quarta-feira, 8 de novembro de 2023

5 | Baal

Estou, pois, em Paris... Não penseis, porém, que vos contarei muito de Paris enquanto cidade. Acho que já lestes tanto sobre Paris em russo que estais fartos. Além disso, já lá fostes e, com certeza, vistes tudo melhor do que eu. Além de que eu, no estrangeiro, detestava guiar-me pelo guia, ver as coisas por encomenda, por obrigação do viajante, por isso, nalguns sítios, deixei passar curiosidades tão importantes que até tenho vergonha de o dizer. Em Paris passou-se o mesmo. Por isso não vou especificar as minhas falhas, mas antes dar uma definição geral de Paris, um epíteto, e insisto neste termo de epíteto. Ei-lo: Paris é a mais moral e virtuosa cidade de todo o globo terrestre. Que ordem! Que sensatez, que relações definidas e firmes ali se estabeleceram! Como tudo está bem garantido e regularizado! Como toda a gente anda contente, como todos tentam convencer-se de que estão contentes e felizes! Por fim, até que ponto toda a gente se tem esforçado que chega mesmo a ter certeza de estar feliz e contente, e que... e que... chegou ao ponto final! Mais adiante já não é possível, não há sequer caminho. Não ides acreditar que eles tenham parado, gritareis que eu exagero, que tudo isto é uma biliosa calúnia patriótica, que, francamente, nem tudo poderia passar assim por completo. Mas, meus amigos: logo no primeiro capítulo avisei-vos de que talvez viesse a dizer-vos mentiras terríveis. Deixai-me, então, à vontade. Também já sabeis por certo que, ao mentir, o faço com a convicção de que estou a dizer a verdade. A meu ver, isso é quanto basta. Portanto, deixai-me falar à vontade.
Sim, Paris é uma cidade surpreendente. E que conforto, que comodidades de todo o gênero para quem tem direito às comodidades, e, repito, que ordem em tudo, a ponto de se poder dizer que a cidade é toda uma calmaria de ordem. Volto sempre a esta ordem. A sério, mais um pouco e Paris, com o seu milhão e meio de habitantes, transforma-se numa universitária cidadezinha alemã, petrificada na calmaria e na ordem, do gênero de uma qualquer Heidelberga. Tem toda a tendência para isso. Quem disse que não pode existir uma Heildelberga em formato gigantesco? Que regulamentação em tudo! Compreendei-me bem: não é tanto uma regulamentação exterior, que nesse aspeto é insignificante (de uma insignificância relativa, é claro), mas uma regulamentação interior, espiritual, que provém da alma. Paris estreita-se, de boa vontade se humilha, encolhe-se enternecidamente. Neste sentido não tem comparação, por exemplo, com Londres! Estive em Londres apenas oito dias, e, pelo menos na sua aparência, oferece-nos cenários amplos, perspetivas vivas, peculiares e sem regulamentação; assim se gravou Londres na minha memória! Nesta cidade é tudo gigantesco e nítido na sua originalidade. É possível até iludirmo-nos no meio desta originalidade. Cada traço forte, cada contradição, convive com a sua antítese, caminhando a par, mas contradizendo-se sem se excluírem mutuamente. Ao que parece, toda esta diversidade insiste em existir e vive a sua vida própria; e, pelos vistos, as facetas contrastantes não criam obstáculos umas às outras. No entanto, também aqui decorre a mesma luta persistente, surda e já inveterada, a luta de morte do princípio pessoal, comum a todo o Ocidente, com a necessidade de conviver, de formar comunidade, seja de que maneira for, de se acomodar no formigueiro comum; nem que seja assim: transformando-se em formigueiro, mas acomodar-se de modo a que os indivíduos não se devorem uns aos outros — para não se chegar