Ele
nunca tinha ficado bêbado, portanto nem de ressaca, mas Clay
imaginava que a sensação fosse exatamente aquela.
Estava
com a cabeça pesada e a colocou no lugar.
Ficou
um tempo sentado, rastejou pelo colchão e encontrou a lona plástica
jogada na grama ali perto. Com ossos cansados e mãos trêmulas,
usou-a para cobrir a cama, então foi até a cerca — divisão
obrigatória da pista esportiva, só com ripas horizontais, sem
tábuas verticais — e descansou o rosto na madeira. Respirou as
brasas dos telhados da cidade.
Por
um bom tempo, tentou esquecer:
O
homem à mesa.
O
barulho baixinho dos irmãos ao fundo e um sentimento de traição
pairando no ambiente.
Aquela
história da ponte dele insistia em voltar à sua mente nos mais
variados contextos, mas, naquela manhã, vinham à tona sobretudo
fragmentos da noite anterior.
***
Oito
horas antes, quando o Assassino se retirou, um silêncio
desconfortável perdurou por uns dez minutos entre eles. Foi Tommy
quem o quebrou:
— Jesus,
ele está com uma cara de morte. Parece que morreu e esqueceram de
enterrar.
Ele
carregava Heitor perto do coração. O gato ronronou, uma bola
listrada de pelo.
— Merecia
estar pior ainda — retruquei.
Henry
e Rory se pronunciaram, um após o outro:
— Não
engoli aquele terno!
— Quero
nem saber. Vou pro bar.
Os
dois estavam lado a lado feito elementos fundidos, uma mistura de
areia e ferrugem.
Clay,
famoso por não dizer quase nada, nada disse. Já havia batido a cota
de falatório da noite. Por um momento, se perguntou: por que agora?
Por que ele apareceu aqui em casa agora? Até que se deu conta. Era
dia 17 de fevereiro.
Ele
mergulhou a mão machucada em um balde de gelo e tentou manter a
outra longe do arranhão no rosto, por mais tentador que fosse
cutucá-lo. À mesa éramos eu e ele, um confronto silencioso. Para
mim, não restavam dúvidas: eu tinha apenas um irmão com quem me
preocupar, e era o que estava na minha frente.
Oi,
pai, pelo amor de Deus.
Olhei
para o gelo boiando em torno do pulso dele.
Vai
precisar de um balde do seu tamanho, garoto.
Não
falei nada, mas percebi que havia ganhado a batalha quando Clay
apontou dois dedos em forma de arma para o hematoma embaixo do olho.
Aquele imbecil que nunca abria a boca chegou a assentir
discretamente, pouco antes de a pilha de louça limpa, de sua altura
absurda, desmoronar na pia.
Não
acabou com nosso impasse, no entanto — não mesmo.
Eu,
particularmente, insisti em encará-lo.
Clay
prosseguiu com os dedos.
Tommy
colocou Heitor no chão, guardou os pratos e logo retornou com o
pombo (Tetê acompanhava a cena do ombro dele), mal vendo a hora de
sair dali. Resolveu dar uma olhada em Aquiles e Aurora — ambos
exilados lá fora, no quintal. Saiu e tratou de fechar a porta.
***
Claro
que, pouco antes, quando Clay pronunciou aquelas duas fatídicas
palavras, nós quatro ficamos parados atrás dele, como testemunhas
na cena de um crime. Um crime terrível. Entre o espanto e o orgulho,
havia muito em que se pensar, mas só consegui me lembrar de uma
coisa:
Ali,
nós o perdemos para sempre.
Mas
eu estava disposto a lutar.
— Você
tem dois minutos — falei, e o Assassino assentiu devagar. Ele
afundou na cadeira grudada ao chão. — Bem, então pode começar.
Dois minutos não são muito tempo, velho.
Velho?
O
Assassino ia contestar, mas com o mesmo ímpeto se resignou. Ele era
velho, uma velha lembrança, uma ideia esquecida — e, ainda que na
meia-idade, para nós era tido como morto.
Colocou
as mãos na mesa.
Ressuscitou
a voz.
Dirigiu-se
à plateia em prestações.
— Eu
preciso de... Quer dizer, queria saber se...
Ele
não soava mais como a mesma pessoa, não para nós. Nós nos
lembrávamos dele um tanto diferente, aqui e ali.
— Estou
aqui para perguntar...
Louvado
seja Rory, que, em sua voz abrasiva, descarregou uma resposta
sanguinolenta na gagueira acanhada do nosso pai.
— Pelo
amor de Deus, desembucha, porra!
Ficamos
parados.
Todos
nós, temporariamente.
