sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Nuvens de Pássaros Brancos | II


Chegando ao alpendre do pavilhão, as jovens que tinham seguido à sua frente, tiravam as meias de andar¹ para calçar outras limpas. Por cima de seus ombros, Kikuji fitou o recinto do chá, cuja porta estava aberta. Era um salão de oito esteiras, com uma assistência numerosa; só pessoas vestidas com quimonos de cores vivas e apertadas quase ao ponto de se tocar.
Chikako, com seu olhar vigilante, percebeu em seguida seu convidado e se ergueu para acolhê-lo no umbral.
Ah! entre, entre, por favor! É tão raro vê-lo aqui: seja bem-vindo. Por ali, faça o obséquio, entre, não se incomode.
Com um gesto lhe indicava uma porta de correr dando para o lugar de honra, perto do tokonoma.
Sentindo todos os olhares convergirem sobre ele, Kikuji, enrubescendo, pergunta a Chikako:
Não há senão damas?
Oh! havia também alguns senhores ainda há pouco, mas já foram embora. Você é a flor da nossa reunião.
Eu, uma flor? — protestou Kikuji.
Sim, sim, é uma honra que lhe assenta com perfeição.
Kikuji mostrou com a mão que preferia entrar pela outra porta. Virando-se, viu as jovens de há pouco, que, tendo mudado os tabis e enrolado os que tiraram no lenço ornado com o sembazuru, esperavam com deferência diante da porta de entrada, a fim de o deixar passar primeiro.
Kikuji adiantou-se na antecâmara em que reinava certa desordem, com as roupas e os pacotes deixados pelos convidados, as caixas de doces, os cofrezinhos e os estojos dos preciosos objetos reservados às sessões de chá. Sob a cobertura do mizuia², uma doméstica enxugava as taças e outros recipientes.
Chikako por ali seguiu a Kikuji e, com as mãos nos joelhos, se inclinou e sentou diante dele.
Que tal a achou? — murmurou-lhe ela. — Simpática, não?
De quem fala? — indagou Kikuji no mesmo tom. — Será da jovem com o furochiki de sembazuru?
Que importa o furochiki? Vou eu saber! Falo de uma das jovens que estavam ali de pé, na entrada. A mais bonita. É a Srta. Inamura, Yukiko Inamura.
Kikuji aprovou vagamente com um movimento de cabeça.
Está me parecendo que tem um olho galante para ter notado até o detalhe do furochiki — tagarelou Chikako. — Pensei mesmo há pouco que tinham chegado juntos! Confesse que teria sido ir um tanto depressinha!
Está insinuando que... ? — protestou Kikuji.
De qualquer modo, teve sorte, já que a encontrou ao vir. Seu pai, sabe, conhecia bem a família Inamura.
Ah, sim?
Tinham antes uma loja de seda em Yokohama. A moça, note, não sabe nada ainda dos nossos projetos, faço questão de lhe dizer. Mas, olhe-a bem!
Chikako, parlando, ia muito além do tom do cochicho e só estavam separados do salão por uma fina porta. Kikuji pensou nisso contrafeito. Mas Chikako se acerca ainda mais e lhe diz na orelha:
Há infelizmente alguma coisa um tanto aborrecida... A Sra. Ota... você sabe... está aqui. E a filha também veio junto...
Depôs seu olhar perscrutador no rosto de Kikuji e continuou:
Entenda, não fui eu quem a convidou hoje; mas a uma reunião como esta, uma sessão de chá, todo o mundo, em princípio, pode vir, até os simples passantes. Ainda há pouco, tivemos de receber dois casais de americanos que aí andavam por mero acaso. É uma pena, mas que podia fazer quando a Sra. Ota chegou? Há de ter sem dúvida ouvido falar da nossa reunião. Nem é preciso lhe dizer que naturalmente ela não está a par de nada, no que diz respeito a você.
Nem eu, eu... — começou ele, desejando acrescentar: “Não tinha qualquer intenção de me prestar a um encontro clássico com vistas matrimoniais.” Mas no último momento, com a garganta seca, permaneceu incapaz de articular as palavras que tinha nos lábios.
Enfim, para você dá no mesmo, não é? E se alguém se sentir incomodado, há de ser a Sra. Ota e só ela!
Kikuji se sentiu irritado com o tom que Chikako tomara.
A ligação que seu pai teve com ela não durou, evidentemente, nem o tempo de uma aventura breve; mas ela continuara a frequentar a casa até a morte dele, aí demonstrando sua útil atividade doméstica. Sua presença era imprescindível nas reuniões de chá. Mas a elas comparecia tanto como simples convidada quanto para ajudar nos preparos.
Teria sido demasiado cômico que a mãe de Kikuji, na época, se moesse de ciúme por uma pessoa tão pouco feminina. No entanto é certo que terminara por descobrir que seu marido conhecia muito bem — e já se vê por que — as manchas que Chikako tinha no peito; aí, porém, tudo já estava terminado há muito, e Chikako, com o ar de indiferença daquelas que tudo esqueceram, se mantinha sem qualquer emoção ao lado da esposa que podia ter sido sua rival.