à antropofagia! Neste sentido, observa-se a mesma coisa que em Paris: a mesma vontade desesperada de, por desespero, a pessoa se agarrar ao statu quo, de arrancar do seu ser, pela raiz, todos os desejos e esperanças, de amaldiçoar o futuro, em que tem pouca fé (talvez mesmo os próprios guias do progresso), e venerar Baal. Por favor, sobretudo não vos deixeis porém arrebatar pelo estilo elevado: tudo isto apenas se consciencializa na alma dos intelectos de vanguarda, mas nota-se, por instinto, inconscientemente, na atividade quotidiana de toda a massa. Mas o bourgeois de Paris, por exemplo, está quase satisfeito, conscientemente, e tem a certeza de que tudo está a correr como deve, e é mesmo capaz de nos dar uma sova se duvidarmos de que as coisas têm de ser assim, e bate-nos, porque, até hoje, ele receia qualquer coisa, apesar de estar convencido de que tudo está bem. Em Londres é igual, mas, em contrapartida, que cenários amplos, esmagadores! O próprio aspeto exterior é diferente do de Paris. Esta cidade em azáfama dia e noite, inabarcável como o mar, os uivos e os guinchos das máquinas, as vias-férreas por cima dos prédios (e em breve também por debaixo dos prédios(1)), toda aquela ousadia de empreendimento, toda aquela aparente desordem que, na sua essência, é a ordem burguesa no seu grau superior, aquele Tamisa poluído, aquele ar impregnado de pó de carvão; aqueles magníficos bulevares e parques, aqueles cantos terríveis da cidade, como Whitechapel, com a sua população seminua, selvagem e faminta. A City com os seus milhões e o comércio internacional, o palácio de cristal, a exposição universal... Sim, a exposição é impressionante. Sentimos ali o poder formidável que juntou todo aquele sem-fim de pessoas, vindas de todo o mundo para se unirem num único rebanho; temos a consciência de uma gigantesca ideia; sentimos que ali já tinha sido alcançada alguma coisa, que ali havia vitória, triunfo. É como se começássemos até a ter medo de qualquer coisa. Por mais independentes que sejamos, por vezes sentimos um medo súbito e incompreensível. Não será isto, realmente, o ideal alcançado? — pensamos. — Não será o fim procurado? Não será isto, de facto, um “rebanho único”(2)? Não deveremos tomá-lo pela verdade absoluta e imobilizarmo-nos definitivamente? Tudo isto é tão solene, triunfante e orgulhoso que nos corta a respiração. Olhamos para estas centenas de milhares, para estes milhões de pessoas que, obedientemente, afluem aqui de todo o globo terrestre — pessoas que vieram com uma única ideia e que, silenciosas e persistentes, se apertam neste palácio gigantesco, e sentimos que aqui aconteceu qualquer coisa de definitivo, que qualquer coisa aconteceu e terminou. É uma espécie de quadro bíblico, uma Babilónia, uma profecia do Apocalipse desenrolando-se aos nossos olhos. Sentimos que é necessária muita resistência e negação espiritual para não cedermos, para não nos curvarmos perante o facto, para não obedecermos a esta sensação e não divinizarmos Baal, ou seja, não tomarmos o que existe e vemos por nosso ideal...
Mas é absurdo, direis, de uma absurdez doentia, são nervos, é exagero. Ninguém vai chegar a este ponto, ninguém vai tomar isto por seu ideal. Além disso, a fome e a escravidão não perdoam e vão, mais e melhor do que tudo, trazer a negação e conceber o ceticismo. Ora, os cevados diletantes que passeiam aqui por divertimento podem, evidentemente, criar à vontade cenas apocalíticas e irritar os próprios nervos, exagerando e espremendo bem de cada fenômeno, em prol de alguma autossatisfação, sensações fortes...
