domingo, 19 de novembro de 2023

Capítulo dezanove | A tempestade


Correram pelo areal ao contrário dos demais guerreiros, que se meteram a caminho da aldeia, a cuidar dos transparentes e das femininas. Correram para o lado das rochas, onde a ilha se erguia e o arvoredo era esparso. Confiavam que, incapazes de escalar às copas como Pé de Urutago, melhor seria que subissem ao dorso limpo de uma rocha e esperassem pelo clarão expostos. Eles expostos à verdadeiríssima vontade. Alguns guerreiros ainda os alertaram, chamando para recolhimento sensato. Mas podiam nada contra a opacidade de ambos. Eram livres para suas decisões. Alardearam como heróis. Foi o que noticiaram na aldeia. Que os feios alardearam como heróis e deitaram corrida para outro lado. A tempestade desceu e Boa de Espanto ainda quis chegar à praia para buscar seu filho. Mas Altura Verde a impediu. Esperariam e fariam as suas preces. A mata haveria de sobreviver Honra. A mata haveria de o sobreviver.
Do cimo das rochas se puseram à espia de como as nuvens passavam avaras de seu fogo, largando toda a água e fustigando com todo o vento, mas mantendo o lume dentro de si. Eram fechadas. Mundos fechados sobre as cabeças dos guerreiros que ainda acenaram, levantaram os braços como para receber alguma coisa que houvesse de cair, mas havia nada senão água e a água solidária do primeiro mar também erguendo e batendo de encontro às rochas. Se mais um pouco piorasse, os feios afundariam ao invés de queimarem a pele no clarão da profecia.
Gritavam no ruído ensurdecedor. Honra queria saber:
vês aquela linha tão dentro da nuvem. Uma linha bem dentro, escondida pelos fumos, pelo fogo. É o osso. O osso que acende para atiçar os abaeté. Irmão negro, acreditas que aquele osso vai cair hoje às nossas mãos.
Meio da Noite não respondia. Em algumas ocasiões, levado pela euforia, pelo tamanho da tocaia, pelo tamanho do medo, pela ansiedade quase descontrolada, Honra não conseguia saber do negro. Ele não estava ali. Era ninguém. Então, buscando pelas rochas escurecidas e sempre sob a tormenta, o feio branco voltava a chamar:
sagrado Meio da Noite, onde estás. Sagrado Meio da Noite, onde estás.
Por vezes, o negro estava mesmo ali, ao seu lado. Quando Honra sentia sua pele ser tocada, ainda que o negro não levantasse a mão, era ali. Estava em sua calma, seu jeito sem luz, mais silente, como à espera. E o guerreiro branco voltava a perguntar:
vês a linha interior, como se estende por dentro do fogo. Vês como está à mercê de cair.
E Meio da Noite respondeu:
daria tudo para que caísse, irmão. Eu daria tudo para que caísse em tua mão à medida de tua crença e de teu sonho.
Podia ser que Meio da Noite não acreditasse e se bastasse com o que acreditava o amigo. Podia ser que não precisasse de acreditar. O osso do relâmpago poderia descer-lhe à mão e à glória pela simplicidade da verdadeiríssima vontade. Assim passaram a tempestade. Eram sem ciência. Não sabiam nada. Procuravam um pelo outro, ao menos para não se perderem um do outro e voltarem sãos, inteiros, sem nenhuma conquista mas também nenhuma perda. Calaram por instantes. Desceram das rochas e assim caminharam em silêncio. Quando, outra vez com alguma aflição, Honra chamava:
sagrado Meio da Noite, onde estás.
E algo como um insecto lhe tocava o ombro e ele escutava:
aqui.
Era ali. Uns passos atrás ou uns passos adiante. Tão visível se tornava como antes se tinha confundido com a sombra mais escura da mata. O negro ainda era ali. E entoava:
lamento muito. Faremos pedidos para que regressem as tempestades. Pediremos que abram os fogos. Acendam sobre as ilhas por generosidade.
Honra sentia-se profundamente só.
As nuvens incendiadas poderiam haver queimado as ilhas inteiras. Num pouco de tempo tudo foi convidado a morrer. Quando abriu o céu em sua pacata normalidade, eram vistas as águas descendo como igarapés sem margens, alagados, derramados sem organização alguma, como sem respeito ou a despeito de haver dignidade e um sentido bom para cada coisa. E, por toda a parte, o que havia se movera também. Troncos do chão empoleiravam pelas copas. O que restava horizontal se levantara e encostara novamente em pé. As árvores mortas espiavam espectrais por entre as copas vivas das outras. A mata destapara bichos, derrubara ninhos, cobrira tocas, criara novas aberturas junto às aldeias. Os abaeté refaziam suas tarefas, começando a limpar tudo, verificando as malocas, as cercas, as armas, a saúde dos transparentes e das femininas.
Os feios desceram de suas pedras e avistaram os bandos de regresso. Rolaram as pirogas que se haviam virado ao contrário, entoavam nada. A tempestade passara com mais chuvas e ventos do que clarões, e os fogos intensos eram ferozes no ventre das nuvens mas não puderam quebrar seus ovos. Nasceriam depois. Haveriam de abrir o galho ósseo em outro lugar, à mercê de outros povos, quem sabe outros povos dignos tanto quanto os abaeté.