Kikuji, por sua vez, se acostumara a encarar como sem importância a existência dela e tinha pouco a pouco esquecido os violentos agravos da infância. Pôs-se a tratá-la com a distância do desprezo. Como assentava ao caráter dessa mulher tornar-se assim indispensável à família por seus serviços, deixando atrás de si tudo o que poderia ter de encanto feminino! Foi também graças ao apoio dessa família que pôde se assegurar, como professora de chá, um êxito invejável.
A mulher que nela havia só deve ter conhecido, como único traço de amor em sua vida, a aventura efêmera que tivera com o pai de Kikuji, e depois disso apagou-se. Com essa idéia, Kikuji, após a morte do pai, não pensava mais nela senão com um sentimento próximo à compaixão.
Quanto à mãe, como podia nutrir hostilidade em relação a Chikako, quando tinha de se preocupar com o problema infinitamente mais grave que a Sra. Ota representava?
O Sr. Ota e seu pai, ambos adeptos da arte do chá, estavam intimamente ligados. Com a morte do Sr. Ota, foi o pai de Kikuji quem se encarregou de vender a coleção artística do seu amigo. Assim se relacionou com a viúva, que se tornou sua amante.
Chikako não falhou em informar a esposa sem o menor atraso. Sentia-se naturalmente do seu lado e se dava ao caso ativamente. Até um pouco demais. Não seguia o pai como uma sombra, para vigiá-lo? Não ia freqüentemente em casa da viúva, para enchê-la de recriminações? Era de crer-se que seu ciúme, enterrado há anos e anos, súbito refloria na ocasião.
A mãe de Kikuji, ao contrário, antes encabulava com as intervenções excessivamente ruidosas de Chikako, que punham em perigo a honra da família. Nada conseguia detê-la, porém. Inclusive na presença do menino, dizia que enforcar a Sra. Ota era pouco. E o dia em que sua mãe, zangada, quis interrompê-la, respondeu-lhe que até era melhor.
Na última vez — disse, — quando eu tinha dito as piores coisas à viúva do Sr. Ota, ouvi o choro duma menina na peça ao lado. Era a filha dela que tinha escutado à porta.
Uma filha. Têm então uma filha? — a mãe franziu as sobrancelhas.
Sim, uma menina de doze anos pelo que ela me disse. E como é estúpida esta Sra. Ota! Em lugar de passar um pito na pequena, como pensei que ia fazer, apertou-a nos braços e a pôs no colo, na minha frente, para que interpretasse seu papel nessa comédia de ternura!
A pobre criança!
Mas também o único meio de que dispomos para supliciar a consciência de sua mãe!... Já que a filha nada ignora do que se passa em casa.
Virando-se para Kikuji, Chikako acrescentou:
Uma criança encantadora, no entanto, com um lindo rosto redondo. O nosso jovem Sr. Kikuji não deveria também, quando a ocasião se apresentasse, dizer a propósito alguma coisa a seu pai?
Ah! pare de espalhar por toda parte o seu veneno! — lançou-lhe por fim a mãe de Kikuji, fora de si.
Não é bom, senhora, conservar todas essas peçonhas no coração. Decida-se duma vez a botar tudo para fora! Está emagrecendo, enquanto a sua rival está mais florescente que nunca. Estúpida como é, basta-lhe chorar tudo o que pode e tomar atitudes meigas para se julgar de tudo absolvida. Imagine que na peça onde recebe seus visitantes ainda está entronizado um imenso retrato de seu falecido marido! Ah! não entendo como o Sr. Mitani faz para aguentar tudo isso!
Ora, a mesma Sra. Ota, objeto das desdenhosas conversas que Kikuji escutara, acontecia estar ali, para assistir, tanto tempo após a morte de seu pai, a uma reunião de chá organizada por Chikako. E não apenas viera ela, fazia-se acompanhar pela filha!
Kikuji sentiu um frio lhe passar pelo coração.
Se era verdade, como Chikako pretendia, que desta vez a Sra. Ota não fora convidada, não era menos surpreendente saber que suas relações tinham prosseguido após a morte de seu pai.
Ensinaria Chikako a arte do chá à Srta. Ota? E isso a pedido da mãe? Eram as perguntas que Kikuji se fazia.
Se faz questão de não encontrá-la — disse Chikako interrogando-o com o olhar, — vou lhe pedir que se retire.
Para mim é indiferente. Mas se ela quiser ir embora, que o faça.
Uma mulher como ela! Não vá julgar que tenha tais delicadezas. Nesse caso, os seus pais não teriam tido tantos incômodos.
Está com a filha junto, não é? — informou-se Kikuji, que não conhecia a filha. Se lhe era já desagradável avistar-se com a moça do furochiki de sembazuru na presença da Sra. Ota,. parecia-lhe ainda mais penoso encontrar ali a filha pela primeira vez.
