Não
houve muita coisa durante uma semana, mais ou menos. Eu brincava com
um dos gatos no tapete quando o telefone tocou. Sarah atendeu.
– Sim?
Oh, olá, Jon. Sim, ele está aqui. Não tem corrida nas terças.
Quê? Oh, deus, que bagunça... Escuta, eu vou chamar Hank...
Eu
me levantei do tapete e peguei o telefone.
– Alô,
Jon...
– Hank,
furou...
– Quê?
– O
troço do Edleman. Eles andaram tentando vender A Dança de Jim Beam
por sete milhões pelas nossas costas. O pessoal que eu contratei pra
procurar secretamente outro produtor quando a gente estava na
Firepower acaba de me dizer que o grupo Edleman propôs vender a eles
os direitos do filme por sete milhões...
– Mas
eles não têm os direitos, ainda...
– Disseram
que tinham. Ofereceram o pacote: o argumento, os atores, o orçamento.
Pediam sete milhões pelo direito de produzir o filme. Iam comprar os
direitos da gente por menos, depois de fazerem o acordo em segredo...
– Nossa...
– Fomos
novamente vítimas de outro bando de escroques. Portanto, está fora.
O negócio com Edleman acabou. Agora vamos tentar arranjar outro
produtor. Eu não queria chatear você com tudo isso, mas achei que
era melhor te informar.
– Claro.
Então, em que pé estão as coisas?
– Recebemos
telefonemas. Oferecemos a coisa pelo telefone e eles dizem: “Ótimo,
ótimo, vamos fazer”. Depois, quando veem o argumento, dizem:
“Não”. Toda a cidade diz “Não”. A gente tem aqui um filme
com dois grandes atores e um orçamento tão baixo que não há meio
de não faturar. E a cidade toda diz “Não”. É inédito.
– Não
gostam do argumento – eu disse.
– Não
gostam.
– E
eu não gosto deles. Não gosto nem um pouco deles.
– Bem,
vamos continuar trabalhando. Tem de haver alguém em algum lugar que
não tentamos ainda.
– A
coisa parece preta.
– De
algum modo, nós vamos fazer esse troço.
– Eu
gosto da sua fé.
– Não
esquenta.
– Tudo
bem...
Voltei
ao tapete e a brincar com o gato. O bichinho gostava de correr atrás
de um pedaço de barbante.
– O
filme voltou à estaca zero – eu disse a Sarah. – Ninguém gosta
do argumento.
– Você
gosta?
– Acho
que é melhor que a maioria dos argumentos que tenho visto, mas
talvez esteja errado. Sinto sobretudo por Jon.
O
gato sentiu falta do cordão e enfiou uma garra nas costas de minha
mão. Saiu sangue. Fui ao banheiro e molhei a ferida com água
hidrogenada. Lá estava meu rosto no espelho: apenas um velho que
escrevera um argumento. Merda. Saí dali.
Quando
os cavalinhos corriam, eu nunca recebia más notícias, porque não
estava em casa e ninguém me encontrava.
Bem,
as corridas voltaram de novo, e eu ia todo dia, me saía bem,
voltava, como era meu hábito, comia, via um pouco de TV com Sarah,
subia para a garrafa de vinho e a máquina. Trabalhava no poema. O
poema não dava muito dinheiro, mas sem dúvida era um grande parque
de diversões por onde eu me debatia.
Algumas
semanas depois da última chamada, recebi outra de Jon.
– Está
tudo uma merda de novo – ele disse. – Estamos pior do que nunca!
– Quê?
– Escuta,
a gente encontrou um produtor, ele disse tudo bem, gostou de tudo,
até do argumento. Me disse: “Tudo bem, vamos fazer. Traga os
documentos, eu assino, e a gente entra direto na produção”.
