domingo, 29 de outubro de 2023

Trêmulo e casto


[…]
Eu lamento tanto em cima da xícara com a bebida que eles percebem que vou ficar bêbado e então todos permitem e insistem que eu tome um pico de morfina, o que aceito sem medo porque sou um bêbado – Pior sensação do mundo, tomar morfina quando você está bêbado, o resultado dá um nó em sua testa como se fosse uma pedra e provoca muita dor lá enquanto disputam o domínio da área, nenhum deles ganha porque anularam um ao outro, o álcool e o alcaloide. Mas aceito, e assim que começo a sentir seu efeito que me alerta e aquece, olho para baixo e percebo que o frango, a galinha, quer fazer amizade comigo – Está por perto com o pescoço balançando, olhando para minha rótula, para minhas mãos pendentes, quer se aproximar mas não tem autoridade – Então estendo a mão para que ela a bique, para que ela saiba que não tenho medo porque na verdade confio que ela não vai me machucar – o que ela não faz – fica apenas olhando para minha mão com cautela, dúvida e, de repente, quase com doçura, e então eu tiro a mão com uma sensação de vitória. Ela cacareja contente, pega um pedaço de algo no chão e o joga fora, um pedaço de linha pendurado em seu bico, ela o joga fora, olha ao redor, anda pela cozinha dourada do Tempo em um grande resplendor de Nirvana de sábado à noite e todos os rios rugindo sob a chuva, o estrondo em minha alma quando penso na primeira infância e você vê os adultos grandes na sala, a onda e o ranger de suas mãos sombrias, enquanto discutem sobre o tempo e a responsabilidade, em um Filme de Ouro dentro de minha própria mente sem substância nem mesmo gelatinosa – a esperança e o horror do vazio – grandes fantasmas gritando em minha cabeça com a fotografia estranha e engraçada do galo que agora se ergue e emite um som do fundo da garganta, dirigindo–se às cercas abertas do Missouri, explode em gritos de pólvora de vergonha matinal, reverendo para o homem – Ao amanhecer, em meio a oceanidades impenetráveis e áridas de melancolia profundamente submersa, ele emite sua canção matinal otimista e ainda assim o fazendeiro sabe que aquilo não vai terminar daquela maneira otimista. Então ele cacareja, cacarejos de galo, comenta sobre alguma coisa louca que podemos ter dito, e cacareja – pobre ser que pressente e percebe, a besta sabe que chegou sua hora nos galinheiros da Avenida Lenox cacareja exultante como nós – grita mais alto se é um homem, com barbelas e cristas especiais de galo Galinha, sua mulher, usa o chapéu ajustável que cai de um lado para outro de seu bico bonito. “Bom dia, Sra. Gazoooks”, digo a ela, divertindo-me sozinho ao observar as galinhas como fazia quando moleque em New Hampshire em fazendas à noite esperando que a conversa terminasse e a lenha fosse levada para dentro. Trabalhava duro para meu pai na Terra Pura, era forte e verdadeiro, fui à cidade para ver Tathagata, nivelei o chão para seus pés, vi calombos por toda a parte e nivelei o chão, ele passou e me viu e disse “Primeiro nivele sua mente, e então a terra estará nivelada, até o monte Sumeru” (o antigo nome do Everest em magadha antigo) (Índia).

