quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Medindo forças


Ele nunca tinha ficado bêbado, portanto nem de ressaca, mas Clay imaginava que a sensação fosse exatamente aquela.
Estava com a cabeça pesada e a colocou no lugar.
Ficou um tempo sentado, rastejou pelo colchão e encontrou a lona plástica jogada na grama ali perto. Com ossos cansados e mãos trêmulas, usou-a para cobrir a cama, então foi até a cerca — divisão obrigatória da pista esportiva, só com ripas horizontais, sem tábuas verticais — e descansou o rosto na madeira. Respirou as brasas dos telhados da cidade.
Por um bom tempo, tentou esquecer:
O homem à mesa.
O barulho baixinho dos irmãos ao fundo e um sentimento de traição pairando no ambiente.
Aquela história da ponte dele insistia em voltar à sua mente nos mais variados contextos, mas, naquela manhã, vinham à tona sobretudo fragmentos da noite anterior.

***

Oito horas antes, quando o Assassino se retirou, um silêncio desconfortável perdurou por uns dez minutos entre eles. Foi Tommy quem o quebrou:
Jesus, ele está com uma cara de morte. Parece que morreu e esqueceram de enterrar.
Ele carregava Heitor perto do coração. O gato ronronou, uma bola listrada de pelo.
Merecia estar pior ainda — retruquei.
Henry e Rory se pronunciaram, um após o outro:
Não engoli aquele terno!
Quero nem saber. Vou pro bar.
Os dois estavam lado a lado feito elementos fundidos, uma mistura de areia e ferrugem.
Clay, famoso por não dizer quase nada, nada disse. Já havia batido a cota de falatório da noite. Por um momento, se perguntou: por que agora? Por que ele apareceu aqui em casa agora? Até que se deu conta. Era dia 17 de fevereiro.
Ele mergulhou a mão machucada em um balde de gelo e tentou manter a outra longe do arranhão no rosto, por mais tentador que fosse cutucá-lo. À mesa éramos eu e ele, um confronto silencioso. Para mim, não restavam dúvidas: eu tinha apenas um irmão com quem me preocupar, e era o que estava na minha frente.
Oi, pai, pelo amor de Deus.
Olhei para o gelo boiando em torno do pulso dele.
Vai precisar de um balde do seu tamanho, garoto.
Não falei nada, mas percebi que havia ganhado a batalha quando Clay apontou dois dedos em forma de arma para o hematoma embaixo do olho. Aquele imbecil que nunca abria a boca chegou a assentir discretamente, pouco antes de a pilha de louça limpa, de sua altura absurda, desmoronar na pia.
Não acabou com nosso impasse, no entanto — não mesmo.
Eu, particularmente, insisti em encará-lo.
Clay prosseguiu com os dedos.
Tommy colocou Heitor no chão, guardou os pratos e logo retornou com o pombo (Tetê acompanhava a cena do ombro dele), mal vendo a hora de sair dali. Resolveu dar uma olhada em Aquiles e Aurora — ambos exilados lá fora, no quintal. Saiu e tratou de fechar a porta.

***

Claro que, pouco antes, quando Clay pronunciou aquelas duas fatídicas palavras, nós quatro ficamos parados atrás dele, como testemunhas na cena de um crime. Um crime terrível. Entre o espanto e o orgulho, havia muito em que se pensar, mas só consegui me lembrar de uma coisa:
Ali, nós o perdemos para sempre.
Mas eu estava disposto a lutar.
Você tem dois minutos — falei, e o Assassino assentiu devagar. Ele afundou na cadeira grudada ao chão. — Bem, então pode começar. Dois minutos não são muito tempo, velho.
Velho?
O Assassino ia contestar, mas com o mesmo ímpeto se resignou. Ele era velho, uma velha lembrança, uma ideia esquecida — e, ainda que na meia-idade, para nós era tido como morto.
Colocou as mãos na mesa.
Ressuscitou a voz.
Dirigiu-se à plateia em prestações.
Eu preciso de... Quer dizer, queria saber se...
Ele não soava mais como a mesma pessoa, não para nós. Nós nos lembrávamos dele um tanto diferente, aqui e ali.
Estou aqui para perguntar...
Louvado seja Rory, que, em sua voz abrasiva, descarregou uma resposta sanguinolenta na gagueira acanhada do nosso pai.
Pelo amor de Deus, desembucha, porra!
Ficamos parados.
Todos nós, temporariamente.
Mas então Aurora latiu de novo, tivemos um momento de alguém-cala-a-boca-dessa-cachorra, e em algum lugar, no meio disso, as palavras vieram:
Tá bom, é o seguinte. — Ele se agarrou àquele momento de coragem. — Não vou mais tomar o tempo de vocês, sei que não tenho direito algum, mas vim aqui porque moro longe agora. Moro pra lá da cidade, bem no interior, e é bastante chão e tem um rio e estou construindo uma ponte. Aprendi na marra que o rio enche. E que, se você bobear, pode ficar preso tanto de um lado quanto de outro. — A voz estava cheia de farpas, uma cerca de madeira em sua garganta. — Vou precisar de ajuda na construção, e gostaria de saber se algum de vocês...
Não. — Fui o primeiro.
Mais uma vez, o Assassino assentiu.
Caralho, você é cara de pau mesmo, hein! — Rory, caso você ainda não tenha adivinhado.
Henry?
Henry seguiu a minha deixa e manteve a compostura, engolindo o ultraje.
Não, obrigado.
Ele não merece seu obrigado. Clay?
Clay balançou a cabeça.
Tommy?
Não.
Um de nós estava mentindo.

