terça-feira, 28 de novembro de 2023

A morte de meu pai: Tomada 3




É assim que acontece. O velho dr. Bennett, nosso médico, sai do quarto de hóspedes e fecha delicadamente a porta. Extremamente idoso, o dr. Bennett sempre fez parte de nossa vida, estava presente até quando nasci, época em que foi solicitado a se aposentar em breve pelo Conselho Regional de Medicina — isso para mostrar o quanto ele é velho. O dr. Bennett agora é velho demais para quase tudo. Ele não anda, arrasta os pés, não respira, ofega. E parece incapaz de lidar com as consequências do estado terminal de seu paciente. Quando ele sai do quarto de hóspedes, onde meu pai está instalado há algumas semanas, tem uma crise de choro e fica algum tempo sem conseguir falar, chorando convulsivamente, sacudindo os ombros, tapando os olhos com as mãos enrugadas.
Finalmente, ele consegue erguer os olhos e recuperar o fôlego. Parece uma criança desamparada, e diz para mim e para a minha mãe, e nesta altura nós já estamos preparados para o pior:
Eu não... Eu não sei o que está acontecendo. Não tenho certeza. Mas ele parece muito mal. É melhor vocês irem ver.
Minha mãe olha para mim, e o que vejo nos olhos dela é um olhar de resignação, um olhar que diz que ela está preparada para o que quer que a aguarde atrás daquela porta, por mais triste ou terrível que seja. Ela está preparada. Ela pega minha mão e a aperta com força antes de se levantar e entrar no quarto. O dr. Bennett se deixa cair pesadamente na cadeira de meu pai e fica estirado lá, como se tivesse perdido completamente a energia. Por um instante acho que ele está morto. Por um instante acho que a morte chegou e resolveu levá-lo no lugar de meu pai. Mas não. A morte veio buscar meu pai. Dr. Bennett abre os olhos e olha para o vazio, e eu posso adivinhar o que ele está pensando. Edward Bloom! Quem diria! Um cidadão do mundo! Importador/exportador! Nós todos achamos que você viveria para sempre. Embora o restante de nós caia como folhas de uma árvore, sempre achamos que se havia uma pessoa capaz de suportar o inverno rigoroso e se manter vivo, essa pessoa seria você. Como se ele fosse um deus. Era assim que víamos meu pai. Embora o víssemos de manhã cedo de cuecas, e tarde da noite dormindo em frente à televisão depois que esta já tinha saído do ar, de boca aberta, a luz azul como uma mortalha cobrindo seu rosto adormecido, para nós, ele é de certa forma divino, um deus, o deus da alegria, o deus que quando fala diz: Era uma vez um homem... Ou talvez parte deus, produto de uma mulher mortal e de alguma divindade gloriosa que desceu a terra para fazer do mundo um lugar em que mais pessoas rissem, e que, inspiradas por seu riso, comprassem coisas de meu pai que tornassem a vida melhor, assim como a vida de meu pai. Dessa forma, todas as vidas se tornavam melhores. Ele é engraçado e sabe ganhar dinheiro — que poderia ser melhor do que isso? Ele ri até da morte, ri das minhas lágrimas. Eu o ouço rindo agora, quando minha mãe sai do quarto sacudindo a cabeça.
Incorrigível — ela diz. — Totalmente incorrigível.
Ela também está chorando, mas não são lágrimas de dor ou de tristeza, essas lágrimas ela já derramou. São lágrimas de frustração, de estar viva e sozinha enquanto meu pai está morrendo no quarto de hóspedes, e não está morrendo direito. Eu olho para ela e pergunto com os olhos: Devo entrar? Ela sacode os ombros como que para dizer: Você é quem sabe, entre se quiser. E parece estar quase soltando uma gargalhada, como se não bastasse estar chorando, o que faz surgir em seu rosto uma expressão desconcertante.
Dr. Bennett parece ter adormecido na cadeira de meu pai.
