sorte das armas que os britânicos obtiveram a vitória.
Terminada a batalha, Póstumo, que não achara a sonhada morte, entregou-se a um dos oficiais de Cimbelino, na esperança de ser morto por ter voltado do exílio.
Imogênia e o general a quem ela servia foram feitos prisioneiros e levados à presença de Cimbelino, bem como Iáquimo, que era oficial do exército romano. Quando tais prisioneiros se achavam perante o rei, foi introduzido Póstumo, para receber sua sentença de morte. Por singular coincidência, também Belário, com Polidoro e Cadwal, foram levados à presença de Cimbelino, a fim de receberem a recompensa devida aos grandes serviços que haviam prestado ao rei. Como fazia parte da comitiva real, também Pisânio se achava presente.
Estavam agora, pois, em presença do rei (cada qual com diferentes esperanças e temores) Póstumo e Imogênia, esta com seu novo senhor, o general romano; o fiel vassalo Pisânio e o falso amigo Iáquimo; e também os dois perdidos filhos de Cimbelino, com Belário, que os raptara.
O general romano foi o primeiro a falar. Os restantes permaneceram em silêncio, por mais que lhes palpitasse de angústia o coração.
Imogênia viu Póstumo e reconheceu-o, embora estivesse ele disfarçado de camponês, mas ele não a reconheceu sob seus trajes masculinos. Imogênia reconheceu Iáquimo, bem como o anel que este trazia no dedo e que a ela pertencia, mas não sabia ter sido ele o autor de todas as suas desgraças. E permanecia, diante de seu próprio pai, como um prisioneiro de guerra.
Pisânio reconheceu Imogênia, pois fora ele quem a fizera vestir-se de rapaz. “É minha senhora”, pensou ele. “Já que está viva, deixemos ao tempo a solução de tudo.”
Eu juraria que é aquele jovem, ressuscitado — sussurrou Polidoro.
Um grão de areia — replicou Cadwal — não se parece tanto com outro grão de areia quanto este belo moço com o falecido Fidele.
É o próprio morto-vivo — garantiu Polidoro.
Qual! — duvidou Belário. — Se fosse ele, certamente teria falado conosco.
Mas nós o vimos morto — segredou de novo Polidoro.
Cala-te — replicou Belário.
Póstumo esperava em silêncio a bem-vinda sentença de morte. Resolvera não revelar ao rei que lhe salvara a vida na batalha, com medo de que isso induzisse o soberano a lhe conceder o perdão.
Lúcio, o general romano que tomara Imogênia sob sua proteção como pajem, foi, como já dissemos, o primeiro a falar. Era um homem de grande coragem e nobre dignidade e assim se dirigiu ao rei:
Ouvi dizer que não aceitais resgate por vossos prisioneiros e os condenais todos à morte. Sou romano e, como romano, aceitarei a morte. Mas há uma coisa que eu desejaria pedir. — Então, apresentando Imogênia ao rei, falou: — Este rapaz é britânico de nascimento. Deixai que seja resgatado. Nunca um amo teve pajem tão bom, tão aplicado, tão serviçal em todas as ocasiões, tão atento. Nunca fez mal a nenhum britânico, embora servisse a um romano. Salvai ao menos esse, se a ninguém mais poupardes.
Cimbelino fitou atentamente a filha Imogênia. Não a reconheceu sob aqueles disfarces, mas decerto a sábia natureza lhe esclareceu o coração, pois ele anunciou:
Com certeza, já o vi antes; sua fisionomia me é familiar. Não sei por que motivo te digo: “Vive, jovem”, mas concedo-te a vida. Pede-me o que quiseres, que te atenderei, mesmo que seja a vida do mais nobre dos meus prisioneiros.
Agradeço humildemente à Vossa Majestade — disse Imogênia.
Todos estavam ansiosos para ouvir por quem o pajem intercederia. E Lúcio, seu amo, disse:
Não te peço minha vida, meu bom rapaz, mas sei que é isso que tu vais pedir.
Infelizmente não — disse Imogênia. — Minha missão é outra, meu bom senhor. Por vossa vida, não posso interceder.
Essa aparente falta de gratidão espantou o general romano.
Imogênia, então, fixando o olhar em Iáquimo, pediu apenas isto: que Iáquimo fosse obrigado a confessar como obtivera o anel que trazia no dedo.
Cimbelino acedeu e ameaçou Iáquimo com torturas se ele não confessasse a verdade.
Iáquimo fez então uma completa narrativa de sua vilania, contando a história da aposta com Póstumo e como conseguira iludir-lhe a credulidade.
O que Póstumo sentiu ao ouvir essa prova da inocência da esposa não pode ser expresso por palavras. Avançou imediatamente e confessou a Cimbelino a cruel sentença que ele fizera Pisânio executar contra a princesa. E exclamava desesperadamente:
Ó Imogênia, minha rainha, minha vida, minha esposa! Ó Imogênia, Imogênia, Imogênia!
Imogênia não pôde ver seu querido esposo naquele estado sem se dar a conhecer, para a indescritível alegria de Póstumo, que ficou assim aliviado do peso do remorso e restituído às boas graças daquela a quem tão cruelmente tratara.
Quase tão arrebatado de alegria quanto ele por encontrar a filha perdida, Cimbelino restituiu-lhe o antigo lugar na afeição paterna e concedeu seu perdão a Póstumo, reconhecendo-o como genro.
Belário escolheu esse momento de alegria e reconciliação para confessar sua culpa. Apresentou Polidoro e Cadwal ao rei, dizendo-lhe que eram seus dois filhos perdidos, Guidério e Arvirago.
Cimbelino perdoou o velho Belário. Pois quem podia pensar em castigos num instante de tamanha felicidade? Encontrar a filha viva e os filhos desaparecidos nas pessoas daqueles jovens que tão corajosamente lhe haviam salvado a vida — que maior ventura podia esperar?
Imogênia desejou então prestar um serviço a seu antigo amo, o general romano Lúcio, cuja vida o rei prontamente poupou, a seu pedido.
Resta ainda falar da rainha, a perversa esposa de Cimbelino. Desesperada com o malogro dos seus planos e cheia de remorsos, ela adoeceu e morreu, não sem ver primeiro seu tresloucado filho Cloten morto numa rixa que ele próprio provocara. Mas são acontecimentos demasiado trágicos, que devem apenas ser relatados de passagem, para não atrapalhar o feliz desenlace desta história. Basta que tenham sido felizes os que o mereceram. Até o pérfido Iáquimo, desmascaradas suas intrigas, foi despedido sem maior castigo.

William Shakespeare, in Contos de Shakespeare

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