terça-feira, 3 de outubro de 2023

LIVRO PRIMEIRO – SEMBAZURU OU OS PÁSSAROS BRANCOS


I

Kikuji já penetrara no átrio do Templo Engakuji, em Kamakura, mas hesitava ainda. Iria ou não assistir àquela reunião de chá? E depois, não ia chegar atrasado?
Se a Srta. Chikako Kurimoto, professora na arte do chá, nunca deixava de convidá-lo cada vez que organizava suas reuniões, que se realizavam num pavilhão do jardim do templo; ele no entanto jamais fora desde a morte de seu pai. A seu ver, os convites representavam meros gestos polidos em memória do pai falecido e não lhes dava atenção.
No de hoje, porém, a anfitriã insistira, juntando algumas palavras do próprio punho: fazia questão de lhe apresentar uma moça entre suas discípulas.
Ao ler essas palavras, Kikuji recordou de novo as manchas que marcavam o seio de Chikako.
Não devia ter então mais de oito ou nove anos. Chegara em casa dela com o pai, enquanto ela, no quarto, cortava com uma tesourinha os pêlos duros que eriçavam essas manchas. Uma feia nódoa violácea e escura, grande como uma mão aberta, que lhe cobria o seio esquerdo em cima e embaixo, com tufos de pêlos.
Oh! o senhor está com o seu filho! — exclamara, surpreendida, buscando pôr no lugar a gola do quimono com um gesto vacilante. Sentia-se mais confusa ainda, parecia, por aparentar que escondia o peito com precipitação. Por fim, virou-se um pouco e deixou cair, com segurança e lentamente, o avesso de seu quimono abaixo da cintura.
Não fora por certo a visita do pai de Kikuji que a surpreendera, mas a presença inesperada do menino. A doméstica que lhe abrira a porta provavelmente só lhe anunciara a chegada daquele visitante.
Evitando o quarto de Chikako, o pai de Kikuji ganhara a sala contígua, preparada para servir de ateliê. E ali, diante do tokonoma¹, contemplando fixamente o kakemono exposto, perguntara num tom distraído:
Posso provar o chá?
Como não! — ela respondeu.
Mas não veio em seguida para a peça onde a esperavam.
Tinha um jornal aberto sob os joelhos e os pêlos que cortava caíam no papel. Duros como os de uma barba masculina. E Kikuji, o filho, vira tudo.
Era meio-dia e no entanto camundongos corriam e dançavam com grande ruído no teto. Fora, perto da galeria, havia um pessegueiro em flor.
Chikako acabou vindo se instalar diante do fogo para preparar o chá, mas com algo de vago nos gestos, como se o seu pensamento estivesse em outra parte.
Uns dez dias mais tarde, Kikuji ouvira a mãe contar ao pai, com o tom que se toma para revelar um grande segredo, que Chikako não se casaria por causa das manchas que tinha no peito. Cândidamente, a mãe de Kikuji pensava que o seu marido não soubesse delas. Estava visivelmente tocada de compaixão por Chikako e com o rosto sinceramente alterado.
Oh! Ah!
O pai de Kikuji empregava apenas vagos monossílabos para fingir surpresa ouvindo a esposa. Por fim acabou lhe dizendo:
Talvez não seja assim tão grave... desde que o marido saiba e concorde antes do casamento!
Foi também o que eu lhe disse. Mas deves compreender que, apesar de tudo, não é tão fácil para uma mulher confessar que tem grandes manchas no peito!
Não digo que seja, mas afinal ela já não é uma mocinha!
Mesmo assim, não é simples falar coisa semelhante. Para um homem, sem dúvida, seria diferente; e mesmo que o segredo só fosse revelado depois do casamento, bastava que ele risse e tudo seria esquecido.
Essas manchas, ela te mostrou?
Ora, não digas tolices!
Então ela apenas te contou, foi só isso.
Claro. Quando ela veio hoje para a lição de chá e a conversa foi parar aí. Ia-se falando de tudo e de nada e acredito que ela confessou a história inteiramente por acaso, sem qualquer premeditação, O pai de Kikuji a ouve sem dizer nada.
Suponhamos que se case — continuou a mãe. — Que julgas que ele pensará, o seu marido?
Há de ser decerto desagradável de ver e um tanto repugnante da primeira vez. Mas quem sabe se depois um segredo dessa espécie não teria um lado atraente, até uma certa pimenta talvez?... Eu me pergunto mesmo se esse defeito não iria ao ponto de valorizar suas outras qualidades, como um estrado sob uma mesa. Em todo o caso, a meu ver, não representa um inconveniente maior.
Tratei de consolá-la dizendo-lhe o mesmo, e foi então que me confiou que a nódoa lhe cobria também o seio.
Ah, sim?
Sim, ela pensa no filho que poderá ter e deverá alimentar. É o que a deixa triste. Ainda que as coisas se arranjassem com o marido, que fazer com o filho?
Queres dizer que esse sinal de nascença a impede de amamentar?
Não é isso, absolutamente. Ela não pode se acostumar com a ideia de que o filho, quando lhe der o seio, terá sob os olhos aquelas feias manchas. Por mim nem teria pensado nisso. Mas quando se possuem essas marcas horrorosas, pensa-se em todas as consequências, é normal. Desde que nasça, o bebê vai para o seio, e quando abrir bem os olhos será para ver aquelas manchas horríveis no seio da mãe. Sua primeira impressão deste mundo, o sentimento inicial que terá de sua mãe, vai ser a vista desse detestável sinal no seu seio... Uma lembrança medonha que não se afastará dele o resto da vida.