Mas
então Aurora latiu de novo, tivemos um momento de
alguém-cala-a-boca-dessa-cachorra, e em algum lugar, no meio disso,
as palavras vieram:
— Tá
bom, é o seguinte. — Ele se agarrou àquele momento de coragem. —
Não vou mais tomar o tempo de vocês, sei que não tenho direito
algum, mas vim aqui porque moro longe agora. Moro pra lá da cidade,
bem no interior, e é bastante chão e tem um rio e estou construindo
uma ponte. Aprendi na marra que o rio enche. E que, se você bobear,
pode ficar preso tanto de um lado quanto de outro. — A voz estava
cheia de farpas, uma cerca de madeira em sua garganta. — Vou
precisar de ajuda na construção, e gostaria de saber se algum de
vocês...
— Não.
— Fui o primeiro.
Mais
uma vez, o Assassino assentiu.
— Caralho,
você é cara de pau mesmo, hein! — Rory, caso você ainda não
tenha adivinhado.
— Henry?
Henry
seguiu a minha deixa e manteve a compostura, engolindo o ultraje.
— Não,
obrigado.
— Ele
não merece seu obrigado. Clay?
Clay
balançou a cabeça.
— Tommy?
— Não.
Um
de nós estava mentindo.
***
A
partir daquele momento, um silêncio devastou a cena.
A
mesa era um território árido entre pai, filhos e migalhas. Um
saleiro e um pimenteiro descombinados postados no meio, como uma
dupla de humoristas. Um alto, um gordo.
O
Assassino assentiu e foi embora.
Antes,
deixou um pedacinho de papel em meio às migalhas.
— Meu
endereço. Caso mudem de ideia.
— Agora
pode ir. — Cruzei os braços. — E deixa os cigarros.
***
O
papel com o endereço foi rasgado na mesma hora.
Joguei
os picotes no caixote de madeira ao lado da geladeira junto com
garrafas de vários tipos e jornais velhos.
Ficamos
ali sentados, de pé, escorados.
A
cozinha em silêncio.
O
que dizer?
Se
tivemos uma conversa profunda sobre nos unirmos ainda mais em
momentos como esse?
Claro
que não.
Trocamos
as poucas palavras de sempre, e Rory foi o primeiro a sair, direto
para o bar. O Naked Arms. De saída, colocou a mão quente e úmida,
por apenas alguns segundos, na cabeça de Clay. No bar, provavelmente
se sentaria no lugar onde nos sentamos juntos uma vez, todos nós —
inclusive o Assassino —, numa noite que jamais esqueceríamos.
Em
seguida, Henry saiu pelos fundos, provavelmente para organizar livros
velhos e discos, achados de vendas de garagem.
Então
Tommy se foi também.
Após
Clay e eu passarmos um bom tempo sentados, ele se levantou e se
dirigiu ao banheiro em silêncio. Tomou um banho e ficou parado
diante da pia. O ralo estava entupido de cabelo e pasta de dente;
tudo tinha virado uma massa de sujeira. Talvez fosse daquilo que ele
precisava para provar que grandes feitos poderiam brotar do nada.
Mas
ele ainda evitava o espelho.
***
Mais
tarde, resolveu ir aonde tudo começou.
Ele
tinha uma coleção de lugares sagrados.
Claro
que um deles era o parque Bernborough.
E
também o colchão nas Cercanias.
O
cemitério no morro.
Mas
tinha uma boa razão para tudo ter começado aqui mesmo, anos atrás.
Ele
subiu no telhado.
***
Naquela
noite ele saiu pela porta da frente e deu a volta, passando rente à
casa da sra. Chilman: pulou da cerca para a caixa do medidor e depois
para o telhado. Como de costume, sentou-se bem no meio, camuflado;
conforme crescia, aperfeiçoava a técnica.
Na
infância, subia sempre à luz do dia, mas com o tempo preferiu
passar despercebido pelos transeuntes. Só ficava na cumeeira ou na
beirada quando subia acompanhado.
Observou
a casa de Carey Novac, do outro lado da rua, um pouco mais à frente.
Número
11.
Tijolos
marrons.
Janelas
amarelas.
Ele
sabia que ela estaria lendo O marmoreiro.
Passou
um tempo observando as silhuetas variadas, mas logo se virou. Por
mais que adorasse vê-la, ter um vislumbre que fosse, não era por
causa dela que subia no telhado. Aquele canto se tornara seu muito
antes de Carey se mudar para a rua Archer.
Então
ele chegou um pouco para o lado, umas dez telhas à esquerda, e se
concentrou na extensão da cidade, que se erguia de seu abismo,
grandiosa, vasta, com as ruas iluminadas. Ele observou tudo com a
placidez de sempre.
— Oi,
cidade.
