sábado, 21 de outubro de 2023

Nuvens de Pássaros Brancos | IV


A Sra. Ota devia ter quarenta e cinco anos, pelo menos vinte a mais que Kikuji; mas soube tão bem lhe fazer esquecer essa diferença de idade, que ele pensava realmente estar beijando uma mulher ainda mais jovem do que ele próprio.
A volúpia que acabava de provar era a de um prazer que só a experiência de sua parceira seria capaz de lhe dar; e no entanto o rapaz, em nenhum momento, se sentira coibido pela timidez de sua inexperiência. Tinha a impressão de saber pela primeira vez o que era uma mulher, desde então conhecendo o que era ser um homem. Kikuji se surpreendia com essa revelação e com o despertar completo da sua virilidade.
Nunca antes suspeitara que existisse, nas mulheres, uma receptividade tão flexível e tão profunda, capaz de orientá-lo, seguindo-o. Esta passividade voluptuosamente ativa e cálida que o mergulha num mar de perfumes. Ele, que apenas experimentava um pouco de dissabor, satisfeito o desejo, cada vez que aproveitara as liberdades que sua vida de solteiro oferecia, a essa altura se espantava de se ver, ao contrário, imerso nas delícias duma languidez gostosa e apaziguadora. Sabia que, de qualquer outra parceira, se teria friamente afastado e a enxotado, enquanto aqui, pela primeira vez, seu corpo adorava sentir o calor doce do outro corpo apertado contra si, prolongando o amplexo indefinidamente. Não, nunca conhecera numa mulher estas ondas acariciantes dum sentimento sem fim. Seus sentidos, ébrios, aí descansavam com delícia, enquanto interiormente saboreava o triunfo do conquistador, do triunfador que se faz lavar os pés por seus escravos. Mas, ao mesmo tempo, se sentia também como uma criança que cisma e se refugia no quente dos braços de sua mãe.
Livrando as espáduas e se erguendo um pouco, Kikuji disse de repente:
Kurimoto é marcada por grandes manchas de nascença, sabia?
Embora consciente da perversidade de sua frase, não ia, em seu langor, ao ponto de se dar conta de quanto podia com isso prejudicar a Chikako. Não pensava absolutamente em ofendê-la.
Olhe, são aqui, assim, bem no seio — e adiantou a mão.
Obedecia a um impulso estranho e turvo, não sabendo bem de onde lhe vinha esse inesperado desejo, essa impaciência ávida de trair a si mesmo e ferir a outrem. Ou quem sabe era apenas um modo de disfarçar, por pudor juvenil, a curiosidade que tinha daquele corpo feminino?
Oh! deixe disso, é repugnante — disse ela, com um gesto distraído de fechar o quimono, como se não entendesse do que se tratava. — É a primeira vez que ouço falar disso — acrescentou com indiferença. — Sob o quimono, não se vê nada.
Não, claro, mas assim mesmo...
O quê?
Há momentos em que se deve ver, forçosamente. Veja, pega esta parte aqui e aqui.
Oh! que malandro... Se eu tivesse a mesma coisa, você procuraria olhar?
Mas não, ora!... Se você tivesse manchas neste lugar, me pergunto o que você faria e o que isso podia oferecer, justamente neste instante..
Onde ela tem as manchas, aqui? — e seus olhos se fixaram no próprio peito, tranquilamente. Em seguida, quis saber com simplicidade: — Por que fez essa pergunta? Em que é que isso nos importa?
Kikuji se sentiu desarmado. Desejara passar seu veneno para ela, mas com tão pouco resultado que lhe fora devolvido e de novo o corroía.
Em muito! Tinha apenas oito ou nove anos na única vez em que vi essas manchas. Desde então, me têm obcecado.
Mas por quê?
E você, será que não sofreu também com ela? — insistiu Kikuji. — Há de se lembrar quando a Kurimoto vinha à sua casa, dizendo-se emissária de minha mãe e inclusive de mim, com calúnias e censuras violentas.
Ela curvou a cabeça em sinal de assentimento, iniciando um leve movimento para se apartar; mas os braços de Kikuji só a apertaram melhor.
