[…]
O
senhor aprende? Eu entôo mal. Não por boca de ruindade, lá como
quem diz. Sou ruim não, sou homem de gostar dos outros, quando não
me aperreiam; sou de tolerar. Não tenho a caixeta da raiva aberta.
Rixava com nenhum, ali, aceitava o regime, na miudez das normas. Vai,
daí, comigo erraram. Um, errou. Um pai-jagunço chamado Antenor,
acho que era coração-de-jesusense, começou a temperar conversa,
sagaz de fiúza, notei. Ele era homem chegado ao Hermógenes ― se
sabia dessa parte. De diz em diz, rodeava a questão. Queria saber
que apreço eu tinha por Joca Ramiro, por Titão Passos, os outros
todos. Se eu conhecia Sô Candelário, que estava por chegar? O giro
dos assuntos ― ele me tenteava a fala. Notei. E, devagar, vinha
querendo deixar em mim uma má vazante: me largar em dúvida. Não
era? Aquilo eu inteligenciava. Esse Antenor, sempre louvando e
vivando Joca Ramiro, acabou por me dar a entender, curtamente, o em
conseguinte: que Joca Ramiro talvez fazia mal em estar tanto tempo
por longe, alguns de bofe ruim já calculavam que ele estivesse
abandonando seu pessoal, em horas de tanta guerra; que Joca Ramiro
era rico, dono de muitas posses em terras, e se arranchava passando
bem em casas de grandes fazendeiros e políticos, deles recebia
dinheiro de munição e paga! seô Sul de Oliveira, coronel Caetano
Cordeiro, doutor Mirabô de Melo. Que era que eu achava?
Eu
escutei. Respondi? Ah, ah. Sou lá para achar nenhuma coisa. Não
tinha nascido no ôntem, cedo tomei experiência de homens por
homens. Disse só que decerto Joca Ramiro estava formando gente e
meios para vir em ajuda de nós, jagunços em lei, e nesse meio-tempo
punha toda confiança no Hermógenes, em Titão Passos, João Goanhá
― fortes no fato valor e na lealdade. Gabei o Hermógenes,
principal; bispei. Com isso, aquele Antenor concordou. A bem dizer,
aprovou o quanto eu disse. Mas realçou mais altamente a fama do
Hermógenes, e do Ricardão, também ― esses dois seriam os chefes
de encher a mão, em paz regalada mas por igual nos combates. Esse
sujeito Antenor sabia coçar queixo de cobra e semear sal em roças
verdes. Vulto perigoso, nas ações ― o Garanço me preveniu, com a
boa noção vinda de sua redondice de atinar. Ações? O que eu vi,
sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra
pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo.
Aquele Antenor já tinha depositado em mim o anuvio de uma má ideia!
disideia, a que por minhas costas logo escorreu, traiçoeirinha como
um rabo de gota de orvalho. Que explicação dou ao senhor?
Acreditar, no que ele tinha suso dito, não acreditei. Mas em mim,
para mim, aquilo tudo era ― era assim como um lugar com mau-cheiro,
no campo, uma árvore! lugar fedido, onde é que alguma jaratataca
acuou, por se defender do latido dos cachorros. E grande aviso,
naquele dia, eu tinha recebido; mas menos do que ouvi, real, do que
do que eu tinha de certo modo adivinhado. De que valeu? Aviso. Eu
acho que, quase toda a vez que ele vem, não é para se evitar o
castigo, mas só para se ter consolo legal, depois que o castigo
passou e veio. Aviso? Rompe, ferro!
Cacei
Diadorim. Mas eu estreava umas ânsias. Como fosse, falei, do novo e
do velho; mal foi que falei: em zanga ― desrazoadamente ― e de
primeira entrada. Acho que, por via disso, Diadorim não deu a devida
estimação às minhas palavras. Alheio, eh. Só ojerizado em estilos
ele esteve, um raio de momento, foi de ouvir que alguém pudesse
duvidar do proceder de Joca Ramiro: Joca Ramiro era um imperador em
três alturas! Joca Ramiro sabia o se ser, governava; nem o nome dele
não podia atôa se babujar. E aqueles outros: o Hermógenes,
Ricardão? Sem Joca Ramiro, eles num átimo se desaprumavam, deste
mundo desapareciam ― valiam o que pulga pula. O Hermógenes? Certo,
um bom jagunço, cabo-de-turma; mas desmerecido de situação
política, sem tino nem prosápia. E o Ricardão, rico, dono de
fazendas, somente vivia pensando em lucros, querendo dinheiro e
ajuntando. Diadorim, do Ricardão era que ele gostava menos: ― Ele
é bruto comercial... ― disse, e fechou a boca forte, feito fosse
cuspir.
