sexta-feira, 24 de novembro de 2023

As rãs | Parte II


3.

Dois anos mais tarde, no dia 23 do décimo segundo mês lunar, dia de despedida do Deus do Fogão,* nasceu minha filha. Meu primo Cinco Sentidos foi nos buscar de microtrator no posto de saúde da comuna. Na saída, minha tia disse: “Coloquei um dispositivo intrauterino na sua esposa”. Wang Renmei levantou o cachecol que lhe cobria a cabeça e disse, irritada: “Por que fez isso sem me perguntar?”. A tia pôs o cachecol no lugar: “Cubra-se, não tome vento. Colocar esse dispositivo após o parto é uma ordem expressa da Comissão de Planejamento Familiar. Se o seu marido fosse camponês e você tivesse uma menina na primeira gravidez, poderia esperar oito anos para tirar o dispositivo e engravidar outra vez, mas você se casou com meu sobrinho, que é oficial do Exército. Os militares têm regras muito mais rigorosas do que os civis: para eles, ter um filho fora do planejamento significa perder tudo, voltar para casa e trabalhar na lavoura. Por isso, você não pode mais pensar em ter filhos. É o preço a pagar por ser esposa de militar”.
Wang Renmei chorou, desconsolada.
Segurando a criança firmemente envolta num agasalho, pulei no trator e disse a Cinco Sentidos: “Vamos!”.
O trator corria pela estradinha esburacada cuspindo fumaça preta. Wang Renmei ia deitada no reboque, embaixo de um cobertor, embalada pelos solavancos. Seu choro ziguezagueava. “Por que fez isso sem me perguntar… Por que me colocou essa coisa… Por que não me deixam ter outra criança, por quê…”
Eu disse, impaciente: “Pare de chorar! É uma política nacional!”. Ela chorou ainda mais alto, pôs a cabeça para fora do cobertor — estava com o rosto pálido, os lábios escurecidos, uns ramos de palha no cabelo. “Nacional coisa nenhuma, é tudo invenção da sua tia. Lá no Distrito Jiao não tem esse rigor todo, sua tia só faz isso porque quer ser promovida, não é à toa que falam mal dela…”
Cale a boca”, eu disse, “se tiver algo a dizer, deixe para dizer em casa, se for berrando desse jeito o caminho todo vão rir de você, não tem vergonha?”
Num movimento repentino, ela tirou o cobertor e sentou-se, os olhos arregalados: “Quem está rindo de mim? Quem tem coragem de rir de mim?”.
Bicicletas passavam por nós a todo instante. O vento norte soprava com força, a geada forrava o chão, o sol nascia vermelho, o hálito quente que saía de nossa boca logo se convertia em flocos de gelo nas sobrancelhas e nos cílios. Fiquei com dó ao ver Wang Renmei de lábios pálidos e rachados pelo ar seco, os cabelos despenteados, o olhar perdido, então disse algo afetuoso para consolá-la: “Tudo bem, tudo bem, não tem ninguém rindo de você, deite-se logo embaixo desse cobertor, adoecer no mês de resguardo não é brincadeira”.
Não tenho medo disso! Sou como um pinheiro no cume do monte Tai, imune aos rigores do inverno, inabalável perante a nevasca, em meu seio arde o sol nascente!”
Esbocei um sorriso forçado e disse: “Sei que pode tudo, você é uma heroína! Mas não quer ter outro filho? Se ficar mal de saúde, como é que vai engravidar de novo?”.
Seus olhos faiscaram e ela falou, animada: “Você está prometendo um segundo filho? Foi você mesmo que disse! Ouviu isso, Cinco Sentidos? Você é minha testemunha!”.
Sou testemunha, sim!”, respondeu Cinco Sentidos numa voz abafada.
Ela se deitou, obediente, puxou o cobertor e cobriu a cabeça bruscamente, suas palavras continuaram vindo lá debaixo: “Corre Corre, não vá faltar com sua palavra, se faltar com sua palavra eu acabo com você”.
Quando o trator chegou à entrada da aldeia, dois homens discutiam no meio da ponte, bloqueando nosso caminho.
Um deles era meu colega do ensino primário, Yuan Bochecha, o outro era o artesão de bonecos de barro, Hao Mão Grande.
Hao Mão Grande agarrava o pulso de Yuan Bochecha.
Me solta! Solta!”, gritava Yuan Bochecha, tentando se esquivar.
Por mais que tentasse, de nada adiantava.