***

A partir daquele momento, um silêncio devastou a cena.
A mesa era um território árido entre pai, filhos e migalhas. Um saleiro e um pimenteiro descombinados postados no meio, como uma dupla de humoristas. Um alto, um gordo.
O Assassino assentiu e foi embora.
Antes, deixou um pedacinho de papel em meio às migalhas.
Meu endereço. Caso mudem de ideia.
Agora pode ir. — Cruzei os braços. — E deixa os cigarros.

***

O papel com o endereço foi rasgado na mesma hora.
Joguei os picotes no caixote de madeira ao lado da geladeira junto com garrafas de vários tipos e jornais velhos.
Ficamos ali sentados, de pé, escorados.
A cozinha em silêncio.
O que dizer?
Se tivemos uma conversa profunda sobre nos unirmos ainda mais em momentos como esse?
Claro que não.
Trocamos as poucas palavras de sempre, e Rory foi o primeiro a sair, direto para o bar. O Naked Arms. De saída, colocou a mão quente e úmida, por apenas alguns segundos, na cabeça de Clay. No bar, provavelmente se sentaria no lugar onde nos sentamos juntos uma vez, todos nós — inclusive o Assassino —, numa noite que jamais esqueceríamos.
Em seguida, Henry saiu pelos fundos, provavelmente para organizar livros velhos e discos, achados de vendas de garagem.
Então Tommy se foi também.
Após Clay e eu passarmos um bom tempo sentados, ele se levantou e se dirigiu ao banheiro em silêncio. Tomou um banho e ficou parado diante da pia. O ralo estava entupido de cabelo e pasta de dente; tudo tinha virado uma massa de sujeira. Talvez fosse daquilo que ele precisava para provar que grandes feitos poderiam brotar do nada.
Mas ele ainda evitava o espelho.

***

Mais tarde, resolveu ir aonde tudo começou.
Ele tinha uma coleção de lugares sagrados.
Claro que um deles era o parque Bernborough.
E também o colchão nas Cercanias.
O cemitério no morro.
Mas tinha uma boa razão para tudo ter começado aqui mesmo, anos atrás.
Ele subiu no telhado.

***

Naquela noite ele saiu pela porta da frente e deu a volta, passando rente à casa da sra. Chilman: pulou da cerca para a caixa do medidor e depois para o telhado. Como de costume, sentou-se bem no meio, camuflado; conforme crescia, aperfeiçoava a técnica.
Na infância, subia sempre à luz do dia, mas com o tempo preferiu passar despercebido pelos transeuntes. Só ficava na cumeeira ou na beirada quando subia acompanhado.
Observou a casa de Carey Novac, do outro lado da rua, um pouco mais à frente.
Número 11.
Tijolos marrons.
Janelas amarelas.
Ele sabia que ela estaria lendo O marmoreiro.
Passou um tempo observando as silhuetas variadas, mas logo se virou. Por mais que adorasse vê-la, ter um vislumbre que fosse, não era por causa dela que subia no telhado. Aquele canto se tornara seu muito antes de Carey se mudar para a rua Archer.
Então ele chegou um pouco para o lado, umas dez telhas à esquerda, e se concentrou na extensão da cidade, que se erguia de seu abismo, grandiosa, vasta, com as ruas iluminadas. Ele observou tudo com a placidez de sempre.
Oi, cidade.
De vez em quando, gostava de conversar com ela: para se sentir ao mesmo tempo menos e mais solitário.