Não podia mais suportar os cochichos de Chikako que lhe verrumavam as orelhas. Estavam lhe dando nos nervos.
De qualquer maneira — cortou, levantando-se, —já sabem que estou aqui. Não posso me esquivar.
E entrou no salão pela porta que dava ao tokonoma, indo assim para o lugar de honra.
Inclinava-se enquanto Chikako, que entrou atrás dele, o apresentou alçando um pouco a voz e com um tom antes cerimonioso: "Tenho o prazer de lhes apresentar o Sr. Mitani, filho do célebre colecionador e amador de chá."
Kikuji inclinou-se outra vez e, erguendo-se, viu diante de si todos aqueles rostos femininos que, de início, tivera dificuldade em discernir em seu embaraço e ofuscado pelas sedas cintilantes dos quimonos. Mas, assim que retomou a calma, verificou que tinha à frente justamente a Sra. Ota.
Que sorte — dizia, — que sorte vê-lo aqui! E toda a assistência podia ouvir sua voz afetuosa e simples.
Fazia tanto tempo que não o tinha visto mais!
Com um gesto leve, puxou discretamente a manga da filha sentada ao seu lado, como para convidá-la a saudar por sua vez o jovem. A moça, confusa e enrubescida, inclinou-se diante dele.
Kikuji estava longe de esperar algo semelhante. Não descobria o mínimo traço de antipatia ou constrangimento na Sra. Ota, que era pura espontaneidade e ternura. Indiferente ao que os demais pudessem pensar, rejubilou-se a fundo desse encontro sem a sombra duma segunda intenção.
A filha, ao contrário, conservava os olhos baixos, e quando a Sra. Ota disso se apercebeu, encabulou. Contudo, continuava com os olhos fixos em Kikuji, parecendo exprimir quanto apreciava estar a seu lado e lhe falar.
Pratica também a arte do chá? — terminou por perguntar.
Não, infelizmente, nada sei a respeito.
Oh! mas não pode deixar de tê-la no sangue! Parecia realmente emocionada; as lágrimas lhe vinham aos olhos.
Kikuji, que não revira a Sra. Ota desde as cerimônias fúnebres do pai, achou que mudara pouco durante esses quatro anos. O mesmo ar mais jovem que sua idade, o pescoço flexível e delicado, a nuca longa contrastando com as espáduas redondas e firmes, o nariz e a boca pequenos em comparação com os olhos. Este nariz de linha tão perfeita e tanta graça que, quando se olha, é difícil deixar de sorrir. E este lábio inferior levemente saído, que esboça uma espécie de muxoxo quando ela fala.. .
Na filha, Kikuji reencontra a nuca longa e os ombros arredondados da mãe. A boca é visivelmente maior, pelo contrário, apesar de ela manter os lábios cerrados com firmeza; e para Kikuji há como uma semente de humor na visão da boca tão miúda da mãe ao lado da filha. Quanto aos olhos, a jovem os tem talvez maiores e mais negros ainda que os da mãe. Dir-se-iam afogados de tristeza...
Foi então que Chikako, depois de ter examinado o estado do fogo, voltou-se e disse:
Srta. Inamura, desejaria preparar um chá em honra do Sr. Mitani? Se não me engano, hoje ainda não oficiou.
Mas sem dúvida — respondeu a moça, imediatamente se levantando.
Kikuji sabia que a garota do sembazuru estava ao lado da Sra. Ota, apesar de não ter drigido o olhar para ela sequer uma vez desde o momento em que vira a Sra. Ota e a filha.
Afastando-se do caldeirão diante do qual se colocara, a garota se dirigiu a Chikako e lhe perguntou que taça devia escolher.
-— Creio que a de oribe³ que aí está, é a conveniente — disse Chikako. — É uma taça que o pai do Sr. Mitani apreciava muito. E foi ele que me deu — acrescentou, virando-se para Kikuji.
Ele se lembrava, com efeito, dessa taça posta à frente da moça. O pai gostava de se servir nela, era verdade; mas a tinha obtido da Sra. Ota, de quem a comprara.
E o que essa ia pensar, o que sentiria vendo reaparecer ali o precioso objeto que, outrora, fizera parte da coleção de seu marido? Indagava-se Kikuji, surpreendido com aquela falta de tato por parte de Chikako.
Mas em matéria de sensibilidade e delicadeza, não havia motivos para crer que a Sra. Ota fosse bem desprovida?
O passado dessas mulheres de idade madura lhe surgia como um nó de víboras, enquanto a jovem para ele preparava, pura e clara, o chá.
Kikuji saboreou ainda mais intensamente sua beleza.

1. Tabi, tipo de meias com um dedo para o polegar.
2. Vestíbulo do pavilhão de chá, em que se lavam e preparam os utensílios necessários ao serviço do chá.
3. Um gênero de cerâmica criado no século XVI, cuja sobriedade naturalmente o destina à arte do chá.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

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