Cinco Sentidos saltou do trator, aproximou-se deles e disse: “O que é que está acontecendo aqui? O dia ainda nem clareou, para que essa briga toda?”.
Yuan Bochecha falou: “Chegou na hora certa, Cinco Sentidos, você vai dizer quem tem razão. Ele ia empurrando o carro na frente, eu vinha de bicicleta atrás. Ele ia pela esquerda e eu queria ultrapassar pela direita. Mas, quando estava bem atrás dele, ele deu uma guinada para a direita, sem mais nem menos. Sorte minha que eu reagi rápido, soltei o guidão e pulei na ponte, não fosse isso, teria ido parar lá embaixo junto com a bicicleta. Quem cair dessa altura, num frio desses, se não morrer fica aleijado. Mas o tio Hao está me culpando de ter jogado o carrinho dele para baixo da ponte”.
Hao Mão Grande não contestou, apenas continuou apertando com firmeza o pulso de Yuan Bochecha.
Saltei da carreta com minha filha no colo. Assim que meu pé tocou o chão, senti uma dor lancinante. Estava mesmo muito frio naquela manhã.
Fui mancando até a ponte. Vi ali um monte de bonecas de argila coloridas, umas quebradas, outras intactas. De um lado, sobre o rio congelado, jazia uma bicicleta surrada, com uma bandeirinha amarela embolada na lateral. Sabia que nela estavam bordadas as palavras “Pequeno Semideus”. Desde criança ele já era meio esquisito, depois de grande, continuou fora dos padrões. Ele não só conseguia retirar um prego do estômago de uma vaca usando um ímã, como sabia castrar porcos e cães. E ainda era versado nas artes divinatórias tradicionais, como feng shui e pa-kuá. Alguém o chamou, por brincadeira, de “Pequeno Semideus”, e ele adotou o apelido. Cortou um pano amarelo-damasco e fez uma bandeira bordada onde se lia PEQUENO SEMIDEUS, que amarrou na garupa da bicicleta. A cada pedalada, a bandeirola farfalhava. Na feira, montava a barraca, espetava ali a bandeirinha e, quem diria, seu negócio prosperava.
Enviesado sobre o gelo, do outro lado da ponte, havia um carrinho de mão feito de madeira. Uma das barras de condução se quebrara. Os cestos de vime que ficavam de ambos os lados estavam destruídos e dezenas de bonecos se espalhavam pelo gelo, a maioria em pedaços, uns poucos talvez inteiros. Hao Mão Grande era genioso, mas também sabia ser admirável. Tinha umas mãos enormes e habilidosas. Segurava um pedaço de argila enquanto mantinha os olhos fixos em você, daí a pouco, mexendo aqui e ali, moldava nela seu retrato fiel. Nem durante a Revolução Cultural ele parou de fazer seus bonequinhos. O avô já fazia isso. O pai também. Na geração dele, a técnica se aprimorou. Ele vivia de produzir e vender bonequinhos de argila, era seu ganha-pão. Mas não era só isso, ele até que poderia produzir cachorros, macacos, tigres e outros brinquedos de técnica simples e de muita demanda, dessas coisas com que a criançada gosta de brincar. Os artesãos de argila produzem acima de tudo para as crianças, já que os adultos só vão desembolsar dinheiro para comprar algo que agrade a elas. Só que Hao Mão grande só fazia figuras humanas. A casa dele tinha cinco cômodos no eixo central e quatro nas laterais, e ainda um barracão improvisado no pátio. A casa e o barracão estavam cheios de bonecos, alguns prontos, de rosto colorido e olhos pintados, outros ainda inacabados, esperando a pintura. No seu kang, exceto o espaço onde ele se deitava, tudo o mais estava coberto de fileiras e fileiras de bonequinhos. Ele já passava dos quarenta anos, tinha o rosto corado, cabelos grisalhos, uma trança na nuca. A barba também era grisalha. Nas aldeias vizinhas, também faziam bonecos de argila, mas usavam moldes, as peças eram todas idênticas. As dele eram moldadas à mão, cada uma de um jeito, não havia duas iguais. Dizem que todas as crianças da nossa aldeia lhe serviram de modelo. Dizem que cada pessoa da aldeia acha em algum daqueles bonecos o rosto de sua infância. Dizem que ele não vai à feira vender seu trabalho enquanto ainda tiver o que comer em casa. Vende com lágrimas nos olhos, como se fosse o próprio filho. Ver tantos de seus bonecos em pedaços certamente lhe doeu muito. Dava para entender por que ele não soltava o pulso de Yuan Bochecha.