De
vez em quando, gostava de conversar com ela: para se sentir ao mesmo
tempo menos e mais solitário.
***
Meia
hora depois, Carey saiu apressada de casa. Com uma das mãos tocou o
corrimão da varanda e com a outra acenou devagar, bem alto.
Oi,
Clay.
Oi,
Carey.
E
entrou de volta.
Cada
dia, para ela, era sempre um começo brutal, e o dia seguinte não
seria diferente. Ela levaria a bicicleta jardim afora, às quinze
para as quatro, para treinar na cocheira de McAndrew, no clube Royal
Hennessey.
Já
quase no fim, Henry apareceu, saindo da garagem com uma cerveja e um
pacote de amendoim. Sentou-se na beirada, perto de uma Playboy
enrolada na calha; uma edição de janeiro com alguma musa morta ou
moribunda. Fez sinal para Clay se aproximar, e quando o irmão chegou
perto ofereceu o amendoim e a cerveja gelada.
— Não,
valeu.
— Ele
fala! — Henry deu um tapa nas costas do irmão. — Duas vezes em
uma hora! Essa noite vai entrar para a história mesmo. Vou correr
até a banca amanhã e jogar na loteria.
Clay
observava em silêncio:
O
adubo formado pela mistura de arranha-céus com o subúrbio.
Por
um instante, chegou a olhar para o irmão e seus goles de cerveja
inabaláveis. Gostou da ideia da loteria.
Os
números de Henry eram de um a seis.
***
Um
pouco mais tarde, Henry apontou para a rua, de onde vinha Rory,
penando ladeira acima com uma caixa de correio nos ombros. Atrás
dele, o pé de madeira arrastava no chão, até que Rory o largou no
jardim, triunfante.
— Ei,
Henry! Joga aqui um amendoim, seu varapau do cacete!
Ele
pensou um instante, mas esqueceu o que estava dizendo. Algo hilário,
com certeza, porque foi gargalhando até a varanda. Então tropeçou
nos degraus e se estabacou.
Henry
suspirou.
— Vou
precisar de ajuda.
E
Clay desceu pelo outro lado, onde Henry tinha colocado uma escada.
Ele não olhou para as Cercanias ou para a longa paisagem de telhados
inclinados. Não, tudo que ele via era o quintal e Aurora correndo em
volta do varal. Aquiles ficou ruminando ao luar.
***
Quanto
a Rory, ele pesava uma tonelada de álcool, mas enfim conseguiram
carregá-lo até a cama.
— Imbecil
— disse Henry. — Deve ter entornado umas vinte canecas.
Eles
nunca tinham visto Heitor se mover com tanta destreza. Foi impagável
seu olhar assustado ao saltar de colchão em colchão e sair do
quarto. Na outra cama, Tommy dormia encostado na parede.
***
No
quarto deles, mais tarde, bem mais tarde, o velho rádio-relógio de
Henry (mais uma barganha de uma venda de garagem) informava 1:39, e
Clay estava de pé, de costas para a janela aberta. Pouco antes,
Henry havia se sentado no chão para escrever uma redação para a
escola, mas já não se mexia havia alguns minutos; tinha desabado
nas folhas de papel, e Clay se sentiu seguro para agir:
Agora.
Trincou
o maxilar.
Foi
até o corredor, mas seu destino final era a cozinha, e antes do
esperado estava ao pé da geladeira, tateando em meio à caixa de
lixo reciclável.
A
luz se acendeu de repente.
Jesus!
Era
branca e forte e atingiu seus olhos feito um hooligan. Quando voltou
a se apagar, ele levou as mãos aos olhos, que ainda latejavam. No
recém-instaurado e sufocante breu estava Tommy, só de cueca, com
Heitor a tiracolo. O gato era uma sombra em movimento, ainda
assustado pela iluminação repentina.
— Clay?
— Tommy perambulou até a porta dos fundos. Babava as palavras,
sonâmbulo. — Quiles nem que... com... — Numa segunda tentativa,
quase desvendou a própria frase. — Aquiles tem que... comida.
Clay
o puxou pelo braço e assistiu enquanto o irmão perambulava pelo
corredor. Ele até se agachou e fez carinho no gato, desencadeando um
breve ronronar. Por um momento, Clay imaginou que Aurora fosse latir
ou que Aquiles fosse relinchar, mas não o fizeram, e ele vasculhou o
caixote.
Nada.
Mesmo
quando se arriscou e abriu a geladeira — só uma fresta, roubando
um pouco da luz —, não conseguiu encontrar nem um pedacinho. Qual
não foi sua surpresa, portanto, ao voltar para o quarto e se deparar
com o papel remendado com fita adesiva em sua cama.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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