Uma
das maiores virtudes dos homens e mulheres: quando eles se desprendem
das suas certezas e convicções e passam a observar o mundo através
dos olhos do outro, se sentir na pele do oposto, da sombra.
Como
é bom quando um crítico, antes de escrever a sua resenha, imagina
ser o autor da obra, pensa nas dificuldades pelas quais ele passou,
nos alcances da sua ousadia, nos seus temores. É um exercício que
todo jornalista, profissional que reporta a ação e omissão de
terceiros, deveria fazer antes de iniciar uma pauta.
É
o exercício que um pai deveria fazer, quando acorda o filho atrasado
pra escola, e que o filho deveria fazer, quando vê o pai saindo
apressado pro trabalho. Seria ideal se o homem se colocasse
eventualmente na posição da mulher, e vice-versa, se o patrão se
colocasse na posição do empregado, e vice-versa, se o dono se
colocasse na posição do cão, e vice-versa, se o forte se colocasse
na posição do fraco, e vice-versa, se o cliente se colocasse na
posição do garçom, ou do caixa, ou do farmacêutico, ou do
motorista e cobrador, e vice-versa. E se o réu se colocasse no lugar
da vítima, o eleitor, no do político, o soldado, no do alvo, o
passageiro, no do piloto, o rico, no do pobre, o mesquinho, no do
perdulário, o amante, no do amado, e vice-versa?
E
se os jogadores se colocassem na posição do técnico, que se
colocasse na posição dos dirigentes, que se colocassem na posição
da torcida, que se colocasse na posição dos jogadores?
Napoleão,
o general dos generais, ganhou muitas batalhas pensando como o
inimigo. Nos conflitos da Guerra Fria, constantemente se perguntavam
na Casa Branca o que fariam se estivessem no Kremlin. Foi assim que
Kennedy entendeu o discurso provocativo de Krushev no Comitê Central
do Partido Comunista, durante a Crise dos Mísseis em Cuba, e esperou
pacientemente. Pensar com a cabeça do oposto traz serenidade,
trégua, sabedoria e concórdia.
Memórias
Póstumas de Brás Cubas é um extenso relato metafísico. Um
narrador procura o sentido de tudo: entender o amor, como controlar
as tentações, o que fazer da vida, para que servem o conhecimento e
a ciência, para onde olhar, o tédio, o desinteresse... É com a
morte que o relato começa. Com ela se dá sentido à vida? “Deixa
lá Pascal dizer que o homem é um caniço pensante. Não, é uma
errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição,
que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição
definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”
Dentro
do livro, várias fábulas que se bastam, como pequenos contos. Um
quebra-cabeça é uma boa síntese. Ou seria um caracol? A mais
intrigante: A Borboleta Preta.
Brás,
entediado, passando um tempo na Tijuca, fora do Rio, recebeu do pai
uma missão: ou se casa ou vira deputado. Mas ele conheceu a filha de
dona Eusébia, Eugênia, uma tentação de 16 anos. No mesmo
instante, uma borboleta preta esvoaçou entre eles, assustando-as.
Mau presságio?
Ele
decidiu voltar para a cidade. Enquanto se preparava para descer,
entrou outra borboleta preta no seu quarto, tão negra como a
anterior. Ele riu e se lembrou do susto que a menina tivera e da
dignidade que soube conservar. A nova borboleta, depois de se
esvoaçar muito em torno dele, pousou na sua testa. Ele a sacudiu, e
ela foi pousar na vidraça. Sacudida de novo, foi parar em cima de um
retrato velho do seu pai. Para Brás, o gesto de mesmo parada mover
as asas parecia um desprezo. Ele pegou uma toalha e bateu nela. Não
caiu morta de imediato. O corpo ainda torceu, e ela moveu as antenas
da cabeça.
Brás
incomodado se perguntou por que a mesma não era azul. A reflexão
(“uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das
borboletas”) o consolou.
Olhando
o seu cadáver, imaginou-se na “pele” da mesma. Imaginou ser uma
borboleta negra e modesta, sair do mato já almoçada e feliz, numa
linda manhã, espairecendo suas borboletices sob o céu azul, passar
pela sua janela, entrar e encontrá-lo. Nunca tinha visto um homem
antes. Não sabia o que era um homem. Deu várias voltas em torno
dele e viu que se movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar
divino, uma estatura colossal. Então, pensou: “Deve ser o inventor
das borboletas.” Com medo, decidiu agradar seu criador e beijá-lo
na testa. Foi enxotada, viu o retrato do pai do inventor das
borboletas e voou para pedir-lhe misericórdia.
Brás
se perguntou se teria sido melhor a mesma ter nascido azul. Se bem
que, azul ou laranja, poderia ser atravessada por um alfinete, “para
recreio dos olhos”. Depois, foi visitar Eugênia. Descobriu que ela
era manca. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”
Não
faz muito sentido buscar o que Machado pretendia com a fábula. Nem
ele está vivo para contar, nem ele talvez soubesse por que a
escreveu. O que importa é a implicação dessa historinha na cabeça
de cada leitor.
Na
narrativa, ele está entre o tédio e a busca por alguma atividade
que desse sentido à vida, casar-se ou ter uma ocupação, um cargo.
No entanto, uma menina deficiente, bastante atraente, morando no
campo, tira a sua concentração.
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola
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