Correram
pelo areal ao contrário dos demais guerreiros, que se meteram a
caminho da aldeia, a cuidar dos transparentes e das femininas.
Correram para o lado das rochas, onde a ilha se erguia e o arvoredo
era esparso. Confiavam que, incapazes de escalar às copas como Pé
de Urutago, melhor seria que subissem ao dorso limpo de uma rocha e
esperassem pelo clarão expostos. Eles expostos à verdadeiríssima
vontade. Alguns guerreiros ainda os alertaram, chamando para
recolhimento sensato. Mas podiam nada contra a opacidade de ambos.
Eram livres para suas decisões. Alardearam como heróis. Foi o que
noticiaram na aldeia. Que os feios alardearam como heróis e deitaram
corrida para outro lado. A tempestade desceu e Boa de Espanto ainda
quis chegar à praia para buscar seu filho. Mas Altura Verde a
impediu. Esperariam e fariam as suas preces. A mata haveria de
sobreviver Honra. A mata haveria de o sobreviver.
Do
cimo das rochas se puseram à espia de como as nuvens passavam avaras
de seu fogo, largando toda a água e fustigando com todo o vento, mas
mantendo o lume dentro de si. Eram fechadas. Mundos fechados sobre as
cabeças dos guerreiros que ainda acenaram, levantaram os braços
como para receber alguma coisa que houvesse de cair, mas havia nada
senão água e a água solidária do primeiro mar também erguendo e
batendo de encontro às rochas. Se mais um pouco piorasse, os feios
afundariam ao invés de queimarem a pele no clarão da profecia.
Gritavam
no ruído ensurdecedor. Honra queria saber:
vês
aquela linha tão dentro da nuvem. Uma linha bem dentro, escondida
pelos fumos, pelo fogo. É o osso. O osso que acende para atiçar os
abaeté. Irmão negro, acreditas que aquele osso vai cair hoje às
nossas mãos.
Meio
da Noite não respondia. Em algumas ocasiões, levado pela euforia,
pelo tamanho da tocaia, pelo tamanho do medo, pela ansiedade quase
descontrolada, Honra não conseguia saber do negro. Ele não estava
ali. Era ninguém. Então, buscando pelas rochas escurecidas e sempre
sob a tormenta, o feio branco voltava a chamar:
sagrado
Meio da Noite, onde estás. Sagrado Meio da Noite, onde estás.
Por
vezes, o negro estava mesmo ali, ao seu lado. Quando Honra sentia sua
pele ser tocada, ainda que o negro não levantasse a mão, era ali.
Estava em sua calma, seu jeito sem luz, mais silente, como à espera.
E o guerreiro branco voltava a perguntar:
vês
a linha interior, como se estende por dentro do fogo. Vês como está
à mercê de cair.
E
Meio da Noite respondeu:
daria
tudo para que caísse, irmão. Eu daria tudo para que caísse em tua
mão à medida de tua crença e de teu sonho.
Podia
ser que Meio da Noite não acreditasse e se bastasse com o que
acreditava o amigo. Podia ser que não precisasse de acreditar. O
osso do relâmpago poderia descer-lhe à mão e à glória pela
simplicidade da verdadeiríssima vontade. Assim passaram a
tempestade. Eram sem ciência. Não sabiam nada. Procuravam um pelo
outro, ao menos para não se perderem um do outro e voltarem sãos,
inteiros, sem nenhuma conquista mas também nenhuma perda. Calaram
por instantes. Desceram das rochas e assim caminharam em silêncio.
Quando, outra vez com alguma aflição, Honra chamava:
sagrado
Meio da Noite, onde estás.
E
algo como um insecto lhe tocava o ombro e ele escutava:
aqui.
Era
ali. Uns passos atrás ou uns passos adiante. Tão visível se
tornava como antes se tinha confundido com a sombra mais escura da
mata. O negro ainda era ali. E entoava:
lamento
muito. Faremos pedidos para que regressem as tempestades. Pediremos
que abram os fogos. Acendam sobre as ilhas por generosidade.
Honra
sentia-se profundamente só.
As
nuvens incendiadas poderiam haver queimado as ilhas inteiras. Num
pouco de tempo tudo foi convidado a morrer. Quando abriu o céu em
sua pacata normalidade, eram vistas as águas descendo como igarapés
sem margens, alagados, derramados sem organização alguma, como sem
respeito ou a despeito de haver dignidade e um sentido bom para cada
coisa. E, por toda a parte, o que havia se movera também. Troncos do
chão empoleiravam pelas copas. O que restava horizontal se levantara
e encostara novamente em pé. As árvores mortas espiavam espectrais
por entre as copas vivas das outras. A mata destapara bichos,
derrubara ninhos, cobrira tocas, criara novas aberturas junto às
aldeias. Os abaeté refaziam suas tarefas, começando a limpar tudo,
verificando as malocas, as cercas, as armas, a saúde dos
transparentes e das femininas.
Os
feios desceram de suas pedras e avistaram os bandos de regresso.
Rolaram as pirogas que se haviam virado ao contrário, entoavam nada.
A tempestade passara com mais chuvas e ventos do que clarões, e os
fogos intensos eram ferozes no ventre das nuvens mas não puderam
quebrar seus ovos. Nasceriam depois. Haveriam de abrir o galho ósseo
em outro lugar, à mercê de outros povos, quem sabe outros povos
dignos tanto quanto os abaeté.
