domingo, 29 de outubro de 2023

Hollywood | 27


Não houve muita coisa durante uma semana, mais ou menos. Eu brincava com um dos gatos no tapete quando o telefone tocou. Sarah atendeu.
Sim? Oh, olá, Jon. Sim, ele está aqui. Não tem corrida nas terças. Quê? Oh, deus, que bagunça... Escuta, eu vou chamar Hank...
Eu me levantei do tapete e peguei o telefone.
Alô, Jon...
Hank, furou...
Quê?
O troço do Edleman. Eles andaram tentando vender A Dança de Jim Beam por sete milhões pelas nossas costas. O pessoal que eu contratei pra procurar secretamente outro produtor quando a gente estava na Firepower acaba de me dizer que o grupo Edleman propôs vender a eles os direitos do filme por sete milhões...
Mas eles não têm os direitos, ainda...
Disseram que tinham. Ofereceram o pacote: o argumento, os atores, o orçamento. Pediam sete milhões pelo direito de produzir o filme. Iam comprar os direitos da gente por menos, depois de fazerem o acordo em segredo...
Nossa...
Fomos novamente vítimas de outro bando de escroques. Portanto, está fora. O negócio com Edleman acabou. Agora vamos tentar arranjar outro produtor. Eu não queria chatear você com tudo isso, mas achei que era melhor te informar.
Claro. Então, em que pé estão as coisas?
Recebemos telefonemas. Oferecemos a coisa pelo telefone e eles dizem: “Ótimo, ótimo, vamos fazer”. Depois, quando veem o argumento, dizem: “Não”. Toda a cidade diz “Não”. A gente tem aqui um filme com dois grandes atores e um orçamento tão baixo que não há meio de não faturar. E a cidade toda diz “Não”. É inédito.
Não gostam do argumento – eu disse.
Não gostam.
E eu não gosto deles. Não gosto nem um pouco deles.
Bem, vamos continuar trabalhando. Tem de haver alguém em algum lugar que não tentamos ainda.
A coisa parece preta.
De algum modo, nós vamos fazer esse troço.
Eu gosto da sua fé.
Não esquenta.
Tudo bem...
Voltei ao tapete e a brincar com o gato. O bichinho gostava de correr atrás de um pedaço de barbante.
O filme voltou à estaca zero – eu disse a Sarah. – Ninguém gosta do argumento.
Você gosta?
Acho que é melhor que a maioria dos argumentos que tenho visto, mas talvez esteja errado. Sinto sobretudo por Jon.
O gato sentiu falta do cordão e enfiou uma garra nas costas de minha mão. Saiu sangue. Fui ao banheiro e molhei a ferida com água hidrogenada. Lá estava meu rosto no espelho: apenas um velho que escrevera um argumento. Merda. Saí dali.
Quando os cavalinhos corriam, eu nunca recebia más notícias, porque não estava em casa e ninguém me encontrava.