Marcamos uma data pra assinatura, mas antes de eu poder chegar lá
ele me ligou e disse: “Não posso fazer o filme”. Aparentemente,
tem aí um diretor muito conhecido que diz ter os direitos de todas
as obras sobre Henry Chinaski. “Não posso fazer nada”, ele
disse. “O acordo está desfeito.”
Henry
Chinaski era o nome que eu usara para o personagem principal de
vários dos meus romances. Eu tornara a usar o nome no argumento.
– Que
merda é essa? – perguntei.
– Não
é merda nenhuma. Você vendeu os direitos do personagem Henry
Chinaski.
– Isso
não é verdade – eu disse. – Mas, mesmo que fosse, a gente só
precisa mudar o nome.
– Não,
o contrato diz que ele é dono do personagem, não importa que nome
você use. Pra sempre!
– Não
pode ser verdade...
– Receio
que quando você vendeu os direitos de seu romance Conferente de
Embarque ao diretor Hector Blackford, vendeu também esses direitos
dramáticos.
– É,
vendi os direitos pro cinema. Foram só dois mil dólares. Eu estava
morrendo de fome. Na época me pareceu um bocado de grana. Blackford
jamais fez um filme de Conferente de Embarque.
– Não
importa. Diz no contrato que ele é dono do personagem pra sempre.
– Escuta,
como você soube disso?
– Bem,
tem um advogado, Fletcher Jaystone. Ele estava transando com uma
montadora. Acabaram a transa e o advogado viu o argumento na mesa de
cabeceira. Pegou. Era A Dança de Jim Beam. Ele folheou, pôs o
argumento de volta no lugar e disse: “HENRY CHINASKI! MEU CLIENTE É
DONO DESSE CARA! EU MESMO FIZ O CONTRATO!”. E dali mesmo a coisa se
espalhou pela cidade. A Dança de Jim Beam está morto. Agora ninguém
quer tocar nele porque Blackford e seu advogado são donos de Henry
Chinaski.
– Isso
não é verdade, Jon. Eu não venderia esses direitos perpetuamente
por uns míseros dois mil paus. Isso não faria nenhum sentido.
– Mas
está no contrato!
– Eu
li o contrato antes de assinar. Não vi nada disso.
– Veja
a cláusula VI.
– Eu
não acredito.
– Eu
telefonei pro advogado. É um cara durão. “Nós somos donos de
Henry Chinaski”, ele me disse. “Eu investi 15 mil dólares de meu
próprio dinheiro na época, e era muito dinheiro então. Ainda é um
bocado de dinheiro.” Eu comecei a ficar nervoso, a gritar com ele.
“Espere”, ele disse. “Não fale comigo desse jeito. Não fale
comigo desse jeito.” Não cheguei a parte alguma com ele. Não sei
se ele quer um monte de dinheiro ou o que, mas neste momento Jim Beam
está morto, mais morto do que qualquer outra coisa por aí. Está
liquidado.
– Jon,
eu telefono pra você depois.
Olhei
o contrato e procurei a cláusula VI. Em minha opinião, não
conseguia ver nenhuma venda direta ou implícita dos direitos sobre o
personagem. Reli várias vezes a cláusula VI mas não conseguia ver.
Liguei
para Jon.
– Não
tem nada na cláusula VI que diga coisa alguma sobre a cessão do
personagem para sempre. Que tipo de maluquice é essa? Será que todo
mundo ficou maluco?
– Não,
mas é o que significa.
– Significa
o quê?
– A
cláusula VI.
– Você
tem o contrato aí, Jon?
– Tenho.
– Pode
ler pra mim onde declara que esse cara é dono de Henry Chinaski?
– Bem,
infere.
– Isso
é LOUCURA! Eu não vejo sequer uma inferência!
– Se
a gente tiver de ir pro tribunal, vai levar três, quatro, cinco
anos... E enquanto isso Jim Beam está morto. Ninguém vai tocar
nele.
