domingo, 5 de novembro de 2023

A briga


Edward Bloom não era de briga. Ele apreciava demais os prazeres do discurso para recorrer a uma forma tão primitiva e geralmente dolorosa de resolver disputas. Mas sabia defender-se quando obrigado, e foi obrigado na noite em que levou Sandra Kay Templeton para um passeio de carro em Piney Mountain.
Três semanas tinham se passado desde seu primeiro encontro, e nesse intervalo muitas palavras foram trocadas entre Edward e Sandra. Eles tinham ido ao cinema juntos, tinham dividido alguns leites maltados, ele tinha até contado uma ou duas piadas. Simplesmente por ser quem era — nada mais, nada menos — meu pai estava conquistando o coração de minha mãe. As coisas estavam ficando sérias: quando ele tocava em sua mão, ela enrubescia. Ela esquecia o final das frases que tinha iniciado. Ela ainda não tinha se apaixonado por meu pai. Mas percebia que podia se apaixonar por ele.
Talvez ela tivesse que pensar mais a respeito.
Aquela noite seria uma parte importante de todo esse processo de reflexão. Era a noite do Passeio de Carro. Depois de andar sem destino certo por alguns quilômetros, eles chegariam no final de alguma estradinha sem saída, sozinhos na floresta escura, e, cercados pelo silêncio, ele se inclinaria até ela e ela se aproximaria imperceptivelmente dele, e eles se beijariam. Estavam indo por esse caminho quando pelo espelho retrovisor meu pai viu um par de faróis, pequenos a princípio, mas ficando maiores, descendo rapidamente pela estrada estreita e sinuosa de Piney Mountain. Edward não sabia que se tratava de Don Price. Sabia apenas que era um carro que vinha atrás deles numa velocidade perigosa, então diminuiu a marcha, para poder tomar uma decisão mais sábia caso acontecesse alguma coisa.
De repente o carro estava bem atrás deles, com os faróis refletindo no espelho retrovisor. Edward baixou o vidro e fez sinal para o outro passar, mas quando fez isso o carro bateu em seu para-choque. Sandra levou um susto, e meu pai tocou em sua perna para acalmá-la.
Está tudo bem — ele disse. — Deve ser algum garoto bêbado.
Não — ela respondeu. — É Don.
E meu pai compreendeu. Sem precisar de outra palavra, a situação ficou clara, assim como teria ficado cem anos antes numa cidade de fronteira no oeste e Don o tivesse encontrado no meio de uma rua de terra, com a mão no coldre. Aquilo era uma briga.
O carro de Don tornou a bater no para-choque, e meu pai apertou o acelerador. Edward tinha que provar que se o que Don Price queria era velocidade, ele podia ser veloz, e foi em alta velocidade que fez a curva seguinte, deixando Don Price para trás.
Mas em segundos ele estava de volta, não mais batendo no carro por trás e sim de lado, os dois carros tomando a estrada toda, indo em alta velocidade por colinas e curvas de uma maneira que teria feito parar corações mais fracos. Don Price desviava o carro para a pista de meu pai, e meu pai respondia da mesma forma, os dois carros encostados, porta com porta. Meu pai sabia que poderia dirigir por aquela estrada pelo tempo que fosse preciso, mas não estava certo quanto a Don Price, cujo rosto avistou de relance enquanto os carros oscilavam de um lado para o outro por causa dos solavancos.
Meu pai deu uma última acelerada no carro, passou à frente e virou o volante abruptamente, bloqueando a estrada com o carro. Don Price freou a centímetros de distância, e os dois saíram imediatamente dos carros, encarando-se, a pouca distância um do outro.
Ela é minha — Don Price disse.
Ele era do mesmo tamanho que Edward, até um pouco maior na largura dos ombros. O pai tinha uma empresa de transporte de mercadorias, onde Don trabalhava durante o verão carregando e descarregando peças de trator, e isso dava para ver.
Não sabia que ela pertencia a alguém — meu pai disse.
Bem, agora você sabe, garoto de fazenda.
Don olhou para ela, ainda sentada no carro.
Sandra — ele disse.
Mas ela não se mexeu. Ficou ali sentada, pensando.
Nós vamos nos casar — Don falou para meu pai. — Eu a pedi em casamento, garoto de fazenda. Ou ela não disse para você?
A questão é o que foi que ela disse para você?
Don Price não falou nada, mas sua respiração ficou ofegante e seus olhos se estreitaram, como um touro prestes a atacar.
Eu poderia rasgá-lo ao meio como se fosse um boneco de papel — ele disse.
Não há razão para isso.
É melhor você torcer para que não haja — Don Price disse. — Contanto que Sandy entre no meu carro. Agora.
Ela não vai fazer isso, Don — meu pai disse.
Don Price riu.
Quem é você para decidir?
Você está bêbado, Don — meu pai disse. — Vou tirá-la desta estrada e aí, se ela quiser ir embora com você, tudo bem. O que você acha?
Mas isso só fez Don Price rir ainda mais. Embora se lembrasse do que tinha visto no olho de vidro da velha senhora muitas semanas antes, Don Price apenas riu.
Obrigado por me dar essa opção, garoto de fazenda — ele disse. — Mas não, obrigado.
E Don Price o atacou com a fúria de dez homens, mas meu pai tinha a força de muitos mais, e eles lutaram por algum tempo, golpeando um ao outro com os punhos. O sangue cobria o rosto deles, escorrendo pelo nariz e pelos lábios, mas no fim Don Price caiu e não se levantou, e meu pai ficou parado ao lado dele, triunfante. Então colocou o corpo machucado do oponente no banco de trás do carro e levou minha mãe e Don Price de volta para a cidade pela estrada da montanha.
Minha mãe e meu pai ficaram em silêncio por um longo tempo. Era um silêncio tão profundo que um quase podia ouvir os pensamentos do outro. Meu pai então disse:
Ele pediu você em casamento, Sandy?
Sim — minha mãe disse. — Pediu.
E o que foi que você respondeu?
Disse a ele que ia pensar.
E?
E pensei — ela disse, segurando a mão de meu pai suja de sangue.
E aí eles se beijaram.

Daniel Wallace, in Peixe Grande

Nenhum comentário:

Postar um comentário