Sim — respondo —, admitamos que fui influenciado pela decoração, não o contesto. Mas se vísseis como era orgulhoso o espírito potente que criou esta gigantesca decoração e com que soberba este espírito estava convicto da sua vitória, do seu triunfo, também tremeríeis de medo por aqueles sobre quem paira e reina este espírito orgulhoso, com a sua soberba, teimosia e cegueira. Sob o poder desta grandeza enorme, deste orgulho gigantesco do espírito reinante, da perfeição solene das suas criações, também a alma faminta se resigna, se submete, e procura a salvação na genebra e na depravação, e começa a acreditar que as coisas têm de ser mesmo assim. O fato oprime, as massas ficam empedernidas e assimilam o “chinesismo”(3), ou então, se o ceticismo as toca, procuram com soturnidade e maldições a salvação em algo do gênero do mormonismo. Ora, em Londres, podemos ver massas populares em números e ambientes como não se veem em mais lado algum do planeta. Disseram-me, por exemplo, que nas noites de sábado se derrama e espalha por toda a cidade, como um mar, meio milhão de operários e de operárias fabris, concentrando-se nalguns bairros, e durante toda a noite, até às cinco da manhã, desvairam-se num sabat, ou seja, empanturram-se e embebedam-se como porcos para toda a semana. Gastam nisso todas as poupanças da semana, tudo o que, entre maldições, ganharam com o seu trabalho duro. Os feixes grossos de candeeiros a gás dos talhos e das mercearias iluminam as ruas. Organiza-se uma espécie de baile para esses escravos brancos. O povo aperta-se nas tabernas abertas e nas ruas. As cervejarias estão enfeitadas como palácios. Está tudo bêbado mas sem alegria, é tudo soturno, sombrio e estranhamente tácito. O silêncio suspeito e triste somente é interrompido de vez em quando pelas pragas e pelas rixas sangrentas. Toda a gente tem pressa de se embebedar até à perda dos sentidos... As mulheres não ficam atrás dos homens e embebedam-se com eles; as crianças correm e gatinham no meio dos adultos. Numa dessas noites, já passava da uma da manhã, perdi-me e vi-me a vaguear demoradamente pelas ruas no meio da infindável multidão deste povo soturno, perguntando pelo caminho quase só por gestos, porque não conheço uma palavra de inglês. Consegui que me indicassem o caminho, mas a impressão do que vi iria atormentar-me ainda por três dias. Povo é povo, por todo o lado, mas aqui era tudo tão gigantesco, tão gritante, que se me tornou palpável o que antes eu apenas imaginava. Não é tanto o povo que vemos aqui, mas mais a perda sistemática, obediente e estimulada da consciência. E sentimos, olhando para esses párias da sociedade, que, durante muito tempo ainda, não se cumprirá para eles a profecia, não lhes serão estendidos os ramos de palmeira e as vestes brancas, e que, durante muito tempo ainda, eles vão clamar em direção do trono do Todo-Poderoso: “Até quando, Senhor?” E eles próprios o sabem e, entretanto, vão-se vingando da sociedade com os seus mórmones, tremedores(4), peregrinos... Espantamo-nos com a estupidez das gentes por se tornarem “tremedoras” ou peregrinas, mas não percebemos que há nisso o afastamento da nossa fórmula social, um afastamento persistente e inconsciente; um afastamento instintivo, custe o que custar, em prol da salvação; o afastamento de nós todos, com repugnância e pavor. Esses milhões de indivíduos, abandonados e expulsos do banquete humano, apertando-se e atropelando-se nas trevas do subterrâneo para onde foram lançados pelos irmãos mais velhos, batem às portas, às apalpadelas (sejam quais forem as portas), e procuram a saída para não sufocarem na cave escura. Há aqui uma última, uma desesperada tentativa de se unirem no seu grupo, na sua própria massa, e de se separarem de tudo, nem que seja da imagem humana, apenas para viverem à sua maneira, para não estarem conosco...
Vi em Londres mais uma multidão semelhante a esta, uma multidão que não poderemos ver em lado nenhum senão em Londres. O cenário também era sui generis. Quem já esteve em Londres foi, pelo menos uma vez, a High Market. É um quarteirão onde de noite, nalgumas ruas, se concentram milhares de prostitutas. As ruas são iluminadas por feixes de lampiões de gás, coisa de que entre nós não se faz a mínima ideia. Os magníficos cafés pululam, ornamentados de espelhos e ouro. É aqui que elas se juntam, e é aqui que elas também encontram abrigo. É medonho entrarmos no meio daquela multidão de estranhíssima composição. Há velhas e há jovens beldades em frente das quais paramos, pasmados. Não há em todo o mundo mulheres tão belas