– SERÁ
QUE TODO MUNDO NESTA CIDADE ESTÁ TÃO AMEDRONTADO? NÃO HÁ NADA NA
CLÁUSULA VI QUE DECLARE QUALQUER COISA, DA MAIS VAGA FORMA, SOBRE A
VENDA DO PERSONAGEM CHINASKI A ESSA GENTE!
– Você
assinou um papel cedendo os direitos a Henry Chinaski para sempre –
disse Jon.
Ele
também estava doente. Desliguei.
Encontrei
o número de Hector Blackford. Estava na lista telefônica, como
sempre estivera. Eu conhecia Hector desde que ele saíra da escola de
cinema na USC. Um de seus primeiros filmes fora um documentário
sobre mim. Passou numa TV a cabo uma noite. Na manhã seguinte, 50
pessoas telefonaram e cancelaram as assinaturas.
Hector
e eu tomamos uns bons porres juntos algumas vezes. Ele mostrara um
certo interesse em filmar Conferente de Embarque, e chegara até a me
entregar um argumento, mas estava tão mal feito que eu disse a ele
que esquecesse. Enquanto isso, ele seguiu seu caminho e eu o meu. E
ele se tornou rico e famoso, dirigindo vários grandes sucessos. Eu
brincava com o poema e esqueci Conferente de Embarque.
O
telefone tocou, e ele atendeu.
– Hector,
é Hank...
– Oh,
olá, Hank. Como vai indo?
– Não
muito bem.
– Que
é que há?
– É
sobre Jim Beam. Tem um cara aí pela cidade afirmando que você e ele
são donos de Henry Chinaski. Conhece ele?
– Fletcher
Jaystone?
– É.
Ora, Hector, você sabe que eu não venderia meu rabo e minha alma
por uns míseros dois mil dólares.
– Fletcher
diz que você vendeu.
– Isso
não está na cláusula VI.
– Ele
diz que está.
– Você
leu?
– Li.
– Está?
– Não
sei.
– Escuta,
baby, você não vai me arrancar os bagos por uma vaga fraseologia
que ninguém entende, vai?
– Que
quer dizer?
– Quero
dizer que temos um filme em andamento e isso vai matar ele pra
sempre. Não se lembra de todas aquelas noites em que tomamos porre
juntos e tivemos todos aqueles bons papos?
– É,
foram belas noites.
– Então
converse com seu cara e diga a ele pra se mandar. A gente só quer
inspirar e expirar.
– Hank,
eu ligo pra você depois.
Fiquei
sentado junto ao telefone, esperando. Esperei quinze minutos.
Tocou.
Era
Hector.
– Tudo
certo, Jaystone vai aliviar a barra.
– Obrigado,
cara, sei que você é um grande coração. Esse negócio ainda não
te matou.
– Jaystone
vai te mandar uma liberação, imediatamente.
– Sensacional!
Sensacional! Hector, você é lindo!
– E
Hank...
– Sim?
– Ainda
vou fazer um filme de Conferente de Embarque um dia.
– Tudo
certo, baby. Lembranças à tua mulher!
– Lembranças
a Sarah – disse Hector.
Nove
décimos desse tipo de coisa são resolvidos no telefone; o outro
décimo na assinatura de documentos.
Liguei
para Jon.
– Hector
mandou o tal Jaystone dar o fora. Jaystone vai te mandar uma
liberação.
– Sensacional!
Sensacional! Agora podemos ir em frente! Hector foi camarada, não
foi?
– Bem,
acho que ele provou isso.
– Assim
que a gente receba a liberação, vou voltar ao novo produtor... A
propósito, em vez de esperar o correio, por que não vou ao
escritório de Jaystone e pego a liberação?
– Claro,
telefone pra ele e acerte.
– Bem,
estamos de volta ao ramo do cinema – disse Jon.
– Claro.
Talvez a gente deva ir almoçar no Musso’s.
– Quando?
– Amanhã.
Uma e meia.
– Até
lá – disse Jon.
– Até
lá – respondi.
Charles Bukowski, in Hollywood
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