Eu me levanto, vou até a porta entreaberta e dou uma espiada. Meu pai está recostado numa pilha de travesseiros, imóvel e olhando para o vazio, como se estivesse no modo “Pausa”, esperando que alguém ou alguma coisa o acione. É o que a minha presença faz. Quando me vê, ele sorri.
Entre, William.
Bem, você parece estar se sentindo melhor — eu digo, sentando-me na cadeira ao lado de sua cama, na cadeira onde tenho me sentado todos os dias nestas últimas semanas. Na jornada de meu pai em direção ao final da sua vida, esta cadeira é meu posto de observação.
Estou me sentindo melhor — diz, balançando a cabeça e respirando fundo, como que para provar o que está dizendo. — Acho que estou.
Mas só hoje, neste momento do dia. Não existe mais volta para o meu pai. Para melhorar agora, seria preciso mais do que um milagre; seria preciso uma autorização expressa do próprio Zeus, assinada em três vias e enviada a todas as outras divindades que pudessem reivindicar o corpo maltratado e a alma de meu pai.
Ele já estaria um pouco morto, acho, se uma coisa dessas fosse possível; a metamorfose que ocorreu seria inacreditável se eu mesmo não a tivesse testemunhado. A princípio, pequenas lesões surgiram em seus braços e pernas. Elas foram tratadas, mas sem resultado efetivo. Depois pareceram sarar sozinhas — mas não do modo que gostaríamos ou esperávamos. Em vez da pele branca e macia, com longos pelos pretos brotando dela como palha de milho, sua pele ficou áspera e brilhante — quase escamosa, como uma segunda pele. Olhar para ele não é difícil até você sair do quarto e ver o retrato sobre a lareira. Foi tirado há seis ou sete anos numa praia da Califórnia, e quando você olha, pode ver — um homem. Ele não é mais um homem do jeito que era. Ele é uma outra coisa.
Não bem, na verdade — ele diz, corrigindo-se. — Eu não diria bem. E sim melhor.
Eu não sei o que deixou o dr. Bennett nervoso — eu digo. — Ele parecia muito preocupado quando saiu do quarto.
Meu pai concorda com um movimento de cabeça.
Honestamente — ele diz, num tom confidencial — acho que foram as minhas piadas.
Suas piadas?
Minhas piadas de médico. Acho que ele já as ouviu inúmeras vezes. — E meu pai começa a recitar sua ladainha de piadas velhas:
Doutor, doutor! Tenho apenas cinquenta e nove segundos de vida. Espere aí, estarei com você em um minuto.
Doutor, doutor! Fico achando que sou uma cortina. Ora essa, segura as pontas.
Doutor, doutor! Minha irmã acha que é um elevador. Diz a ela para entrar. Não posso. Ela não para neste andar.
Doutor, doutor! Eu me sinto como um cabrito. Pare de agir como criança.
Doutor, doutor! Acho que estou encolhendo. Basta você ter um pouco de paciência.
Eu sei milhares delas — ele diz orgulhosamente.
Aposto que sabe.
Conto algumas para ele toda vez que vem aqui. Mas acho que ele já cansou de ouvir. Aliás, acho que ele não tem muito senso de humor. A maioria dos médicos não tem.
Ou talvez ele queira apenas que você seja sincero — eu digo.
Sincero?
Direto — eu digo. — Que você se comporte naturalmente e diga o que está sentindo, onde está doendo.
Ah — meu pai diz. — Do tipo: “Doutor, doutor! Eu estou morrendo, por favor, me cure.” Assim?
Assim — eu digo. — Mais ou menos, mas...