Eu
então disse, pelo conseguinte: ― A bom e bem, Diadorim. Mas, se é
ou se não é, por que é que não vamos levar informação sutil a
Joca Ramiro, para o enfim? Aí, refalei muito, ao tanto que escondi
minha raiva. Quem sabe Joca Ramiro, na lei da caminhação, não
estava esquecido de conhecer os homens, deixando de farear o mudar do
tempo? Viesse, Joca Ramiro podia detalhar o pôdre do são, recontar
seus brabos entre as mãos e os dedos. Podia, devia de mandar embora
aquele monstro do Hermógenes. Se sendo etcétera, se carecesse ―
eh, uái: se matava!... Diadorim pôs muito os olhos em mim, vi que
com um espanto reprovador, não me achasse capaz de estipular tanta
maldade sem escrúpulo. Mau não sou. Cobra? ― ele disse? Nem cobra
serepente malina não é. Nasci devagar. Sou é muito cauteloso.
Mais
em paz, comigo mais, Diadorim foi me desinfluindo. Ao que eu ainda
não tinha prazo para entender o uso, que eu desconfiava de minha
boca e da água e do copo, e que não sei em que mundo-de-lua eu
entrava minhas ideias. O Hermógenes tinha seus defeitos, mas puxava
por Joca Ramiro, fiel ― punia e terçava. Que, eu mais uns dias
esperasse, e ia ver o ganho do sol nascer. Que eu não entendia de
amizades, no sistema de jagunços. Amigo era o braço, e o aço!
Amigo?
Aí foi isso que eu entendi? Ah, não; amigo, para mim, é diferente.
Não é um ajuste de um dar serviço ao outro, e receber, e saírem
por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a
injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto! é a pessoa com
quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de
que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos
sacrifícios. Ou ― amigo ― é que a gente seja, mas sem precisar
de saber o por quê é que é. Amigo meu era Diadorim; era o Fafafa,
o Alaripe, Sesfrêdo. Ele não quis me escutar. Voltei da raiva.
Digo
ao senhor! nem em Diadorim mesmo eu não firmava o pensar. Naqueles
dias, então, eu não gostava dele? Em pardo. Gostava e não gostava.
Sei, sei que, no meu, eu gostava, permanecente. Mas a natureza da
gente é muito segundas-e-sábados. Tem dia e tem noite, versáveis,
em amizade de amor.
Antes
o que me atanazava, a mór ― disso crio razoável lembrança ―
era o significado que eu não achava lá, no meio onde eu estava
obrigado, naquele grau de gente. Mesmo repensando as palavras de
Diadorim, eu apurava só este resto! que tudo era falso viver,
deslealdades. Traição? Traição minha, fosse no que fosse. Quase
tudo o que a gente faz ou deixa de fazer, não é, no fim, traição?
Há-de-o, a alguém, a alguma coisa. E eu não tardei no meu querer:
lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por
que causa, e, sem paga de prêço, me sujeitava àquilo? Eu ia-me
embora. Tinha de ir embora. Estava arriscando minha vida, estragando
minha mocidade. Sem rumo. Só Diadorim. Quem era assim para mim
Diadorim? Não era, aquela ocasião, pelo próprio dito de estar
perto dele, de conversar e mais ver. Mas era por não aguentar o ser:
se de repente tivesse de ficar separado dele, pelo nunca mais. E
mesmo forte era a minha gastura, por via do Hermógenes. Malagourado
de ódio: que sempre surge mais cedo e às vezes dá certo, igual
palpite de amor. Esse Hermógenes ― belzebú. Ele estava
caranguejando lá. Nos soturnos. Eu sabia. Nunca, mesmo depois, eu
nunca soube tanto disso, como naquele tempo. O Hermógenes, homem que
tirava seu prazer do medo dos outros, do sofrimento dos outros. Aí,
arre, foi que de verdade eu acreditei que o inferno é mesmo
possível. Só é possível o que em homem se vê, o que por homem
passa. Longe é, o Sem-olho. E aquele inferno estava próximo de mim,
vinha por sobre mim. Em escuro, vi, sonhei coisas muito duras. Nas
larguezas do sono da gente.