Pois bem, nada me tirará da mente que toda a sua maldade, naquele momento, não era causada senão pelo despeito e a raiva de ter o seio marcado por essas nódoas, pelo complexo que criou a propósito.
Mas é terrível o que você está dizendo!
E talvez também ela tenha buscado vingar-se de meu pai.
Mas se vingar de quê?
Seu complexo... as manchas... Em parte por causa delas, tinha sido abandonada. Ficou ainda mais inconsolável, mais amargurada com elas.
Oh, basta! Não falemos mais nessas manchas horríveis. Perco o ânimo...
E no entanto — dizia-se Kikuji — não faz a mínima ideia do que são!
A Srta. Kurimoto não tem mais por que se preocupar com isso. Provavelmente, nem pensa mais no assunto. São coisas que se esquecem...
Imagina que, tendo acontecido, essas coisas não deixem vestígios?
A Sra. Ota ficou pensativa.
Ocorre que o passado, na lembrança, nos seja ainda mais grato — disse sonhadora.
Foi então que Kikuji soltou a confissão que no entanto decidira firmemente calar.
Conhece a moça que estava há pouco a seu lado na sessão de chá?
Yukiko? Sim... É a filha do Sr. Inamura, não é?
Kurimoto me tinha convidado expressamente para que eu a conhecesse.
Oh!
Os grandes olhos da Sra. Ota pareceram ainda aumentar e fitaram Kikuji com gravidade.
Era a apresentação duma noiva então? E eu, que nada notei!
Mas não, não — protestou Kikuji. — Não estava em causa matrimônio, lhe afirmo. Nada nesse gênero.
Ah, sim, sim... E na saída, eu...
Kikuji viu se armar nela um grande soluço; logo o espasmo fez tremer seus ombros e já lágrimas abundantes caíam no travesseiro.
Imperdoável! Sou imperdoável!... Mas por que você não disse nada?
Observou-a a esconder o rosto no travesseiro, chorando sempre. Ele não entedia bem por quê.
Se existe algo de mal no que fizemos, não há de ser aquela pequena formalidade que mudará qualquer coisa — disse. — Que o tivéssemos feito ao sair de lá ou não, não importa absolutamente. Não há relação entre as duas coisas!
Falava com convicção, era realmente o que pensava. No mesmo instante, porém, reviu a imagem da Srta. Inamura preparando o chá dentro das regras da arte, e o furochiki rosa lhe surgiu igualmente, com os motivos de sembazuru. Teve um estremecimento como de ódio pelo corpo da mulher que soluçava ao seu lado.
Ai de mim, o que eu fiz? Mulher funesta, pecadora! — dizia entre os soluços, com arrancos que agitavam os ombros redondos.
Kikuji admitiria de bom grado que devesse se escandalizar daquela aventura, se pudesse por ela sentir o mínimo remorso. Pois enfim, sem falar no primeiro encontro com a Srta. Inamura, era nos braços da amante de seu pai que ele se achava!
Mas não, até o minuto presente não tivera um só instante a consciência de agir mal. Nem por um segundo sentira mágoa ou remorso. Poderia ser um faltoso?
Sequer se lembrava muito bem como haviam chegado a tal ponto, aquela mulher e ele. O mais naturalmente possível, sem dúvida, pela simples força das coisas. . . Mas se tivesse de crer no que ela dizia agora, ela se arrependia amargamente de o ter seduzido. Seria certo? De modo algum. Kikuji não tinha dúvidas: não só ela não tivera a intenção como, em nenhum momento, tivera a consciência de o estar fazendo. Quanto a ele, sabia bem não ter tido nem o sentimento e nem mesmo a suspeita de ter-se deixado arrastar. Haviam simplesmente seguido suas inclinações,, um e outro, sem encarar o aspecto moral da questão, sem pensar nisso. Nem um dos dois vira no caso qualquer obstáculo e ambos não resistiram. A moral, em suma, não tinha nada a ver com o assunto.