como as inglesas. São tantas que quase não cabem nas ruas, o aperto é grande. A multidão não cabe nos passeios e invade a calçada. Alguém anseia constantemente por caçar alguém, alguém que se atira ao primeiro passante que aparece com um cinismo desavergonhado. As roupas, aqui, vão dos brilhantes trajos caros aos farrapos; as diferenças de idades são bruscas: tudo junto. Nesta multidão monstruosa tanto se incorpora um vagabundo como um ricaço titular. Ouvem-se pragas, altercações, vozes que convidam e, baixinho, o sussurro de uma beldade ainda tímida. E, aqui e ali, que belezas! Rostos como os dos keepsake(5). Lembro-me de que uma vez entrei num “Casino” ribombante de música. Dançava-se, a multidão era enorme. A decoração era magnífica. Porém, mesmo no meio da festa, a soturnidade nunca abandona os ingleses: dançam muito sérios, até sombrios, executando os passos como que por obrigação. Em cima, na galeria, vi uma rapariga e parei, espantado: nunca vira nada de semelhante àquela beleza ideal. Estava sentada a uma mesinha na companhia de um jovem que parecia um gentleman rico e, por todos os indícios, nada habitué dos casinos. Talvez o jovem apenas a quisesse ver e o encontro tivesse sido combinado para ali. Ele falava pouco, sempre em frases sacudidas, como se não dissesse o que lhe apetecia dizer. Silêncios longos interrompiam a conversa. Ela também estava muito triste. Os seus traços de rosto eram ternos, finos, havia qualquer coisa de oculto e triste no seu olhar belo e um pouco orgulhoso, alguma coisa de pensador e angustiado. Dava ares de tísica. Pelo seu porte era com certeza de um desenvolvimento superior ao de todas as desgraçadas mulheres que ali estavam: senão, que significado tem o rosto humano? Entretanto, bebia a genebra que o jovem lhe pagara. Por fim, ele levantou-se, apertou-lhe a mão, despediram-se. O jovem saiu do casino, e ela, com manchas espessas de vermelho que se lhe acenderam nas faces por causa do álcool que bebeu, entrou na multidão de mulheres à procura de cliente e desapareceu entre ela. Em High Market vi mães que traziam para o negócio as suas filhas menores. Garotas de doze anos apanham-nos pela mão e insistem que vamos com elas. Lembro-me de ter visto na multidão da rua uma menina de seis anos, não mais, esfarrapada, suja, descalça, exausta e espancada; viam-se-lhe as nódoas negras no corpinho através dos farrapos que lhe serviam de roupa. Andava ali como que inconsciente, sem pressa, vagueando entre a multidão sabia-se lá para quê; talvez tivesse fome. Mas o que mais me pasmou foi o ar dela: a amargura e o desespero na carinha daquela pequena criatura eram tamanhos, a maldição que carregava em si era tanta e tão antinatural que era muito doloroso olhar para ela. Ia meneando a cabeça desgrenhada, como se raciocinasse consigo mesma, abria os braços, gesticulava, depois juntava as mãos e apertava-as contra o corpinho nu. Voltei atrás e dei-lhe meio xelim. Pegou na moedinha de prata, olhou-me nos olhos como uma demente, com um espanto assustado, e logo fugiu de mim, como se tivesse medo de que eu lhe tirasse o dinheiro. Em geral, matéria brejeira...
Então, uma noite, na multidão dessas mulheres perdidas e de homens depravados, uma senhora furou apressadamente de entre a multidão e fez-me parar. Estava toda de preto, com um chapéu que lhe cobria quase toda a cara; não consegui vê-la bem, lembro-me apenas do seu olhar perscrutador. Disse qualquer coisa que não percebi, num francês macarrônico, meteu-me na mão um papelinho e seguiu rapidamente em frente. Perto da janela iluminada de um café, olhei para o papel: era um pequeno quadrado de papel; de um lado estava impresso: “Crois-tu cela?”(6). Do outro lado, também em francês: “Eu sou a ressurreição e a vida...”(7), etc., e várias outras linhas conhecidas. Tendes de concordar que é um episódio original. Mais tarde explicar-me-iam que aquilo era propaganda católica, que pulula por todo o lado, persistente, incansável. Eles ora distribuem estes papelinhos nas ruas, ora livrinhos com excertos do Novo e do Velho Testamento. Dão-nos aquilo tudo de graça, impingem-no-lo, metem-no-lo à força nas mãos. São muitos os propagandistas, homens e mulheres. A propaganda deles é sofisticada, bem calculada. Um padre católico descobre uma família operária pobre e mete-se lá dentro. Encontra um doente deitado, por exemplo, no meio dos seus andrajos, no chão úmido, rodeado de filhos asselvajados pela fome e pelo frio, a mulher faminta, muitas vezes bêbada. O padre dá de comer a todos, veste-os, aquece-os, trata do doente, compra