Honra perguntava:
poderá haver outros povos dignos tanto quanto os abaeté.
Meio da Noite respondeu:
muitos. Meus povos. Os meus povos.
O guerreiro branco mais quis saber:
por que tens vários povos.
O negro respondeu:
chegamos de muitos lugares para onde ficamos juntos. Somos de todas as partes. Quem junta é plural. Um povo plural e cada guerreiro ou feminina é plural também.
Honra entendeu. Calou com medo de algo tão grande. Entoaram:
vamos à aldeia.
Nos abraços de Boa de Espanto havia sempre a prova de que não acreditava que o filho houvesse de entardecer. Esperava-lhe a morte, o azar, a partida. Esperava que não o pudesse advertir novamente, não o pudesse salvar de sua condição, de suas ideias, intuições tão enfurecidas, de sua coragem. Boa de Espanto temia que a coragem do filho lhe trouxesse a morte, o azar ou a partida. Abraçou e ele mais quis se ocupar com as tarefas de limpeza para normalizar a comunidade e frustrar sem mais conversa acerca da tempestade. Reparou como assomou Pé de Urutago, tão sem glória naquele corpo imenso. Um guerreiro com tamanho de dois e sem glória. Algo de humilhante se ostentava nos rostos dos abaeté. Assim se calaram para a noite.
A noite, por cansaço e frustração, cobriria as aldeias de certa solidão. Pai Todo chefiara que alegrassem. Por vezes, os abaeté não conseguiam alegrar. Fumavam breves. Temiam. Aguardavam os bandos de regresso. Aguardavam que a mata canora voltasse a cantar e silenciavam suas flautas tão cedo. Era melhor nem dançar. Era melhor nem entoar. Conversariam depois. Quando fossem esquecidos de tanta esperança e frustração. Pai Todo chefiava:
toda a antiguidade para caçar o osso do relâmpago. Todas as tempestades para caçar o osso do relâmpago.
Queria significar que a caça também era uma longa espera. Haveriam de esperar na alegria abaeté. E assim se deitaram todos.
As capivaras abeiraram a cerca como para se assegurarem que aqueles que soam estavam completos. Os tamanduás abeiraram a cerca como para se assegurarem que aqueles que soam estavam completos. As araras subiram à tatajuba, observaram outras aves no regresso e asseguravam que aqueles que soam estavam completos. Lentamente, piavam aves pequenas, as cutias subiam até o cipó. Nem secara nada, já todos os povos da mata boa se contavam. Nas preces dos abaeté todos se abrigavam e eram bem.
Havia mais nada para a noite. Era o que parecia.
Mas o feio branco quis perguntar a Pé de Urutago pela humilhação, porque partilhava dela e não parara de estar furioso e ofendido. O grande guerreiro o levou para longe dos outros e lhe respondeu:
perdoa, sagrado Honra, sou mais um guerreiro condenado do que alguém escolhido para a sorte.
O feio branco quis saber:
que mata branca é a mata de ossos. Eu vi. Estive ali, temi.
Pé de Urutago, nem surpreso, entoou:
a Divindade deitará sua carne por sobre aquele corpo intuitivo e caminhará entre nós. O esqueleto da Divindade aguarda. É ali.
O feio branco perguntou:
verdadeirissimamente.
O grande guerreiro respondeu:
sim. Era muito para ninguém saber. Aqueles que soam não devem ser levados a tão grande ansiedade. E, de todo o modo, por antiguidades que só sabemos falhar.
Honra entoou:
sinto.
Silenciaram ao jeito das criaturas mais tristes. O feio desculpou-se de haver ido pedir sabedoria e tomou um insecto do ar. Novamente incandesceu os olhos sobre o caçado. Entoou mais nada. Pé de Urutago levantou até ao tamanho de uma tatajuba. Prometeu que amanheceriam iguais para escavar a madeira de guaperuvu até que virasse piroga. Apartaram depois.
Interrompido sem motivo de seu sono, Honra sentiu em toda a sua pele o cheiro da feminina. Dois Amanhãs cheirava por todo o seu corpo sem estar ali. A feminina deitava com Meio da Noite e fedia sobre o feio branco. Honra procurou voltar a adormecer, sem ser capaz de adormecer inebriado em tão importante odor. Sentou em seu lugar. Escutou nada. Sua pele chegava a estar líquida. Húmida pelas pernas, pelos braços. Enquanto se livrava dos insectos que pareciam tocar-lhe, estendia as mãos para um lado e para o outro, mas havia ali ninguém. Era sozinho. Contudo, sentia-se tocado e fedia da feminina numa alegria que não podia justificar. Calou. No escuro cego da maloca atirou os olhos sem resposta. Deitou de novo e adormeceu pensando que seu irmão negro suaria Dois Amanhãs. Haveria de a cansar, porque a folia era no ar da maloca inteira, talvez no terreiro todo, na aldeia e até ao cimo das copas.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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