A
já, que ia membora, fugia. Onde é que estava Diadorim? Nem eu não
imaginava que pudesse largar Diadorim ali. Ele era meu companheiro,
comigo tinha de ir. Ah, naquela hora eu gostava dele na alma dos
olhos, gostava ― da banda de fora de mim. Diadorim não me
entendeu. Se engrotou.
Assaz,
também, acho que me acuso: que não tive um ânimo de franco falar.
Se fosse eu falasse total, Diadorim me esbarrava, no tolher, não me
entendia. A vivo, o arisco do ar: o pássaro ― aquele poder dele.
Decerto vinha com o nome de Joca Ramiro! Joca Ramiro... Esse nem a
gente conseguia exato real, era um nome só, aquela graça, sem
autoridade nenhuma avistável, andava por longe, se era que andava.
Teve um instante, bambeei bem. Foi mesmo aquela vez? Foi outra?
Alguma, foi; me alembro. Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a
mão, para suas formas; mas, quando ia, bobamente, ele me olhou ―
os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto.Tive um
gelo. Só os olhos negavam. Vi ― ele mesmo não percebeu nada. Mas,
nem eu; eu tinha percebido? Eu estava me sabendo? Meu corpo gostava
do corpo dele, na sala do teatro. Maiormente. As tristezas ao redor
de nós, como quando carrega para toda chuva. Eu podia pôr os braços
na testa, ficar assim, lôrpa, sem encaminhamento nenhum. Que é que
queria? Não quis o que estava no ar; para isso, mandei vir uma ideia
de mais longe. Falei sonhando! ― Diadorim, você não tem, não
terá alguma irmã, Diadorim? ― voz minha; eu perguntei.
Sei
lá se ele riu? O que disse, que resposta? Sei quando a amargura
finca, o que é o cão e a criatura. De tristeza, tristes águas,
coração posto na beira. Irmã nem irmão, ele não tinha! ― Só
tenho Deus, Joca Ramiro... e você, Riobaldo... ― ele declarou. Hê,
de medo, coração bate solto no peito; mas de alegria ele bate
inteiro e duro, que até dói, rompe para diante na parede. ―
Diadorim, então quem foi esse moço Leopoldo, que morreu seu amigo?
― eu indaguei, de sem-tempo, nem sei porque; eu não estava
pensando naquilo. Antes já eu estava para trás de ter perguntado,
palavras fora da boca. ― Leopoldo? Um amigo meu, Riobaldo, de
correta amizade... ― e Diadorim desfez assoprado um suspiro, o que
muda melhor. ― Até te falaram nele, Riobaldo? Leopoldo era o irmão
mais novo de Joca Ramiro... Aquilo, eu já soubesse demais ― que
Joca Ramiro se realçasse por riba de tudo, reinante. Mas pude ter a
língua sofreada. ― Vamos embora daqui, juntos, Diadorim? Vamos
para longe, para o porto do de-Janeiro, para o sertão do baixío,
para o Curralim, São-Gregório, ou para aquele lugar nos gerais,
chamado Os-Porcos, onde seu tio morava... De arrancar, de meu falar,
de uma sede. Aos tantos, fui abaixando os olhos ― constando que
Diadorim me agarrava com o olhar, corre que um silêncio de ferro.
Assombrei de mim, de desprezo, desdenhado, de duvidar da minha razão.
O que eu tinha falado era umas doideiras. Diadorim esperou. Ele era
irrevogável. Então, eu saí dali, querendo esquecer ligeiro o
atual. Minha cara estava pegando fogo.
[...]
Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas
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