Mas nós dois sabemos que não há cura para o que eu tenho — ele diz, o sorriso murchando, o corpo encolhendo, a velha fragilidade voltando. — Isso me lembra a Grande Peste de 33. Ninguém sabia o que era ou de onde tinha vindo. Um dia tudo parecia estar bem e no dia seguinte o homem mais forte de Ashland: morto. Morreu enquanto tomava o café da manhã. O rigor mortis se instalou tão depressa que seu corpo endureceu ali mesmo na mesa da cozinha, com a colher a meio caminho da boca. Depois dele, uma dúzia morreu em uma hora. Não sei por que eu era imune. Vi meus vizinhos caírem no chão como se seus corpos tivessem ficado repentinamente vazios, como se...
Papai — eu digo duas vezes, e quando ele finalmente para, seguro sua mão magra e áspera. — Chega de histórias, certo? Chega de piadas bobas.
Elas são bobas?
No bom sentido, é claro.
Obrigado.
Só por um tempinho — digo —, vamos conversar, está bem? De homem para homem, de pai para filho. Chega de histórias.
Histórias? Você acha que eu conto histórias? Você não ia acreditar nas histórias que meu pai costumava contar para mim. Você acha que eu conto histórias para você, quando eu era menino eu ouvia histórias. Ele me acordava no meio da noite para me contar uma história. Era horrível.
Mas até isso é uma história, papai. Não acredito nem um pouco.
Mas você não precisa acreditar — diz, cansado. — Você só precisa dar valor a ela. É como... uma metáfora.
Eu me esqueço. O que é uma metáfora?
Normalmente vacas e ovelhas — ele diz, estremecendo de leve ao falar.
Está vendo? Mesmo quando você fala sério não consegue deixar de brincar. É frustrante, papai. Isso me mantém à distância. É como... se você tivesse medo de mim ou algo assim.
Medo de você? — ele diz, revirando os olhos. — Estou morrendo e devo ter medo de você?
Medo de se aproximar de mim.
Ele reflete sobre isso, o meu velho, e desvia o olhar, fitando o passado.
Deve ter algo a ver com meu pai — ele diz. — Meu pai era um bêbado. Nunca contei isso a você, contei? Ele era um bêbado horrível, do pior tipo. Às vezes ficava tão bêbado que não conseguia sair para comprar bebida. Durante um tempo me mandou comprar bebida para ele, mas depois eu parei, me recusei a ir. Finalmente ele ensinou ao cachorro, Juniper, a comprar bebida. Levava um balde vazio até o bar da esquina e o fazia trazer de volta cheio de cerveja. Pagava com uma nota de um dólar enfiada na coleira do cachorro. Um dia ele viu que não tinha nenhuma nota de um dólar, então enfiou uma nota de cinco dólares na coleira.
O cachorro não voltou. Mesmo caindo de bêbado, meu pai foi até o bar e encontrou o cachorro sentado num banquinho, tomando um martíni duplo.
Meu pai ficou zangado e magoado.
“‘Você nunca fez uma coisa dessas antes’, ele disse a Juniper.
“‘Nunca tive dinheiro para isso antes’, Juniper respondeu.”

E ele olha para mim, sem um pingo de arrependimento.
Você não consegue, não é? — digo, erguendo a voz, rangendo os dentes.
É claro que consigo.
Tudo bem — digo. — Então faça isso. Conte-me alguma coisa. Conte-me sobre o lugar em que você nasceu.
Ashland — ele diz, umedecendo os lábios.
Ashland. Como era lá?
Pequeno — ele diz, sua mente divagando. — Muito pequeno.
Pequeno como?
Era tão pequeno que quando você punha um barbeador elétrico na tomada, a luz da rua diminuía.
Não foi um bom começo — digo.
As pessoas lá eram tão ordinárias — ele diz — que comiam feijão para economizar em espuma de banho.
Eu te amo, papai — digo, chegando mais perto dele. — Nós merecemos mais do que isso. Mas você está dificultando as coisas. Ajude-me. Como você era em menino?
