Eis
o que trouxemos para a nossa guerra.
Entoaram
os feios e todos se abeiraram estupefactos. E o tardio santo abeirou
também e sorriu. Era verdade. Junto do branco tombado, bravos em seu
pouco jeito, os dois guerreiros ainda pequenos responsabilizavam-se
por uma conquista sem precedentes. Pai Todo ergueu um gesto, e as
penas em seu cabelo e em seus braços rebrilharam à luz. Chefiou que
se cuidasse do morto. Tomar-lhe a cabeça para o coto da figueira,
limpar-lhe os ossos para as utilidades do brio guerreiro e das
canções. A comunidade foi escolher suas pequenas pedras para
depósito na toca do espírito. Pai Todo alegrou explicando que
intuíra imediatamente o nome de abrigo para o inimigo, que mudaria
abençoado para a encantaria abaeté e sanaria de ser torto. O
inimigo seria Mão Abundante. Oferecera o grito de ferro ao povo das
ilhas dos três mares, viera à mata por inusitada generosidade, sua
mão abundou uma preciosidade aos abaeté. A Verdadeiríssima
Divindade assim o quis.
A
comunidade acendeu os fogos, fumou seus cheiros, cantou e dançou e,
um a um, abeirou a cabeça do inimigo e, depositando a pequena pedra
na boca, entoou:
Mão
Abundante, nossas ilhas, nossos igarapés e três mares, nossa
memória e alegria, todos os bichos e todas as originalidades te
celebrem com a sacralização eterna e a paz, e teu espírito esteja
aninhado no coro da Pedra Que Soa até que regresse na promessa do
osso do relâmpago.
Naquela
noite, a comunidade celebrou intensamente os guerreiros feios,
abeirando deles e levantando as vozes com seus nomes. E eles
exultavam, sempre alegres também, e sentindo que valia a pena
tornarem-se implacáveis. Quando o pajé instruiu Meio da Noite para
entoar as palavras de abrigo, o negro atrapalhou. Era ainda bastante
exterior àquela convicção. Entoara sem significar demasiado e
estava nada convencido de que seriam capazes de educar os mortos.
Honra,
por seu lado, entoara as palavras de abrigo diante da cabeça branca
e outra vez misturava seus sentimentos. Confessaria ao amigo:
quero
que a pronúncia do nome Mão Abundante paire no som podre. Um nome
podre, sem eternidade. Quero que a sua pronúncia seja sepultura. Não
gosto que lhe conceda vida alguma, pensamento, modo de sentir. Eu
desejo que o inimigo termine com a morte e jamais se admita na nossa
encantaria, normalizado, desculpado, educado para nossa alegria.
Direi seu nome a significar-lhe toda a tristeza e a entregar toda a
repulsa. Eu apenas odeio o inimigo, sagrado Meio da Noite, eu apenas
odeio o inimigo, não lhe posso levar salvação alguma, não sinto
tão grande gentileza, não sou tão feito de bondade. Matei, quero
que se conserve morto.
Era
torto. O feio negro pressentiu que o amigo estava errado.
*
Boa
de Espanto e Altura Verde celebraram o filho e o cantaram também, em
seu redor a fazer alarido e levantando cores, cheios de ofertas nas
mãos, coisas bonitas que orgulhavam a todos. Então, parada de
dançar, uma feminina jovem se sentou e sucumbiu ao desejo por Honra.
Era Dois Amanhãs, a jovem singular que demorava em ser dupla,
suspirava em abandono pela mata sem sentir vontade. Dois Amanhãs,
ali sentada sem proferir palavra, decidiu que Honra era bom de toque,
haveria de agradar mexer, e sentiu-se incapaz de lutar contra essa
constatação. Foi Altura Verde quem notou e avisou o filho:
bravo
guerreiro, Dois Amanhãs olha para ti. Está a convidar-te para as
folias da fertilidade. Ela sucumbiu. Honra, a feminina é sagrada.
Jamais esqueças o sagrado que somos. E toma o que é teu.
A
magnitude de ser um matador era infinita. Sua fealdade vergava
perante o ímpeto, a força, a bondade de seu gesto para o povo
abaeté. O feio branco, soberbo subitamente, esfaimou mais do que
nunca de mexer no segredo de uma feminina e abeirou Dois Amanhãs
impaciente. A feminina levantou e correu cerca fora, mata adentro
para ser caçada e colhida pelo guerreiro que acabara de admitir.
Assim, correu também Honra, ligeiro e sem peso por sobre todos os
obstáculos, e muito depressa deteve a fuga sedutora da feminina e
lhe deitou por cima do corpo. Ansiava pelo sabor do corpo dela.
Sentira por vezes o cheiro. Como pairava o cheiro das femininas em
algumas tarefas e até no tempo de dormir. Mas nunca lhes levara a
boca. Queria mexer-lhe e ser mexido. Molhar-se nela. Misturar como se
pudessem ser indestrinçáveis. E ele mexeu e saboreou. A feminina,
também apenas agora começando suas folias para a fertilidade,
regozijou. Era alegre. Seu gemido era alegre. Honra sabia disso. Eram
ambos dentro da bênção.
Quando
amainaram, mal deitados no chão da mata, o guerreiro sempre ferido
chefiou que ela mexesse no corpo do negro.
O
negro,
ele
entoou,
é
meu gémeo. Somos iguais pela fúria. Vamos ser iguais pela glória.
A
feminina sorriu. Imaginou que a folia do negro houvesse de aleijar,
fazer doer. O guerreiro branco lhe garantiu:
é
digno. O animal negro é digno. Ele é alguém.
A
feminina, então, respondeu:
tem
o bafo podre. Bafeja como o jacaré. Eu não beijo. Não vou beijar o
negro jamais.