Tinham chegado ao pé da colina que se defronta com a do Templo Engakuji, e ali entrado numa hospedaria para jantar. Porque aquela conversa, ou antes as confidências da Sra. Ota falando do pai de Kikuji não acabavam mais. Nada o obrigava a escutá-la, por certo, e considerava mesmo um tanto ridícula a fraqueza que lhe demonstrava. De sua parte, a Sra. Ota, dominada por seu assunto, transbordante de emoção, falava sem fim, sem que pudesse aflorá-la a menor apreensão quanto ao interesse que naquilo tudo pudesse ter o seu interlocutor. Já sutilmente enternecido, a despeito de si mesmo, por sua própria paciência, Kikuji a ouvira, de início, com um sentimento de simpatia vaga, mas foi-se deixando ganhar pouco a pouco pelo calor e a doçura daquela natureza afetuosa e terna, pela deliciosa intimidade que ela criava entre os dois. E em seguida se entregar completamente, envolver-se, cobrir-se naquela intimidade. Ao ponto inclusive de chegar a pensar na felicidade que seu pai deveria ter conhecido.
Sim, se era absolutamente necessário que achasse algo a se censurar, seria essa emoção. Mas do momento em que tinha deixado escapar assim a ocasião que se ofereceu de repeli-la e afastar-se dela, que lhe restava além de se deixar levar, cada vez mais, pelos preciosos enternecimentos do seu coração?
Se se pôs há pouco a lhe falar de improviso, e quase contra a vontade, de Chikako e da Srta. Inamura, foi sem dúvida premido por aquela tenebrosa sensação, aquela parte de sombra que permanecia em seu íntimo. Tinha querido expulsar a peçonha que engolira e lhe fizera mal.
Pagara caro por ela, com efeito, com o coração agora dilacerado mais que nunca por novos arrependimentos, e tão violentamente sacudido, com tanta vergonha de si mesmo, tão furioso, que só experimentava um desejo cego de ferocidade, procurando feri-la com suas palavras mais cruelmente ainda.
Tratemos de esquecer tudo — insinuou ela.
Digamos que nada aconteceu.
E em seguida, após uma pausa, num murmúrio:
Nada absolutamente. Nada.
Mas é claro que não aconteceu nada — fulminou Kikuji. — Você apenas reviveu um pouco a lembrança de meu pai! Nada mais e só isso!
Oh!
Ela ergueu surpreendida a cabeça do travesseiro. O rosto estava desfeito, as pálpebras vermelhas com as lágrimas e o branco dos olhos congestionado. Mas mergulhando seu olhar naqueles olhos tão abertos, Kikuji pôde ler ainda neles a deliciosa languidez da mulher.
Não há de ser eu quem diga o contrário, ai! Sou apenas uma pobre mulher...
Não me venha com histórias! — bradou Kikuji, descobrindo-lhe os seios num gesto brusco. — Se você por acaso tem um sinal de nascença nalguma parte aí, seria impossível jamais esquecê-la... É antes impressionante.
Surpreendia-se a si mesmo com o que estava dizendo.
Não me olhe assim, lhe peço. Não sou mais muito jovem...
Com os lábios arregaçados, escarnecendo, Kikuji se acercou ainda mais. E se agarrou nela, subitamente pacificado por sua doce languidez, embalado por suaves ondulações voluptuosas e como ainda tépidas do que sucedera há pouco.
Voltando a serenar, distendido, deixou-se cair no sono.
E quando dele emergiu, nesse mundo ambíguo que oscila entre o sonho e a realidade, foi ouvindo pássaros cantar. Era a primeira vez, parecia-lhe, que despertava assim com o canto dos passarinhos.
A bruma matinal perlava a verde folhagem das árvores e ele estava com a cabeça tão clara como se banhada de orvalho. Nenhum vestígio duma ideia inquietante.
A Sra. Ota dormia ainda, de costas para ele. Kikuji se perguntou em que momento ela se virará e, apoiando-se no cotovelo, contemplou longamente o rosto oferecido às primeiras luzes da aurora. Seus lábios esboçaram um leve sorriso.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário