quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Capítulo quinze | A nossa guerra



Eis o que trouxemos para a nossa guerra.
Entoaram os feios e todos se abeiraram estupefactos. E o tardio santo abeirou também e sorriu. Era verdade. Junto do branco tombado, bravos em seu pouco jeito, os dois guerreiros ainda pequenos responsabilizavam-se por uma conquista sem precedentes. Pai Todo ergueu um gesto, e as penas em seu cabelo e em seus braços rebrilharam à luz. Chefiou que se cuidasse do morto. Tomar-lhe a cabeça para o coto da figueira, limpar-lhe os ossos para as utilidades do brio guerreiro e das canções. A comunidade foi escolher suas pequenas pedras para depósito na toca do espírito. Pai Todo alegrou explicando que intuíra imediatamente o nome de abrigo para o inimigo, que mudaria abençoado para a encantaria abaeté e sanaria de ser torto. O inimigo seria Mão Abundante. Oferecera o grito de ferro ao povo das ilhas dos três mares, viera à mata por inusitada generosidade, sua mão abundou uma preciosidade aos abaeté. A Verdadeiríssima Divindade assim o quis.
A comunidade acendeu os fogos, fumou seus cheiros, cantou e dançou e, um a um, abeirou a cabeça do inimigo e, depositando a pequena pedra na boca, entoou:
Mão Abundante, nossas ilhas, nossos igarapés e três mares, nossa memória e alegria, todos os bichos e todas as originalidades te celebrem com a sacralização eterna e a paz, e teu espírito esteja aninhado no coro da Pedra Que Soa até que regresse na promessa do osso do relâmpago.
Naquela noite, a comunidade celebrou intensamente os guerreiros feios, abeirando deles e levantando as vozes com seus nomes. E eles exultavam, sempre alegres também, e sentindo que valia a pena tornarem-se implacáveis. Quando o pajé instruiu Meio da Noite para entoar as palavras de abrigo, o negro atrapalhou. Era ainda bastante exterior àquela convicção. Entoara sem significar demasiado e estava nada convencido de que seriam capazes de educar os mortos.
Honra, por seu lado, entoara as palavras de abrigo diante da cabeça branca e outra vez misturava seus sentimentos. Confessaria ao amigo:
quero que a pronúncia do nome Mão Abundante paire no som podre. Um nome podre, sem eternidade. Quero que a sua pronúncia seja sepultura. Não gosto que lhe conceda vida alguma, pensamento, modo de sentir. Eu desejo que o inimigo termine com a morte e jamais se admita na nossa encantaria, normalizado, desculpado, educado para nossa alegria. Direi seu nome a significar-lhe toda a tristeza e a entregar toda a repulsa. Eu apenas odeio o inimigo, sagrado Meio da Noite, eu apenas odeio o inimigo, não lhe posso levar salvação alguma, não sinto tão grande gentileza, não sou tão feito de bondade. Matei, quero que se conserve morto.
Era torto. O feio negro pressentiu que o amigo estava errado.

*

Boa de Espanto e Altura Verde celebraram o filho e o cantaram também, em seu redor a fazer alarido e levantando cores, cheios de ofertas nas mãos, coisas bonitas que orgulhavam a todos. Então, parada de dançar, uma feminina jovem se sentou e sucumbiu ao desejo por Honra. Era Dois Amanhãs, a jovem singular que demorava em ser dupla, suspirava em abandono pela mata sem sentir vontade. Dois Amanhãs, ali sentada sem proferir palavra, decidiu que Honra era bom de toque, haveria de agradar mexer, e sentiu-se incapaz de lutar contra essa constatação. Foi Altura Verde quem notou e avisou o filho:
bravo guerreiro, Dois Amanhãs olha para ti. Está a convidar-te para as folias da fertilidade. Ela sucumbiu. Honra, a feminina é sagrada. Jamais esqueças o sagrado que somos. E toma o que é teu.
A magnitude de ser um matador era infinita. Sua fealdade vergava perante o ímpeto, a força, a bondade de seu gesto para o povo abaeté. O feio branco, soberbo subitamente, esfaimou mais do que nunca de mexer no segredo de uma feminina e abeirou Dois Amanhãs impaciente. A feminina levantou e correu cerca fora, mata adentro para ser caçada e colhida pelo guerreiro que acabara de admitir. Assim, correu também Honra, ligeiro e sem peso por sobre todos os obstáculos, e muito depressa deteve a fuga sedutora da feminina e lhe deitou por cima do corpo. Ansiava pelo sabor do corpo dela. Sentira por vezes o cheiro. Como pairava o cheiro das femininas em algumas tarefas e até no tempo de dormir. Mas nunca lhes levara a boca. Queria mexer-lhe e ser mexido. Molhar-se nela. Misturar como se pudessem ser indestrinçáveis. E ele mexeu e saboreou. A feminina, também apenas agora começando suas folias para a fertilidade, regozijou. Era alegre. Seu gemido era alegre. Honra sabia disso. Eram ambos dentro da bênção.
Quando amainaram, mal deitados no chão da mata, o guerreiro sempre ferido chefiou que ela mexesse no corpo do negro.
O negro,
ele entoou,
é meu gémeo. Somos iguais pela fúria. Vamos ser iguais pela glória.
A feminina sorriu. Imaginou que a folia do negro houvesse de aleijar, fazer doer. O guerreiro branco lhe garantiu:
é digno. O animal negro é digno. Ele é alguém.
A feminina, então, respondeu:
tem o bafo podre. Bafeja como o jacaré. Eu não beijo. Não vou beijar o negro jamais.
Honra riu. Ter mexido na feminina trazia uma paz inesperada. Era o contrário da guerra, definindo a vida dos abaeté. Era a demissão de tanta guerra, por um instante. Por um muito breve, gratificante, instante, Honra sobrava ali como um sentimento perfeito, sem ser guerreiro, sem ser mais nada senão um espírito liberto de sua angústia.
Escutou, depois, seu nome entoado na mata:
sagrado Honra. Sagrado Honra. Pai Todo te chama.
*
Quando abeirou do terreiro, ainda antes de estar exposto no largo espaço aberto, a comunidade sorriu. O feio branco escutou:
o osso mais limpo para as tuas canções. Terás como esculpir sua delicadeza para que sopre perfeito. Esta será tua flauta de opaco, teu primeiro grande troféu de opaco. Com ela, manterás a memória da sapiência abaeté e criarás o fascínio com que todos te receberão pelo orgulho de nosso povo. Toma, Honra, dentro deste osso te esperam as canções. Com cuidado e gratidão, haverás de as trazer aos nossos ouvidos e todos te amaremos. És dentro do nosso amor.
Então, Pai Todo chefiou que a comunidade chorasse, e a comunidade chorou.
Honra tomou o osso limpo do inimigo e se deu de asco. Queria mordê-lo, ferrá-lo como as cutias, desfazê-lo na poeira, disfarçá-lo por completo entre os poros do areal. O guerreiro branco tomou o longo osso limpo e caminhou às arrecuas e todos se puseram em cantos e danças e ele estremecia sempre de asco. Foi Meio da Noite quem o percebeu e, antes que estivesse denunciado, pediu:
deixa-me ver, sagrado Honra. Deixa-me ver como se esconde nesse osso a mais bela flauta.
Tomou o osso e espantou. Segurava o pedaço morto de um branco como se fosse um resto de animal de refeição, o resto de uma refeição, um pedaço morto de um bicho qualquer sem sapiência, sem ternura, sem memória de sua família, sem amigar de ninguém. Meio da Noite espantou e temeu, mas jamais vacilaria naquele momento. Calou. Acompanhou o amigo para distante e sentou onde ele quis sentar. Então, entoou:
eu sei onde há mil ossos. Sei onde fica a mata branca de Pé de Urutago, feita de tantos pedaços dos mortos que já nenhuma memória deles sobra, se eram brancos, se eram vermelhos, se eram talvez negros, dos meus povos negros. Ali, estou certo, podes depositar esta flauta que nunca tocará e tomar outra inesperada. Uma flauta que se possa fazer de um osso que já não espera vocação para ser das canções, para ser nas mãos alegres dos que vivem. E essa flauta tocará e será livre da impressão ascorosa que sentes. Ensino-te o caminho, sagrado Honra. Ensino-te o caminho para a mata de osso.
Batiam os tambores com vigor. A comunidade festejava ainda e Pai Todo expunha no alto das mãos o grito de ferro. Os abaeté eram triunfantes. O terreiro levantava uma parda terra de tanto pisarem na alegria, de tanto quererem inscrever na terra a vibração eufórica daquela conquista. O grito de ferro era distinto. Uma ave depenada, o bico antipático, o pé largo como pata aleijada que não servia para o deixar erguido no chão. O grito de ferro subia nas mãos do tardio santo e todos se abeiravam corajosos e entoavam a gratidão.
Meio da Noite entoou:
caminharemos muito pela acalmia da escuridão. Quando chegarmos à mata branca, ela sozinha se iluminará, tão ostensiva se torna por uma nesga de luar. Foi como a descobri quando fugia, sem saber, nesta direcção. A mata branca é toda morta e, se alguma coisa lhe imita vida, é a capacidade de cintilar. Pensarás, depois, o que haverá de significar tão imensa sementeira. Por que se semeiam os ossos. Por que se erguem uns sobre os outros por absurda vegetação. Que folha dá o osso. Que flor dá o osso. Perguntarás, como eu. O que fará Pé de Urutago com o resto de tantos inimigos.
O guerreiro branco olhou em redor. Havia ninguém. Sentia que era tocado, mas havia ninguém. Perguntou:
estarás emocionado. Será emoção que te acontece.
Mas Meio da Noite não respondeu. Era um apagão indistinto entre as outras sombras. Honra, ainda assim, seguia com a impressão de não estar só. Alguma coisa tocava seu corpo. Ele entoou:
não pode existir uma mata de osso. Tens de estar emocionado. Escolheste a mentira. Isso, sem mais nada, pode matar-te.
Lembrava da promessa à mãe.
O guerreiro branco, agora matador, agora mexido por uma feminina, maturava em sua opacidade. Era outro. Começava a ser outro e não tinha intenção alguma de regresso. Pai Todo pareceu afirmar-lho:
entoas como se fosses uma multidão.
Tomou o grito de ferro de suas mãos e estranhou. Repetiu:
sagrado Honra, entoas como se fosses uma multidão.
Outra vez o guerreiro sempre ferido se sacudiu. Ao fundo do terreiro, como era hábito, sob a andiroba, Meio da Noite aguardava na frescura possível. A comunidade era normal. A alegria abaeté prosseguia. O santo erguia uma e outra vez o grito de ferro. As celebrações não terminavam. Eram eufóricas. Cada guerreiro e cada feminina, cada curumim e cada curatã entoavam:
obrigado, Mão Abundante.
O espírito do inimigo estaria já aninhado na Pedra Que Soa, salvo para sempre, educado para a boa morte dos abaeté.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil 

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