os medicamentos, torna-se amigo da casa e, por fim, converte-os a todos ao catolicismo. Por vezes, aliás, também acontece que, recuperado o doente, o padre seja corrido à pancada e aos insultos. Mas o padre não desiste, vai a outros. Expulsam-no de lá também; aguentará tudo, mas por fim há de apanhar alguém. O pastor anglicano, esse, não visita os pobres. Os pobres não podem entrar na igreja, porque não têm dinheiro para pagar o lugar no banco. Os casamentos entre operários e entre os pobres em geral reduzem-se, muitas vezes, a uniões de facto, porque o casamento legítimo fica caro. A este propósito, direi que muitos maridos batem terrivelmente nas mulheres, mutilam-nas, e fazem-no normalmente com os atiçadores com que mexem as brasas nas lareiras. O atiçador, entre eles, é já um instrumento consagrado de espancamento. Pelo menos, nos jornais, quando se noticiam brigas nas famílias, mutilações e assassínios, o atiçador é sempre mencionado. Os filhos, mal crescem um pouco, vão para a rua e misturam-se com a multidão, acabando muitas vezes por não voltar para junto dos pais. Os sacerdotes e os bispos anglicanos são orgulhosos e ricos, como ricas são as suas paróquias, e engordam de consciência perfeitamente tranquila. São grandes pedantes, muito cultos, e acreditam a sério e com solenidade na sua dignidade moral, no seu direito de pregarem sermões de uma moral calma e convencida, e de engordarem e viverem para os ricos do país. É a religião dos ricos, e já sem máscara. Pelo menos tudo é racional e sem disfarces. Estes professores de religião e moral, convencidos até à estupidez, têm uma espécie de divertimento: o missionarismo. Fazem as suas andanças por todo o globo terráqueo, entram no interior de África para converterem um selvagem e descuram o milhão de selvagens que há em Londres, porque estes não têm dinheiro para lhes pagar. Ora, os ingleses ricos e, em geral, todos os bezerros de oiro de lá, são extremamente religiosos, sombria, tenebrosa e originalmente religiosos. Os poetas ingleses, desde os primórdios dos tempos, gostam de cantar a beleza das residências dos sacerdotes de província, as suas casas sombreadas pelos carvalhos e pelos castanheiros centenários, as suas esposas virtuosas e as suas filhas dotadas da beleza ideal, loiras e de olhos azul-celestes.
Quando passa a noite e desponta o dia, o mesmo espírito orgulhoso e sombrio volta a voar majestosamente por sobre a cidade gigantesca. A cidade não se preocupa com o que se passou de noite nem vê o que à sua volta se passa de dia. Baal reina e nem sequer exige obediência, tão seguro está dela. A fé em si próprio é nele infinita; com desprezo e calma, só para se desfazer dos importunos, distribui uma esmola organizada, e depois disso é impossível abalar a sua presunção. Baal não desvia (ao contrário do que se passa em Paris), não desvia os olhos de certos fenômenos selvagens, suspeitos e preocupantes da vida. A pobreza, o sofrimento, o protesto e o embrutecimento das massas não o preocupam minimamente. Com desdém, deixa que todos esses fenômenos suspeitos e sinistros medrem ao lado da sua vida, perto, à vista. Não tenta, como um parisiense, convencer-se e animar-se a si mesmo, cobarde e forçadamente, e dizer a si próprio que está tudo bem e calmo. Não esconde os pobres em qualquer lado, como se faz em Paris, para que não o incomodem e não lhe perturbem o sono sem necessidade. O parisiense, como o avestruz, gosta de enfiar a cabeça na areia para não ver os caçadores que se aproximam. Em Paris... Mas, credo, o que estou eu a fazer? Não estou em Paris... Mas quando, meus senhores, quando é que eu, finalmente, aprendo a ser disciplinado?…

(1) O primeiro caminho de ferro subterrâneo (metropolitano) foi construído em Londres de 1860 a 1863. (NT)
(2) “[...] e haverá um só rebanho e um só Pastor”, S. João 10,16. (NT)
(3) Nos meados do século XIX, o termo “chinesismo” utilizava-se para a definição da estagnação política, quando os estratos mais baixos da população obedeciam servilmente ao despotismo dos detentores do poder. (NT)
(4) Os tremedores (triassuni) são uma seita religiosa que pratica nos seus rituais os métodos extáticos de oração: “tremem” e “profetizam” com palavras incompreensíveis (apareceram na Rússia na segunda metade do século XIX). (NT)
(5) Keepsake (ing.), álbum de gravuras com bustozinhos femininos representando belezas ideais. (NT)
(6) “Acreditas nisso?” (fr.). (NT)
(7) Evangelho segundo S. João 11, 25. (NT)

Dostoiévski, in A Submissa e Outras Histórias

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