Também quero fazer amizade com o galo, agora estou sentado diante da cama nas outras cadeiras depois que El Indio saiu com um bando de homens suspeitos com bigodes, um dos quais olhou fixamente para mim com curiosidade e um sorriso orgulhoso e satisfeito quando eu me levantei com a xícara na mão, agindo como se estivesse bêbado em frente das mulheres para a edificação dele e de seus amigos – Sozinho na casa com duas mulheres, sento-me educadamente diante delas e conversamos com franqueza e avidez sobre Deus. “Meus amigos está um doentes, eu dou a elesh uma dose”, conta-me a bela Tristessa de Dolours com seus dedos longos, úmidos e expressivos dançando o bailado tilintante dos indiozinhos diante de meus olhos assombrados. “– E cuando meu amigo no me paga, eu naum me importo. Porque”, aponta para o alto com uma expressão sincera para meus olhos, dedo no ar, “Meu Senhor me paga – e ele me paga mais M–a–i–s” – ela se inclina rapidamente para dar mais ênfase, e eu gostaria de poder dizer a ela em espanhol a bênção inestimável e ilimitada que receberá de qualquer forma no Nirvana. Mas eu a amo, me apaixono por ela. Ela acaricia meu braço com o dedo. Eu adoro. Tento me lembrar de meu lugar e minha posição na eternidade. Renunciei à luxúria com as mulheres renunciei à luxúria pela luxúria – renunciei à sexualidade e ao impulso inibidor – quero entrar na torrente sagrada de luz e ficar seguro em meu caminho para a outra margem, mas deixaria, de boa vontade, um beijo para Tristessa por escutar os apelos de meu coração. Ela sabe que eu a amo e admiro com todo o meu coração e que estou me segurando. “Você tem sua vida”: diz ela para Old Bull (e sobre ele em um minuto) “e eu tenho que cuidar da minha, e Jack tem a vida deeli”, apontando para mim, ela me devolve minha vida e não a exige para si mesma como fazem tantas mulheres que você ama. – Eu a amo mas quero partir. Ela diz: “Eu sei, um homem y uma mulher estaum condenados –” “quando querem estar condenados” – Ela balança a cabeça, confirma para si mesma alguma sombria crença asteca instintiva, sábia uma mulher sábia, que teria dignificado os rebanhos de Bhikshunis na própria época de Yasodhara e teria dado uma freira divina adicional. Com os olhos fechados e as mãos juntas, uma Madona. Me faz chorar perceber que Tristessa nunca teve um filho e provavelmente jamais terá por conta de seu problema com a morfina (uma doença que perdura enquanto houver necessidade, que, ao mesmo tempo, se alimenta da necessidade e a satisfaz, isso faz com que passe o dia inteiro a gemer de dor e a dor é real, como abcessos em seus ombros ou uma nevralgia que desce pelo lado de sua cabeça e em 1952, pouco antes do Natal, ela quase morreu), a santificada Tristessa não vai renascer outra vez. Irá direto para seu Deus e Ele irá recompensar seu rebanho de multibilhões com eternidades e eternidades de tempo de Carma perdido. Ela compreende o Carma, e diz: “O que faço é ceifar”, diz em espanhol – “Homens e mulheres cometem errares – erros, falhas, pecados, faltas,” seres humanos semeiam com problemas sua própria terra, e tropeçam nas pedras de sua imaginação falsa e errada, e a vida é dura. Ela sabe, eu sei, você sabe. – “Mas – eu quero tomar una dose – morfina – e no ficar mais com essa vontade.” Ela encurva os ombros com rosto de camponesa, compreendendo a si mesma de uma maneira que eu não consigo e quando olho para ela sob o tremeluzir da vela sobre as maçãs protuberantes de seu rosto e ela parece tão bonita quanto uma Ava Gardner Negra, uma Ava Marrom de rosto comprido e ossos compridos e olhos semicerrados de cílios compridos – Só que Tristessa não tem essa expressão de um sorriso sexual, tem a expressão de menosprezo indígena de rosto triste e abatido para o que você acha de sua beleza mais que perfeita. Não que seja uma beleza perfeita como a de Ava, ela tem falhas, erros, mas todos os homens e mulheres os têm e por isso todas as mulheres perdoam os homens e os homens perdoam as mulheres e eles seguem seus caminhos sagrados para a morte. Tristessa ama a morte, vai até o ícone, arruma as flores e reza. – Ela se abaixa com um sanduíche nas mãos e reza, olhando de lado para o ícone, sentada na cama da maneira birmanesa (um joelho na frente do outro) (abatida) (sentada), ela faz uma longa oração a Maria para pedir bênçãos ou dar graças pela comida, eu espero em silêncio respeitoso, dou uma olhadela para El Indio que também é devoto, ao ponto de chorar com seus olhos vidrados e reverentes de viciado e às vezes gosto especialmente quando Tristessa tira as meias para entrar nos cobertores da cama dizendo um segredo de frases de amor veneráveis a meia-voz (“Tristessa, O Yé comme tu est Belle”) (o que, sem dúvida, é o que estou pensando mas tenho medo de olhar e ver Tristessa tirar suas meias de náilon com medo de conseguir ver suas coxas cor de café com leite e ficar louco) – Mas El Indio também está chapado demais com a solução venenosa de morfina para se importar e dar continuidade a sua reverência por Tristessa, ele está ocupado, às vezes ocupado passando mal, tem uma mulher, dois filhos (do outro lado da cidade), tem que trabalhar, tem que descolar as paradas para Tristessa quando ela não tem nada (como agora) – (motivo de sua presença na casa) Vejo a coisa pipocando e digressionando em todas as direções, a história daquela casa e daquela cozinha.
Nas paredes da cozinha há fotos pornográficas de garotas mexicanas, garotas de lingerie preta e coxas grossas e relevos reveladores dos seios e drapeado pélvico, que estudo com interesse, nos lugares certos, mas as fotos estão todas amassadas e manchadas pela chuva e com as pontas enroladas e penduradas de qualquer jeito na parede, e você tem de ajeitá-las e esticá-las para poder estudá-las, e mesmo assim a chuva escorre pelas folhas de repolho e o papelão encharcado acima – Quem poderia ter tentado fazer um teto para a felaína? – “Meu Senhor, ele me recompensa mais” –

Jack Kerouac, in Tristessa

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