Honra
riu. Ter mexido na feminina trazia uma paz inesperada. Era o
contrário da guerra, definindo a vida dos abaeté. Era a demissão
de tanta guerra, por um instante. Por um muito breve, gratificante,
instante, Honra sobrava ali como um sentimento perfeito, sem ser
guerreiro, sem ser mais nada senão um espírito liberto de sua
angústia.
Escutou,
depois, seu nome entoado na mata:
sagrado
Honra. Sagrado Honra. Pai Todo te chama.
*
Quando
abeirou do terreiro, ainda antes de estar exposto no largo espaço
aberto, a comunidade sorriu. O feio branco escutou:
o
osso mais limpo para as tuas canções. Terás como esculpir sua
delicadeza para que sopre perfeito. Esta será tua flauta de opaco,
teu primeiro grande troféu de opaco. Com ela, manterás a memória
da sapiência abaeté e criarás o fascínio com que todos te
receberão pelo orgulho de nosso povo. Toma, Honra, dentro deste osso
te esperam as canções. Com cuidado e gratidão, haverás de as
trazer aos nossos ouvidos e todos te amaremos. És dentro do nosso
amor.
Então,
Pai Todo chefiou que a comunidade chorasse, e a comunidade chorou.
Honra
tomou o osso limpo do inimigo e se deu de asco. Queria mordê-lo,
ferrá-lo como as cutias, desfazê-lo na poeira, disfarçá-lo por
completo entre os poros do areal. O guerreiro branco tomou o longo
osso limpo e caminhou às arrecuas e todos se puseram em cantos e
danças e ele estremecia sempre de asco. Foi Meio da Noite quem o
percebeu e, antes que estivesse denunciado, pediu:
deixa-me
ver, sagrado Honra. Deixa-me ver como se esconde nesse osso a mais
bela flauta.
Tomou
o osso e espantou. Segurava o pedaço morto de um branco como se
fosse um resto de animal de refeição, o resto de uma refeição, um
pedaço morto de um bicho qualquer sem sapiência, sem ternura, sem
memória de sua família, sem amigar de ninguém. Meio da Noite
espantou e temeu, mas jamais vacilaria naquele momento. Calou.
Acompanhou o amigo para distante e sentou onde ele quis sentar.
Então, entoou:
eu
sei onde há mil ossos. Sei onde fica a mata branca de Pé de
Urutago, feita de tantos pedaços dos mortos que já nenhuma memória
deles sobra, se eram brancos, se eram vermelhos, se eram talvez
negros, dos meus povos negros. Ali, estou certo, podes depositar esta
flauta que nunca tocará e tomar outra inesperada. Uma flauta que se
possa fazer de um osso que já não espera vocação para ser das
canções, para ser nas mãos alegres dos que vivem. E essa flauta
tocará e será livre da impressão ascorosa que sentes. Ensino-te o
caminho, sagrado Honra. Ensino-te o caminho para a mata de osso.
Batiam
os tambores com vigor. A comunidade festejava ainda e Pai Todo
expunha no alto das mãos o grito de ferro. Os abaeté eram
triunfantes. O terreiro levantava uma parda terra de tanto pisarem na
alegria, de tanto quererem inscrever na terra a vibração eufórica
daquela conquista. O grito de ferro era distinto. Uma ave depenada, o
bico antipático, o pé largo como pata aleijada que não servia para
o deixar erguido no chão. O grito de ferro subia nas mãos do tardio
santo e todos se abeiravam corajosos e entoavam a gratidão.
Meio
da Noite entoou:
caminharemos
muito pela acalmia da escuridão. Quando chegarmos à mata branca,
ela sozinha se iluminará, tão ostensiva se torna por uma nesga de
luar. Foi como a descobri quando fugia, sem saber, nesta direcção.
A mata branca é toda morta e, se alguma coisa lhe imita vida, é a
capacidade de cintilar. Pensarás, depois, o que haverá de
significar tão imensa sementeira. Por que se semeiam os ossos. Por
que se erguem uns sobre os outros por absurda vegetação. Que folha
dá o osso. Que flor dá o osso. Perguntarás, como eu. O que fará
Pé de Urutago com o resto de tantos inimigos.
O
guerreiro branco olhou em redor. Havia ninguém. Sentia que era
tocado, mas havia ninguém. Perguntou:
estarás
emocionado. Será emoção que te acontece.
Mas
Meio da Noite não respondeu. Era um apagão indistinto entre as
outras sombras. Honra, ainda assim, seguia com a impressão de não
estar só. Alguma coisa tocava seu corpo. Ele entoou:
não
pode existir uma mata de osso. Tens de estar emocionado. Escolheste a
mentira. Isso, sem mais nada, pode matar-te.
Lembrava
da promessa à mãe.
O
guerreiro branco, agora matador, agora mexido por uma feminina,
maturava em sua opacidade. Era outro. Começava a ser outro e não
tinha intenção alguma de regresso. Pai Todo pareceu afirmar-lho:
entoas
como se fosses uma multidão.
Tomou
o grito de ferro de suas mãos e estranhou. Repetiu:
sagrado
Honra, entoas como se fosses uma multidão.
Outra
vez o guerreiro sempre ferido se sacudiu. Ao fundo do terreiro, como
era hábito, sob a andiroba, Meio da Noite aguardava na frescura
possível. A comunidade era normal. A alegria abaeté prosseguia. O
santo erguia uma e outra vez o grito de ferro. As celebrações não
terminavam. Eram eufóricas. Cada guerreiro e cada feminina, cada
curumim e cada curatã entoavam:
obrigado,
Mão Abundante.
O
espírito do inimigo estaria já aninhado na Pedra Que Soa, salvo
para sempre, educado para a boa morte dos abaeté.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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