– Venha
cá jantar amanhã, disse-me o Dutra uma noite.
Aceitei
o convite. No dia seguinte, mandei que a sege me esperasse no largo
de São Francisco de Paula, e fui dar várias voltas. Lembra-vos
ainda a minha teoria das edições humanas? Pois sabei que, naquele
tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda
inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava
alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação,
que era luxuosa. Dadas as voltas, ao passar pela rua dos Ourives,
consulto o relógio e cai-me o vidro na calçada. Entro na primeira
loja que tinha à mão; era um cubículo, – pouco mais, –
empoeirado e escuro.
Ao
fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto
amarelo e bexiguento não se destacava logo à primeira vista; mas
logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido
feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não pouco bonita; mas
a doença e uma velhice precoce, destrufram-lhe a flor das graças.
As bexigas tinham sido terríveis; os sinais, grandes e muitos,
faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma
sensação de lixa grossa, enormemente grossa. Eram os olhos a melhor
parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante,
que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo
penteado ao desdém, estava ruço e quase tão poento como os portais
da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante.
Crê-lo-eis, pósteros? essa mulher era Marcela.
Não
a conheci logo; era difícil; ela porém conheceu-me apenas lhe
dirigi a palavra. Os olhos chisparam e trocaram a expressão usual
por outra, meia doce e meia triste. Vi-lhe um movimento como para
esconder-se ou fugir; era o instinto da vaidade, que não durou mais
de um instante. Marcela acomodou-se e sorriu.
– Quer
comprar alguma coisa? disse ela estendendo-me a mão.
Não
respondi nada. Marcela compreendeu a causa do meu silêncio (não era
difícil), e só hesitou, creio eu, em decidir o que dominava mais,
se o assombro do presente, se a memória do passado. Deu-me uma
cadeira, e, com o balcão permeio, falou-me longamente de si, da vida
que levara, das lágrimas que eu lhe fizera verter, das saudades, dos
desastres, enfim das bexigas, que lhe escalavraram o rosto, e do
tempo, que ajudou a moléstia, adiantando-lhe a decadência. Verdade
é que tinha a alma decrépita. Vendera tudo, quase tudo; um homem,
que a amara outrora, e lhe morreu nos braços, deixara-lhe aquela
loja de ourivesaria, mas, para que a desgraça fosse completa, era
agora pouco buscada a loja – talvez pela singularidade de a dirigir
uma mulher. Em seguida pediu-me que lhe contasse a minha vida. Gastei
pouco tempo em dizer-lha; não era longa, nem interessante.
– Casou?
disse Marcela no fim de minha narração.
– Ainda
não, respondi secamente.
Marcela
lançou os olhos para a rua, com a atonia de quem reflete ou
relembra; eu deixei-me ir então ao passado, e, no meio das
recordações e saudades, perguntei a mim mesmo por que motivo fizera
tanto desatino. Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a
beleza de outro tempo valia uma terça parte dos meus sacrifícios?
Era o que eu buscava saber, interrogando o rosto de Marcela. O rosto
dizia-me que não; ao mesmo tempo os olhos me contavam que, já
outrora, como hoje, ardia neles a flama da cobiça. Os meus é que
não souberam ver-lha; eram olhos da primeira edição.
– Mas
por que entrou aqui? Viu-me da rua? Perguntou ela, saindo daquela
espécie de torpor.
– Não,
supunha entrar numa casa de relojoeiro; queria comprar um vidro para
este relógio; vou a outra parte; desculpe-me; tenho pressa.
Marcela
suspirou com tristeza. A verdade é que eu me sentia pungido e
aborrecido, ao mesmo tempo, e ansiava por me ver fora daquela casa.
Marcela, entretanto, chamou um moleque, deu-lhe o relógio, e, apesar
da minha oposição, mandou-o, a uma loja na vizinhança, comprar o
vidro. Não havia remédio; sentei-me outra vez. Disse ela então que
desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que
me daria finas joias por preços baratos. Não disse preços baratos,
mas usou uma metáfora delicada e transparente. Entrei a desconfiar
que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que tinha o
dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir
paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi
isso mesmo que me disseram depois.
Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas
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