Caminhei até eles com minha filha no colo. Já era militar havia tempo suficiente para não me sentir nem um pouco natural à paisana. Por isso vesti uma farda até mesmo para acompanhar Wang Renmei ao hospital quando ela foi dar à luz. A imagem de um jovem oficial com um recém-nascido no colo tem uma força considerável. Eu disse: “Tio, solte Yuan Bochecha, ele com certeza não fez de propósito”.
Isso mesmo, tio, não foi de propósito, não mesmo.” Yuan Bochecha falou com voz de choro: “Deixe passar dessa vez. Vou mandar alguém consertar seu carrinho e seus cestos; e vou pagar pelos bonecos quebrados”.
Por mim”, eu disse, “por minha filha e por minha mulher, deixe-o ir, e nos deixe passar pela ponte.”
Wang Renmei esticou-se na carreta e gritou: “Tio Hao, faça dois bonequinhos para mim, dois meninos iguaizinhos”.
Diziam na aldeia que quem comprasse um boneco de Hao Mão Grande, amarrasse com um cordão vermelho, pendurasse pelo pescoço na cabeceira do kang e lhe fizesse oferendas teria um filho bem parecido com ele. Mas Hao não deixava escolher. Os artesãos das aldeias vizinhas expunham uma grande quantidade no chão e deixavam os clientes escolherem à vontade. Os bonecos de Hao Mão Grande ficavam dentro do cesto, cobertos por um pano grosso, quando alguém ia comprar, ele examinava o cliente detidamente, depois enfiava a mão no cesto, tateava e tirava um boneco. O que ele tirasse era o que o cliente levaria. Tinha gente que reclamava que era feio. Mas ele não trocava de jeito nenhum e punha um sorriso amargurado no canto da boca. Ficava em silêncio, mas era como se você o ouvisse dizer: “Por acaso algum pai reclama que seu filho é feio?”. Assim, o cliente examinava com mais atenção o bonequinho que acabara de receber e, aos poucos, se afeiçoava a ele. Aquele boneco ia ganhando vida, como se tivesse alma. Ele nunca dizia o preço. Se não lhe dessem nada, não iria cobrar. Se lhe dessem algum dinheiro, qualquer quantia, não diria uma única palavra de agradecimento. As pessoas aos poucos começaram a acreditar que comprar um boneco daqueles era como encomendar do artesão uma criança de verdade. E quanto mais se falava nisso, mais surreal ficava a história. Diziam que, se te desse uma menina, você com toda a certeza teria uma menina. Se te desse um menino, com toda a certeza teria um menino. Se te desse dois, sem dúvida seriam gêmeos. Era algum acordo sobrenatural. Se revelasse a alguém, perderia o efeito. Minha mulher, desmiolada como era, foi a única a lhe pedir dois meninos em alto e bom som. Quando ficamos sabendo da lenda das bonecas de Hao Mão Grande, Wang Renmei já estava grávida. E a encomenda só funcionaria se fosse feita antes da gravidez.
Em consideração a mim, Hao Mão Grande soltou Yuan Bochecha. Este massageou o pulso e disse com cara de choro: “Hoje não é meu dia de sorte, assim que saí de casa, vi uma cadela mijando no meu caminho, e o mau agouro de fato se cumpriu”.
Hao Mão Grande se abaixou, recolheu os cacos de argila e colocou no bolso. Pôs-se de um lado da ponte para nos deixar passar. Tinha flocos de gelo na barba e uma expressão solene no rosto.
Menino ou menina?”, me perguntou Yuan Bochecha.
Menina.”
Não se preocupe, da próxima vez será um menino.”
Não vai ter próxima vez.”
Deixe estar”, segredou Yuan piscando para mim, “vou dar um jeito quando chegar a hora.”

* Data em que, segundo a tradição chinesa, a divindade que habita o fogão de cada lar sobe ao céu para relatar ao imperador celestial o comportamento da família ao longo do último ano. É celebrada sete dias antes do Ano-Novo lunar.

Mo Yan, in As rãs

Nenhum comentário:

Postar um comentário