Bem, as corridas voltaram de novo, e eu ia todo dia, me saía bem, voltava, como era meu hábito, comia, via um pouco de TV com Sarah, subia para a garrafa de vinho e a máquina. Trabalhava no poema. O poema não dava muito dinheiro, mas sem dúvida era um grande parque de diversões por onde eu me debatia.
Algumas semanas depois da última chamada, recebi outra de Jon.
Está tudo uma merda de novo – ele disse. – Estamos pior do que nunca!
Quê?
Escuta, a gente encontrou um produtor, ele disse tudo bem, gostou de tudo, até do argumento. Me disse: “Tudo bem, vamos fazer. Traga os documentos, eu assino, e a gente entra direto na produção”. Marcamos uma data pra assinatura, mas antes de eu poder chegar lá ele me ligou e disse: “Não posso fazer o filme”. Aparentemente, tem aí um diretor muito conhecido que diz ter os direitos de todas as obras sobre Henry Chinaski. “Não posso fazer nada”, ele disse. “O acordo está desfeito.”
Henry Chinaski era o nome que eu usara para o personagem principal de vários dos meus romances. Eu tornara a usar o nome no argumento.
Que merda é essa? – perguntei.
Não é merda nenhuma. Você vendeu os direitos do personagem Henry Chinaski.
Isso não é verdade – eu disse. – Mas, mesmo que fosse, a gente só precisa mudar o nome.
Não, o contrato diz que ele é dono do personagem, não importa que nome você use. Pra sempre!
Não pode ser verdade...
Receio que quando você vendeu os direitos de seu romance Conferente de Embarque ao diretor Hector Blackford, vendeu também esses direitos dramáticos.
É, vendi os direitos pro cinema. Foram só dois mil dólares. Eu estava morrendo de fome. Na época me pareceu um bocado de grana. Blackford jamais fez um filme de Conferente de Embarque.
Não importa. Diz no contrato que ele é dono do personagem pra sempre.
Escuta, como você soube disso?
Bem, tem um advogado, Fletcher Jaystone. Ele estava transando com uma montadora. Acabaram a transa e o advogado viu o argumento na mesa de cabeceira. Pegou. Era A Dança de Jim Beam. Ele folheou, pôs o argumento de volta no lugar e disse: “HENRY CHINASKI! MEU CLIENTE É DONO DESSE CARA! EU MESMO FIZ O CONTRATO!”. E dali mesmo a coisa se espalhou pela cidade. A Dança de Jim Beam está morto. Agora ninguém quer tocar nele porque Blackford e seu advogado são donos de Henry Chinaski.
Isso não é verdade, Jon. Eu não venderia esses direitos perpetuamente por uns míseros dois mil paus. Isso não faria nenhum sentido.
Mas está no contrato!
Eu li o contrato antes de assinar. Não vi nada disso.
Veja a cláusula VI.
Eu não acredito.
Eu telefonei pro advogado. É um cara durão. “Nós somos donos de Henry Chinaski”, ele me disse. “Eu investi 15 mil dólares de meu próprio dinheiro na época, e era muito dinheiro então. Ainda é um bocado de dinheiro.” Eu comecei a ficar nervoso, a gritar com ele. “Espere”, ele disse. “Não fale comigo desse jeito. Não fale comigo desse jeito.” Não cheguei a parte alguma com ele. Não sei se ele quer um monte de dinheiro ou o que, mas neste momento Jim Beam está morto, mais morto do que qualquer outra coisa por aí. Está liquidado.
Jon, eu telefono pra você depois.
Olhei o contrato e procurei a cláusula VI. Em minha opinião, não conseguia ver nenhuma venda direta ou implícita dos direitos sobre o personagem. Reli várias vezes a cláusula VI mas não conseguia ver.
Liguei para Jon.
Não tem nada na cláusula VI que diga coisa alguma sobre a cessão do personagem para sempre. Que tipo de maluquice é essa? Será que todo mundo ficou maluco?
Não, mas é o que significa.
Significa o quê?
A cláusula VI.
Você tem o contrato aí, Jon?
Tenho.
Pode ler pra mim onde declara que esse cara é dono de Henry Chinaski?
Bem, infere.
Isso é LOUCURA! Eu não vejo sequer uma inferência!
Se a gente tiver de ir pro tribunal, vai levar três, quatro, cinco anos... E enquanto isso Jim Beam está morto. Ninguém vai tocar nele.
SERÁ QUE TODO MUNDO NESTA CIDADE ESTÁ TÃO AMEDRONTADO? NÃO HÁ NADA NA CLÁUSULA VI QUE DECLARE QUALQUER COISA, DA MAIS VAGA FORMA, SOBRE A VENDA DO PERSONAGEM CHINASKI A ESSA GENTE!
Você assinou um papel cedendo os direitos a Henry Chinaski para sempre – disse Jon.
Ele também estava doente. Desliguei.
Encontrei o número de Hector Blackford. Estava na lista telefônica, como sempre estivera. Eu conhecia Hector desde que ele saíra da escola de cinema na USC. Um de seus primeiros filmes fora um documentário sobre mim. Passou numa TV a cabo uma noite. Na manhã seguinte, 50 pessoas telefonaram e cancelaram as assinaturas.
Hector e eu tomamos uns bons porres juntos algumas vezes. Ele mostrara um certo interesse em filmar Conferente de Embarque, e chegara até a me entregar um argumento, mas estava tão mal feito que eu disse a ele que esquecesse. Enquanto isso, ele seguiu seu caminho e eu o meu. E ele se tornou rico e famoso, dirigindo vários grandes sucessos. Eu brincava com o poema e esqueci Conferente de Embarque.
O telefone tocou, e ele atendeu.
Hector, é Hank...
Oh, olá, Hank. Como vai indo?
Não muito bem.
Que é que há?
É sobre Jim Beam. Tem um cara aí pela cidade afirmando que você e ele são donos de Henry Chinaski. Conhece ele?
Fletcher Jaystone?
É. Ora, Hector, você sabe que eu não venderia meu rabo e minha alma por uns míseros dois mil dólares.
Fletcher diz que você vendeu.
Isso não está na cláusula VI.
Ele diz que está.
Você leu?
Li.
Está?
Não sei.
Escuta, baby, você não vai me arrancar os bagos por uma vaga fraseologia que ninguém entende, vai?
Que quer dizer?
Quero dizer que temos um filme em andamento e isso vai matar ele pra sempre. Não se lembra de todas aquelas noites em que tomamos porre juntos e tivemos todos aqueles bons papos?
É, foram belas noites.
Então converse com seu cara e diga a ele pra se mandar. A gente só quer inspirar e expirar.
Hank, eu ligo pra você depois.
Fiquei sentado junto ao telefone, esperando. Esperei quinze minutos.
Tocou.
Era Hector.
Tudo certo, Jaystone vai aliviar a barra.
Obrigado, cara, sei que você é um grande coração. Esse negócio ainda não te matou.
Jaystone vai te mandar uma liberação, imediatamente.
Sensacional! Sensacional! Hector, você é lindo!
E Hank...
Sim?
Ainda vou fazer um filme de Conferente de Embarque um dia.
Tudo certo, baby. Lembranças à tua mulher!
Lembranças a Sarah – disse Hector.

Nove décimos desse tipo de coisa são resolvidos no telefone; o outro décimo na assinatura de documentos.
Liguei para Jon.
Hector mandou o tal Jaystone dar o fora. Jaystone vai te mandar uma liberação.
Sensacional! Sensacional! Agora podemos ir em frente! Hector foi camarada, não foi?
Bem, acho que ele provou isso.
Assim que a gente receba a liberação, vou voltar ao novo produtor... A propósito, em vez de esperar o correio, por que não vou ao escritório de Jaystone e pego a liberação?
Claro, telefone pra ele e acerte.
Bem, estamos de volta ao ramo do cinema – disse Jon.
Claro. Talvez a gente deva ir almoçar no Musso’s.
Quando?
Amanhã. Uma e meia.
Até lá – disse Jon.
Até lá – respondi.

Charles Bukowski, in Hollywood

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