Honra
perguntava:
poderá
haver outros povos dignos tanto quanto os abaeté.
Meio
da Noite respondeu:
muitos.
Meus povos. Os meus povos.
O
guerreiro branco mais quis saber:
por
que tens vários povos.
O
negro respondeu:
chegamos
de muitos lugares para onde ficamos juntos. Somos de todas as partes.
Quem junta é plural. Um povo plural e cada guerreiro ou feminina é
plural também.
Honra
entendeu. Calou com medo de algo tão grande. Entoaram:
vamos
à aldeia.
Nos
abraços de Boa de Espanto havia sempre a prova de que não
acreditava que o filho houvesse de entardecer. Esperava-lhe a morte,
o azar, a partida. Esperava que não o pudesse advertir novamente,
não o pudesse salvar de sua condição, de suas ideias, intuições
tão enfurecidas, de sua coragem. Boa de Espanto temia que a coragem
do filho lhe trouxesse a morte, o azar ou a partida. Abraçou e ele
mais quis se ocupar com as tarefas de limpeza para normalizar a
comunidade e frustrar sem mais conversa acerca da tempestade. Reparou
como assomou Pé de Urutago, tão sem glória naquele corpo imenso.
Um guerreiro com tamanho de dois e sem glória. Algo de humilhante se
ostentava nos rostos dos abaeté. Assim se calaram para a noite.
A
noite, por cansaço e frustração, cobriria as aldeias de certa
solidão. Pai Todo chefiara que alegrassem. Por vezes, os abaeté não
conseguiam alegrar. Fumavam breves. Temiam. Aguardavam os bandos de
regresso. Aguardavam que a mata canora voltasse a cantar e
silenciavam suas flautas tão cedo. Era melhor nem dançar. Era
melhor nem entoar. Conversariam depois. Quando fossem esquecidos de
tanta esperança e frustração. Pai Todo chefiava:
toda
a antiguidade para caçar o osso do relâmpago. Todas as tempestades
para caçar o osso do relâmpago.
Queria
significar que a caça também era uma longa espera. Haveriam de
esperar na alegria abaeté. E assim se deitaram todos.
As
capivaras abeiraram a cerca como para se assegurarem que aqueles que
soam estavam completos. Os tamanduás abeiraram a cerca como para se
assegurarem que aqueles que soam estavam completos. As araras subiram
à tatajuba, observaram outras aves no regresso e asseguravam que
aqueles que soam estavam completos. Lentamente, piavam aves pequenas,
as cutias subiam até o cipó. Nem secara nada, já todos os povos da
mata boa se contavam. Nas preces dos abaeté todos se abrigavam e
eram bem.
Havia
mais nada para a noite. Era o que parecia.
Mas
o feio branco quis perguntar a Pé de Urutago pela humilhação,
porque partilhava dela e não parara de estar furioso e ofendido. O
grande guerreiro o levou para longe dos outros e lhe respondeu:
perdoa,
sagrado Honra, sou mais um guerreiro condenado do que alguém
escolhido para a sorte.
O
feio branco quis saber:
que
mata branca é a mata de ossos. Eu vi. Estive ali, temi.
Pé
de Urutago, nem surpreso, entoou:
a
Divindade deitará sua carne por sobre aquele corpo intuitivo e
caminhará entre nós. O esqueleto da Divindade aguarda. É ali.
O
feio branco perguntou:
verdadeirissimamente.
O
grande guerreiro respondeu:
sim.
Era muito para ninguém saber. Aqueles que soam não devem ser
levados a tão grande ansiedade. E, de todo o modo, por antiguidades
que só sabemos falhar.
Honra
entoou:
sinto.
Silenciaram
ao jeito das criaturas mais tristes. O feio desculpou-se de haver ido
pedir sabedoria e tomou um insecto do ar. Novamente incandesceu os
olhos sobre o caçado. Entoou mais nada. Pé de Urutago levantou até
ao tamanho de uma tatajuba. Prometeu que amanheceriam iguais para
escavar a madeira de guaperuvu até que virasse piroga. Apartaram
depois.
Interrompido
sem motivo de seu sono, Honra sentiu em toda a sua pele o cheiro da
feminina. Dois Amanhãs cheirava por todo o seu corpo sem estar ali.
A feminina deitava com Meio da Noite e fedia sobre o feio branco.
Honra procurou voltar a adormecer, sem ser capaz de adormecer
inebriado em tão importante odor. Sentou em seu lugar. Escutou nada.
Sua pele chegava a estar líquida. Húmida pelas pernas, pelos
braços. Enquanto se livrava dos insectos que pareciam tocar-lhe,
estendia as mãos para um lado e para o outro, mas havia ali ninguém.
Era sozinho. Contudo, sentia-se tocado e fedia da feminina numa
alegria que não podia justificar. Calou. No escuro cego da maloca
atirou os olhos sem resposta. Deitou de novo e adormeceu pensando que
seu irmão negro suaria Dois Amanhãs. Haveria de a cansar, porque a
folia era no ar da maloca inteira, talvez no terreiro todo, na aldeia
e até ao cimo das copas.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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