Eu era um menino gordo. Ninguém brincava comigo. Era tão gordo que só podia brincar de pegar, não de esconder. Era gordo assim — ele diz —, tão gordo que tinha que fazer duas viagens só para sair de casa. — Sem sorrir agora, porque não está tentando ser engraçado, está sendo apenas ele mesmo, algo que ele não pode deixar de ser. Debaixo de uma fachada existe outra fachada e outra e outra, e debaixo dela aquele lugar escuro e sofrido, sua vida, algo que nenhum de nós dois entende. Tudo o que consigo dizer é:
Mais uma chance. Vou dar-lhe mais uma chance e depois vou embora. Vou embora e não sei se vou voltar. Não vou mais ser seu contraponto.
E então ele diz para mim, meu pai, o mesmo pai que está morrendo ali na minha frente, embora hoje ele pareça bem para alguém no seu estado, ele diz:
Você não está sendo você mesmo hoje, filho — no seu melhor estilo Groucho, dando uma piscadela para o caso, muito remoto, de eu o levar a sério —, e isso é um grande progresso.
Mas eu o levo a sério: esse é o problema. Levanto-me para sair, mas ele me agarra pelo pulso e me segura com uma força que eu não achava que ele ainda tivesse. Eu olho para ele.
Eu sei quando vou morrer — ele diz, olhando bem dentro dos meus olhos. — Eu vi. Eu sei quando e como isso vai acontecer e não vai ser hoje, portanto não se preocupe.
Está perfeitamente sério, e acredito nele. Eu realmente acredito nele. Ele sabe. Mil pensamentos passam por minha cabeça, mas não consigo expressar nenhum deles. Nossos olhos estão grudados e eu fico extasiado. Ele sabe.
Como você... por quê...
Eu sempre soube — ele diz baixinho —, sempre tive esse poder, essa visão. Desde que era menino. Na época, eu sonhava. E acordava gritando. Na primeira noite em que isso aconteceu, meu pai veio e me perguntou o que havia de errado, e eu contei a ele. Contei que sonhara que a minha tia Stacy tinha morrido. Ele me assegurou que tia Stacy estava bem e voltei para a cama.
Mas no dia seguinte ela morreu.
Mais ou menos uma semana depois, aconteceu a mesma coisa. Outro sonho, acordei gritando. Ele veio até meu quarto e perguntou o que tinha acontecido. Eu disse a ele que tinha sonhado que o vovô tinha morrido. Mais uma vez ele me disse, talvez com uma certa trepidação na voz, que o vovô estava bem, então eu voltei a dormir.
No dia seguinte, é claro, o vovô morreu.
Passei uma semana sem sonhar. Aí tive outro sonho e papai veio e me perguntou o que eu tinha sonhado e eu contei a ele: sonhei que meu pai tinha morrido. Evidentemente, ele me assegurou que estava bem e que eu não devia pensar mais naquilo, mas percebi que o tinha deixado abalado, e o ouvi andando de um lado para o outro a noite inteira, e no dia seguinte ele estava nervoso, olhando de um lado para o outro como se algo fosse desabar na sua cabeça, e foi cedo para a cidade e ficou fora muito tempo. Quando voltou, estava com uma aparência horrível, como se tivesse esperado o dia inteiro pelo machado.
“‘Meu Deus’, ele disse para minha mãe assim que a viu. ‘Tive o pior dia da minha vida!’
“‘Você acha que você teve o pior dia’, ela diz. ‘O leiteiro caiu morto aqui na varanda hoje de manhã!’”
Bato com a porta ao sair, torcendo para ele ter um ataque cardíaco, para ele morrer logo, para acabarmos logo com isso. Afinal, eu já comecei a viver o luto.
Ei! — Eu o ouço chamar do outro lado. — Onde está o seu senso de humor? E se não o seu senso de humor, a sua piedade? Volte! — ele diz. — Dê um tempo, filho, por favor. Eu estou morrendo!

Daniel Wallace, in Peixe Grande

Nenhum comentário:

Postar um comentário