A
mão vermelha de Dois Amanhãs sobre o peito negro de Meio da Noite
era um pouco de fogo aberto num lugar onde tudo parecia haver ardido.
Os seus corpos tinham algo de profundo desencontro e ávido
entendimento. Assemelhavam-se na distância. Como dois tempos
distintos de uma mesma coisa. Haviam convivido por cumplicidade e
afeiçoavam à lentidão, tinham nenhuma pressa, certamente incautos.
A mão vermelha de Dois Amanhãs afagava aquele peito agora aflito,
que entoava:
se
o sagrado Honra precisar de navegar, eu precisarei de navegar.
A
feminina pedia que não partisse. Caçar o inimigo depois do primeiro
mar, na maior ilha distante, era memória de muito poucos abaetés, a
ancestralidade ensinava a pertura das aldeias, ensinava o equilíbrio
daquelas caças e pescas, sabiam de muito cultivo, faziam uma vida
grande no lugar tão perfeito que habitavam. Domesticadas as
sementes, tão simples dádiva abundante, as lonjuras eram sempre
mais arrogantes. As ilhas dos três mares bastavam. Agigantavam ainda
mais por dentro. Por dentro de cada um. E só quem não sabia a paz
ponderava a ideia triste de partir. Ela assim insistia mas o negro
tomava sua mão de fogo, beijava com suavidade e repetia:
se
o sagrado Honra navegar, eu navego.
O
feio negro, peremptório, era já um pouco longe.
Dois
Amanhãs correu a Pai Todo e logo se melhorou nas palavras para
merecer sua atenção, a pedir que intuísse um impedimento para que
os feios partissem. Ela entoava:
sagrado
Pai Todo, nosso santo, Honra decide navegar. Faz com que fique. Temo
que afunde, que seja mordido por peixes com bocas de dois jacarés,
dez jacarés ou vinte, vai ser caçado por todos os cuspes, todos os
ferros, ele estará diante das mil feras brancas que o haverão de
matar até ao último pedaço. Peço-lhe, sagrado Pai Todo, faz com
que fique. Faz o feio ficar.
Eram
ainda as palavras de Dois Amanhãs e já os feios se prostravam
também aos pés do santo. Honra pedia:
santo,
deixa-me ir. Atravesso toda a água que houver para chegar ao inimigo
essencial. Mato e regresso debaixo de nossa alegria. Sagrado Pai
Todo, eu montarei o tremendo animal líquido e não morrerei nem para
ir nem para voltar. Deixa-me ir. Escuta na Voz Coral meu caminho e
aponta minha navegação. Vamos matar esse inimigo que atormenta
minha mãe e me atormenta. Por nossa dignidade. Seremos alegres,
depois. Seremos para sempre alegres.
O
pajé fumou sentado. Sua majestade era matutina, muito começadora,
como se acabasse de chegar do sono ou de uma visão. Estava fresco,
quase frio, os olhos fechando de ainda não frequentarem a luz. Ele
demorava. Os feios e Dois Amanhãs ansiavam agora silentes. Mais
demorasse seria certa a Voz Coral em seu ouvido e a prudência
haveria de gerar em suas respostas.
Quando
o santo suspirou, Honra, Meio da Noite e Dois Amanhãs abateram
novamente aos seus pés e escutaram:
a
guerra abaeté é uma defesa, não é um ataque. Terás de decidir
se, guerreando para atacar, haverá condição de regresso e se
saberás ainda maturar para a nossa alegria. Não há caminho senão
esse, o da alegria.
Honra
insistiu:
mas
se o inimigo abeira. Está nas ilhas. Sua proximidade é ameaça,
requer defesa.
Então,
o santo respondeu:
tu
inteiro és a máscara do branco. Um abaeté mascarado. E abeiras o
animal inimigo nesse perfeito disfarce. Sabes sua língua. Poderás
passar apenas para observar, ver de perto como sobrevive e para que
sobrevive. Eu esperava de ti esta partida, mas nossa necessidade é
com outro medo que não a raiva da vingança. Nossa cultura é sob a
ameaça de uma palavra abissal. Uma ideia que preda o modo como
vivemos, o nosso tempo concreto, sem mentira.
O
feio perguntou:
o
que preda. Que ideia é essa.
O
santo respondeu:
uma
mentira sobre o tempo que nos impede de viver quando somos e nos adia
para quando jamais haveremos de ser. Chama-se futuro. É uma ideia
para onde tudo cai, os que soam, os bichos, as matas, os mares, o
mundo inteiro, até a morte e a encantaria. O futuro é a ideia
branca que abre por sobre todas as palavras para as adoecer, e por
sob todos os pés e todas as raízes, obrigando à pronúncia apenas
depois, num depois que, por definição, não acontece.
Honra
entoou:
não
sinto.
O
santo entoou:
és
despreparado para a tarefa de abeirar o branco. Se partires, talvez
não saibas como voltar. Ficarás à deriva nesse inimigo vocabular
que te levará da lucidez abaeté. Estarás fora da lucidez abaeté.
Angustiado como se angustia o animal branco por sucumbir ao predador
que ele próprio imaginou. Honra, se partires, poderás jamais
escapar da língua suja que habita agora tua boca, a toca do
espírito, ficarás a entardecer no que entoarás criando apenas o
sofrimento inimigo. Um sofrimento cada vez maior e sempre mais
apartado da alegria. Irás para branco. Cada vez mais branco,
explicado por sua língua até que ela renasça cada coisa e todas as
coisas sejam sua fealdade para sempre.
O
guerreiro branco respondeu:
não
sinto.
O
pajé entoou:
és
torto.
Honra
entoou:
partirei.
E saberei voltar. Eu saberei.
O
santo respondeu:
todos
te amamos, Honra. Só seremos capazes de te amar.
Chorando,
Dois Amanhãs perguntou:
e
eu, que farei.
O
santo respondeu:
fiarás
o mais delicado colar. Como todas as amorosas, adornarás o peito do
guerreiro que amas se ele houver de regressar. Depois, sofrerás o
que ele obrigar e sonharás que haverá ainda alegria. Tu e toda a
comunidade assim sonharão.
Pai
Todo levantou e chefiou que a comunidade chorasse. A comunidade
chorou.
Os
feios, por obstinada guerra, eram longe. Ambos longe. A aldeia
escorria de sob os seus pés.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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