Sem dúvida, sem dúvida. . . Mas isso me parece levar as coisas um pouco longe.
Talvez, sim, porque sempre se pode criar uma criança com leite de vaca ou recorrer a uma ama-de-leite.
Por mim eu acho que o principal é que ela seja capaz de dar ela mesma de mamar ao filho.
Impossível, eu te disse! É um caso de apertar o coração quando se pensa, e não pude reter as lágrimas quando ela me falou a respeito. Imagina com o nosso pequeno Kikuji: acreditas que eu teria podido alimentá-lo, eu, se tivesse manchas parecidas no seio?
É justo — reconheceu o pai.
O sangue de Kikuji dera uma volta ao ver como o seu pai fingia tudo ignorar. Fervia em cólera. Pois vira também a feia mancha de Chikako. Nem por isso a sua presença perturbava no mínimo ao pai, a quem se pôs a odiar na hora com toda a força da indignação.
Mas no momento, ao recordar essa história de quase vinte anos atrás, Kikuji não consegue deixar de sorrir calculando quanto o pai em realidade devia se sentir contrariado, e mais que contrariado.
Isso não desfaz que, desde os dez anos, tenha muitas vezes voltado a pensar nas palavras de sua mãe. Não raro estremeceu à ideia de que poderia ter, por meio irmão ou irmã, um lactante deste seio marcado, deste seio profanado de manchas duma mãe que não era a sua! E tinha medo, não apenas de ter irmãos ou irmãs de outro leito, mas da própria existência desse rebento provável: não podia deixar de julgar que o pequeno que sugasse o leite dum seio assim coberto daquelas manchas de nascença, com seus tufos de pêlos duros, devia forçosamente ter qualquer coisa de diabólico em sua natureza.
Felizmente, Chikako nunca teve filhos. Talvez tivesse sido o próprio pai de Kikuji que não tivesse querido tê-los com ela. Talvez fosse ele próprio que lhe tivesse sugerido aquela enternecedora história das nódoas e do filho, tão comovente para a mãe de Kikuji, e isso com a intenção bem ponderada de levá-la a renunciar a pôr uma criança no mundo. Em todo o caso, o certo é que, nem antes nem depois da morte do pai de Kikuji, nenhum filho de Chikako viera ao mundo.
E também, como Chikako fizera aquelas confidências pouco depois de Kikuji, ao acompanhar o pai, ter surpreendido o segredo, era possível que constituíssem um golpe dado por precaução, adiantando-se à confissão que o menino poderia ter feito à mãe. Quem sabe?
De resto, Chikako nunca se casou, e a gente pode bem se perguntar se afinal as manchas não influíram diretamente no seu destino.
Para Kikuji, o choque que teve em criança, ao vê-las, como que gravou nele uma lembrança inapagável. Quem pode dizer se o seu próprio destino não foi também influenciado até certo ponto por essa impressão?
A primeira imagem que se ofereceu a ele ao receber o convite e saber que Chikako tencionava lhe apresentar uma moça naquela reunião de chá, foi ainda a visão das manchas que enodoavam aquele seio, e seu pensamento a elas voltava sem parar.
Deve ter uma pele doce e fina a jovem que Chikako quer que eu conheça” — cismava vagamente, por contraste.
Seu pensamento depois voltava ao pai e se indagava se não teria às vezes acariciado com os dedos as manchas, divertindo-se em mordiscá-las talvez. . .
Tais eram as quimeras que afagava seguindo o passeio sob a cobertura das árvores perto do templo, sempre escutando o canto dos pássaros.
Poucos anos depois do incidente que marcara a sua infância, Chikako perdera visivelmente tudo o que podia ter de feminino no porte e nos traços. Hoje era um ser positivamente assexuado. E Kikuji, embalado por essas ideias, via-a agora, ativa e cheia de energia, presidir à reunião de chá que organizava. “Seu peito com os sinais de nascença — dizia-se — já não deve ter o mesmo impacto de antes...”
Pusera-se a rir das próprias imaginações e ideias desconexas quando escutou atrás de si, na estradinha, o andar apressado de duas jovens. Apartou-se para lhes abrir caminho, mas não sem lhes indagar se era por ali que se ia ao pavilhão onde a Srta. Kurimoto dava a sua reunião de chá.
Sim, senhor! — responderam numa voz as duas moças.
Além de que bastava olhar as roupas das jovens para saber, Kikuji não podia hesitar: iam a uma sessão de chá. Se, apesar disso, fizera a pergunta, fora antes para se obrigar a si mesmo a comparecer.
Uma das moças trazia um furochiki² de seda rosa com o motivo de sembazuru³ em branco. Era bela.

1. Numa sala japonesa, onde a decoração supérflua costuma ser eliminada, o tokonoma, o local um pouco acima do chão e ocupando toda a parede do fundo, enquadra a sóbria ornamentação escolhida: um kakemono (desenho, pintura ou caligrafia montada sobre um rolo vertical pendurado à parede), um ikebana (arranjo floral) ou um objeto artístico. Nada mais.
2. Quadrado de fazenda que serve para envolver os objetos que se levam na mão.
3. Jogo infantil que consiste em fazer pássaros de papel.

Yasunari Kawabata, in Nuvens de Pássaros Brancos

Nenhum comentário:

Postar um comentário