sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Amor, quati, cão, feminino e masculino

Talvez algum leitor ainda se lembre de um texto meu publicado nesta seção sob o título de “Amor” – em 11 de setembro passado. Talvez se lembre de que se tratava de um homem que vi que transformava um quati em cachorro, com coleira e tudo, e o quati estava confuso quanto à própria raça. Também contei que o quati, se visse outro quati, reconheceria quem ele mesmo era. E então como que lhe pedi que, livre da natureza que lhe fora impingida, não julgasse o homem porque este o fizera por ser carente de amor. Sim, isso antes de abandoná-lo, é claro. Porque, descoberta a própria identidade, o ser é e não retrocede.
Um leitor resolveu outra história sobre o quati e o homem, narrativa cheia de peripécias, algumas talvez arbitrárias, algumas profundas. É dessas histórias que a criança ouve de olhos arregalados, mesmo sem entender tudo, antes de dormir. Dirige-se o inventor a mim como C.L. e a assinatura é uma letra única, e ainda por cima ilegível. Copio as aventuras do quati na íntegra:
O dono do quati pensou que o bicho havia encontrado outro dono. Sentiu saudades e aquela dor própria de dono de quati, mas ficou na dele. Não demorou muito e o quati, que havia desaparecido, retornou à casa do primeiro dono, ainda com a marca da coleira no pescoço. Não se pode afirmar que tenha havido um segundo dono no destino canino do quati.
“– Muito bem – disse-lhe o homem – agora terás que latir. Ele sabia que o quati nunca poderia fazer isto. O bicho esgueirou-se e foi deitar no leito com o qual se havia acostumado. Durante dois dias o dono do quati não fez outra coisa senão cuidar de uma rosa que tentou conservar dentro de um copo com água. A rosa morreu. Depois disso, tentou fazer com que o quati o acompanhasse e se comportasse como cachorro, mesmo sem o uso da coleira. O bicho não se saiu bem. O dono do quati andou pensando em levá-lo para alguma floresta distante, soltá-lo e deixá-lo morrer de liberdade, mas no fundo ele gosta do bicho, não como se gosta de um cachorro ou de um quati, mas como se este fosse gente, porque o dono do quati não sabe gostar de pessoas verdadeiras. No fim eu direi o motivo.
Primeiro vou contar-lhe que, quando o quati ainda era filhote, seu pai foi brutal e covardemente morto por um desses homens que se dizem caçadores a serviço da virtude, mas de fato odeiam todo animal sadio e livre. A mãe do quati, não tendo encontrado outro de sua espécie, resolveu aceitar a companhia de um cachorro. Foi este cachorro quem primeiro tentou adulterar a essência do quati órfão, não para transformá-lo em cachorrinho, mas deixar bem evidente que quem nasceu quati jamais teria a dignidade de um cachorrão e haveria de ser sempre um quati qualquer miserável.
O padrasto cachorrão não gerara filhos e o pequeno quati era um belo espécime de olhos vivos. Isto talvez explique muita coisa. O próprio filho do quati, recalcado, e não compreendendo nada da vida, embora nunca esquecesse a imagem do pai bem-amado, passou a sonhar ser cachorro. Foi fácil encontrar alguém que, paternalmente, lhe colocasse uma coleira. O pitoresco desta história é que o homem que se transformou no dono de um quati, também foi criado por um cachorro e mamou numa cadela.
Nunca foi órfão, mas o pai fugiu às suas responsabilidades antes de ficar noivo com aquela que veio a ser a mãe do dono de um quati. A mulher abandonada foi escravizada por uma família de mercadores que a levaram para longe de sua terra natal. Quando a criança nasceu, constatou-se que o leite materno era fraco. Nessa época ainda não havia leite em pó e o leite de vaca não servia. Uma ama de leite seria muito cara, em se tratando de beneficiar o filho de uma escrava. Na casa dessa gente estranha ocorrera um fato extraordinário: na mesma época, uma mulher que se transformara em cadela, dera à luz um lindo garoto e seu leite era suficiente para alimentar também o filho da escrava.
Enquanto este mamava na robusta cadela (que não gostava dele evidentemente), o desta, inclusive por estar muito gordo, era amamentado pela escrava. Você pode imaginar a confusão que se gera na alma das pessoas quando estas coisas acontecem. O filho da escrava cresceu com problemas afetivos em relação a pessoas e a cachorros e sempre com inveja do seu irmão colaço. Tentou um dia adotar um quati como se este fosse um cachorro e quis amá-lo como se fosse gente. O filho da escrava sabe que o amor humano inteiro para ele é impossível, mas o amor que houver não pode ser ruim. O amor, se é amor, nunca pode ser ruim. Pode ser ódio disfarçado.
Para todos os personagens dessa história e para todos nós, a grande tarefa é o reencontro da essência perdida, a conquista da integridade, a realização da totalidade. A tarefa é o espírito.”

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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