segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O inventor das borboletas

Uma das maiores virtudes dos homens e mulheres: quando eles se desprendem das suas certezas e convicções e passam a observar o mundo através dos olhos do outro, se sentir na pele do oposto, da sombra.
Como é bom quando um crítico, antes de escrever a sua resenha, imagina ser o autor da obra, pensa nas dificuldades pelas quais ele passou, nos alcances da sua ousadia, nos seus temores. É um exercício que todo jornalista, profissional que reporta a ação e omissão de terceiros, deveria fazer antes de iniciar uma pauta.
É o exercício que um pai deveria fazer, quando acorda o filho atrasado pra escola, e que o filho deveria fazer, quando vê o pai saindo apressado pro trabalho. Seria ideal se o homem se colocasse eventualmente na posição da mulher, e vice-versa, se o patrão se colocasse na posição do empregado, e vice-versa, se o dono se colocasse na posição do cão, e vice-versa, se o forte se colocasse na posição do fraco, e vice-versa, se o cliente se colocasse na posição do garçom, ou do caixa, ou do farmacêutico, ou do motorista e cobrador, e vice-versa. E se o réu se colocasse no lugar da vítima, o eleitor, no do político, o soldado, no do alvo, o passageiro, no do piloto, o rico, no do pobre, o mesquinho, no do perdulário, o amante, no do amado, e vice-versa?
E se os jogadores se colocassem na posição do técnico, que se colocasse na posição dos dirigentes, que se colocassem na posição da torcida, que se colocasse na posição dos jogadores?
Napoleão, o general dos generais, ganhou muitas batalhas pensando como o inimigo. Nos conflitos da Guerra Fria, constantemente se perguntavam na Casa Branca o que fariam se estivessem no Kremlin. Foi assim que Kennedy entendeu o discurso provocativo de Krushev no Comitê Central do Partido Comunista, durante a Crise dos Mísseis em Cuba, e esperou pacientemente. Pensar com a cabeça do oposto traz serenidade, trégua, sabedoria e concórdia.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é um extenso relato metafísico. Um narrador procura o sentido de tudo: entender o amor, como controlar as tentações, o que fazer da vida, para que servem o conhecimento e a ciência, para onde olhar, o tédio, o desinteresse... É com a morte que o relato começa. Com ela se dá sentido à vida? “Deixa lá Pascal dizer que o homem é um caniço pensante. Não, é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”
Dentro do livro, várias fábulas que se bastam, como pequenos contos. Um quebra-cabeça é uma boa síntese. Ou seria um caracol? A mais intrigante: A Borboleta Preta.
Brás, entediado, passando um tempo na Tijuca, fora do Rio, recebeu do pai uma missão: ou se casa ou vira deputado. Mas ele conheceu a filha de dona Eusébia, Eugênia, uma tentação de 16 anos. No mesmo instante, uma borboleta preta esvoaçou entre eles, assustando-as. Mau presságio?
Ele decidiu voltar para a cidade. Enquanto se preparava para descer, entrou outra borboleta preta no seu quarto, tão negra como a anterior. Ele riu e se lembrou do susto que a menina tivera e da dignidade que soube conservar. A nova borboleta, depois de se esvoaçar muito em torno dele, pousou na sua testa. Ele a sacudiu, e ela foi pousar na vidraça. Sacudida de novo, foi parar em cima de um retrato velho do seu pai. Para Brás, o gesto de mesmo parada mover as asas parecia um desprezo. Ele pegou uma toalha e bateu nela. Não caiu morta de imediato. O corpo ainda torceu, e ela moveu as antenas da cabeça.
Brás incomodado se perguntou por que a mesma não era azul. A reflexão (“uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas”) o consolou.
Olhando o seu cadáver, imaginou-se na “pele” da mesma. Imaginou ser uma borboleta negra e modesta, sair do mato já almoçada e feliz, numa linda manhã, espairecendo suas borboletices sob o céu azul, passar pela sua janela, entrar e encontrá-lo. Nunca tinha visto um homem antes. Não sabia o que era um homem. Deu várias voltas em torno dele e viu que se movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então, pensou: “Deve ser o inventor das borboletas.” Com medo, decidiu agradar seu criador e beijá-lo na testa. Foi enxotada, viu o retrato do pai do inventor das borboletas e voou para pedir-lhe misericórdia.
Brás se perguntou se teria sido melhor a mesma ter nascido azul. Se bem que, azul ou laranja, poderia ser atravessada por um alfinete, “para recreio dos olhos”. Depois, foi visitar Eugênia. Descobriu que ela era manca. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”
Não faz muito sentido buscar o que Machado pretendia com a fábula. Nem ele está vivo para contar, nem ele talvez soubesse por que a escreveu. O que importa é a implicação dessa historinha na cabeça de cada leitor.
Na narrativa, ele está entre o tédio e a busca por alguma atividade que desse sentido à vida, casar-se ou ter uma ocupação, um cargo. No entanto, uma menina deficiente, bastante atraente, morando no campo, tira a sua concentração.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola

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