***

Meia hora depois, Carey saiu apressada de casa. Com uma das mãos tocou o corrimão da varanda e com a outra acenou devagar, bem alto.
Oi, Clay.
Oi, Carey.
E entrou de volta.
Cada dia, para ela, era sempre um começo brutal, e o dia seguinte não seria diferente. Ela levaria a bicicleta jardim afora, às quinze para as quatro, para treinar na cocheira de McAndrew, no clube Royal Hennessey.
Já quase no fim, Henry apareceu, saindo da garagem com uma cerveja e um pacote de amendoim. Sentou-se na beirada, perto de uma Playboy enrolada na calha; uma edição de janeiro com alguma musa morta ou moribunda. Fez sinal para Clay se aproximar, e quando o irmão chegou perto ofereceu o amendoim e a cerveja gelada.
Não, valeu.
Ele fala! — Henry deu um tapa nas costas do irmão. — Duas vezes em uma hora! Essa noite vai entrar para a história mesmo. Vou correr até a banca amanhã e jogar na loteria.
Clay observava em silêncio:
O adubo formado pela mistura de arranha-céus com o subúrbio.
Por um instante, chegou a olhar para o irmão e seus goles de cerveja inabaláveis. Gostou da ideia da loteria.
Os números de Henry eram de um a seis.

***

Um pouco mais tarde, Henry apontou para a rua, de onde vinha Rory, penando ladeira acima com uma caixa de correio nos ombros. Atrás dele, o pé de madeira arrastava no chão, até que Rory o largou no jardim, triunfante.
Ei, Henry! Joga aqui um amendoim, seu varapau do cacete!
Ele pensou um instante, mas esqueceu o que estava dizendo. Algo hilário, com certeza, porque foi gargalhando até a varanda. Então tropeçou nos degraus e se estabacou.
Henry suspirou.
Vou precisar de ajuda.
E Clay desceu pelo outro lado, onde Henry tinha colocado uma escada. Ele não olhou para as Cercanias ou para a longa paisagem de telhados inclinados. Não, tudo que ele via era o quintal e Aurora correndo em volta do varal. Aquiles ficou ruminando ao luar.

***

Quanto a Rory, ele pesava uma tonelada de álcool, mas enfim conseguiram carregá-lo até a cama.
Imbecil — disse Henry. — Deve ter entornado umas vinte canecas.
Eles nunca tinham visto Heitor se mover com tanta destreza. Foi impagável seu olhar assustado ao saltar de colchão em colchão e sair do quarto. Na outra cama, Tommy dormia encostado na parede.

***

No quarto deles, mais tarde, bem mais tarde, o velho rádio-relógio de Henry (mais uma barganha de uma venda de garagem) informava 1:39, e Clay estava de pé, de costas para a janela aberta. Pouco antes, Henry havia se sentado no chão para escrever uma redação para a escola, mas já não se mexia havia alguns minutos; tinha desabado nas folhas de papel, e Clay se sentiu seguro para agir:
Agora.
Trincou o maxilar.
Foi até o corredor, mas seu destino final era a cozinha, e antes do esperado estava ao pé da geladeira, tateando em meio à caixa de lixo reciclável.
A luz se acendeu de repente.
Jesus!
Era branca e forte e atingiu seus olhos feito um hooligan. Quando voltou a se apagar, ele levou as mãos aos olhos, que ainda latejavam. No recém-instaurado e sufocante breu estava Tommy, só de cueca, com Heitor a tiracolo. O gato era uma sombra em movimento, ainda assustado pela iluminação repentina.
Clay? — Tommy perambulou até a porta dos fundos. Babava as palavras, sonâmbulo. — Quiles nem que... com... — Numa segunda tentativa, quase desvendou a própria frase. — Aquiles tem que... comida.
Clay o puxou pelo braço e assistiu enquanto o irmão perambulava pelo corredor. Ele até se agachou e fez carinho no gato, desencadeando um breve ronronar. Por um momento, Clay imaginou que Aurora fosse latir ou que Aquiles fosse relinchar, mas não o fizeram, e ele vasculhou o caixote.
Nada.
Mesmo quando se arriscou e abriu a geladeira — só uma fresta, roubando um pouco da luz —, não conseguiu encontrar nem um pedacinho. Qual não foi sua surpresa, portanto, ao voltar para o quarto e se deparar com o papel remendado com fita adesiva em sua cama.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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