terça-feira, 24 de outubro de 2023

As rãs | 15


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Animação, havia muita animação mesmo. Eu lutava para avançar em meio à multidão, queria forçar a passagem para conseguir chegar bem perto do tablado. As pessoas com quem eu topava me chutavam, socavam, me enfiavam o cotovelo sem a menor cerimônia. Depois de muito esforço, tinha a roupa encharcada de suor e o corpo cheio de hematomas, mas em vez de chegar aonde queria, fui expelido da multidão. Ouvi o gelo estalar — pacá-pacá — e aquilo me causou um mau pressentimento. Nesse momento, um homem com voz de pato começou a berrar nos alto-falantes: “A assembleia de denúncia está prestes a começar… Peço aos camponeses de renda baixa ou médio-baixa que se acalmem… Sentem-se os que estão nas fileiras da frente… Sentem-se”.
Dei a volta até o lado oeste da barragem onde havia três armazéns para guardar peças de reposição para as comportas. Subi por trás, apoiando os pés nas frestas entre os tijolos, segurei no beiral do telhado, dei uma cambalhota e me coloquei lá em cima. Rastejando pelas fileiras de telhas, escalei silenciosamente até a cumeeira. Estiquei a cabeça e tive um panorama da massa popular reunida aos milhares entre incontáveis bandeiras vermelhas, o gelo sobre a lagoa ofuscava. A oeste do tablado, havia dezenas de pessoas acocoradas, todas de cabeça baixa. Sabia que eram os “monstros e demônios” da comuna que logo iriam subir ao tablado para serem denunciados junto com o acusado principal. Xiao Lábio Superior gritou no microfone. Aquele reles zelador de armazém nem sonhava que um dia se daria bem na carreira oficial. Quando a Revolução Cultural começou, ele foi um dos primeiros a se rebelar, criou o “Corpo Rebelde Tempestade” e autoproclamou-se comandante.
Vestia uma farda militar velha, desbotada de tanto lavar, com remendos escuros, uma faixa vermelha no braço. Tinha pouco cabelo, sua careca reluzia ao sol. Imitava os discursos de personalidades ilustres que víamos no cinema: falava com voz arrastada, apoiava uma mão na cintura, girava a outra no ar, fazia todo tipo de pose. Os alto-falantes amplificavam sua voz a um volume ensurdecedor. A multidão zumbia como ondas batendo na rocha. Decerto havia agitadores em ação, porque quando em alguma parte se aquietava, noutra se alvoroçava. Fiquei preocupado com a segurança da minha mãe e dos idosos da aldeia. Tentava localizá-los, mas a luminosidade do gelo me ofuscava. Um vento cortante vindo de trás perpassava meu casaco de algodão puído, sentia muito frio.
A um sinal de Lábio Superior, uma dúzia de homens fortes brotou de trás do tablado, empunhavam longas varas de madeira e tinham uma braçadeira com a identificação “brigada de segurança”. Pularam ao chão e adentraram a multidão brandindo as varas para reprimir a agitação. As varas tinham panos vermelhos amarrados na ponta, com o movimento ficavam parecendo tochas. Um jovem foi atingido na cabeça. Indignado, tomou a vara e quis discutir com o brigadista, mas levou um soco no peito. A “brigada de segurança” era implacável e impiedosa. Por onde as varas passavam, as pessoas tinham de se abaixar. Ouvia-se o rugido rouco de Lábio Superior pelo alto-falante: “Todos sentados! Sentados! Peguem os agitadores!”. O jovem que tinha levado um soco dos brigadistas foi arrastado pelo cabelo para fora da multidão… As pessoas finalmente se aquietaram, umas de cócoras, outras sentadas, ninguém se atrevia a ficar de pé. Os brigadistas, com os porretes em punho, se distribuíam uniformemente pela multidão, como espantalhos no arrozal.
Tragam os ‘monstros e demônios’ para o tablado!”, ordenou Lábio Superior. Os brigadistas, que estavam de prontidão, vinham de dois em dois carregando um monstro ou um demônio até o tablado sem lhes deixar os pés tocarem o chão.
Vi minha tia.
Ela não se deixava subjugar. Os brigadistas forçavam sua cabeça para baixo, mas, tão logo relaxavam a mão, ela reerguia a cabeça com toda a força. Sua resistência só acarretou uma repressão ainda mais violenta. No final, ela apanhou até ficar estendida de bruços no chão. Um brigadista colocou um pé sobre suas costas. Alguém pulou para cima do tablado e começou a gritar slogans, mas lá embaixo pouca gente acompanhou. Sem graça, a pessoa desceu cabisbaixa. Nesse momento, um choro estridente irrompeu da multidão. Era minha mãe: “Pobre irmãzinha, que sina a sua… Ah, corja desalmada!”.
Lábio Superior mandou tirarem os “monstros e demônios” do tablado, só minha tia continuou lá. O brigadista continuava com um pé sobre ela, numa pose corajosa e destemida — era a ilustração de um slogan popular da época: derrubar o inimigo de classe e pisá-lo. Minha tia permanecia imóvel, eu temia que estivesse morta. Já não se ouvia o choro da minha mãe, eu temia que ela também estivesse morta.
Os “monstros e demônios” retirados do tablado foram reunidos sob o grande álamo, onde eram vigiados por brigadistas armados com espingardas. Sentados no chão, de cabeça baixa, pareciam um grupo de estátuas de barro. Huang Qiuya, sentada num canto, inclinou a cabeça para trás e apoiou-a no muro. Com os cabelos raspados pela metade, no chamado “corte yin-yang”, era uma visão medonha. Ouvi falar que, no início dos movimentos, minha tia esteve entre os iniciadores da “Equipe de Combate Bethune” dentro do sistema de saúde pública. Fanática ao extremo, não demonstrou nenhuma piedade pelo antigo diretor do hospital, que um dia a protegera. No tocante a Huang Qiuya então, foi ainda mais implacável. Entendo que, na realidade, minha tia fazia isso para se proteger, como alguém que anda no breu da noite cantando em voz alta porque no fundo está com medo. O velho diretor, que era uma pessoa boníssima, não aguentou a humilhação e se matou jogando-se num poço. Huang Qiuya, instigada ou coagida pelos opositores da minha tia, revelou as provas do relacionamento secreto entre a tia e o desertor Wang Xiaoti. Huang Qiuya disse que Wan Coração muitas vezes gritava o nome de Wang Xiaoti durante o sono. Segundo ela, certa noite em que estava de plantão, voltou ao dormitório para buscar algo e descobriu que Coração não estava. Ela ficou pensando aonde poderia ter ido uma mulher solteira no meio da noite. Enquanto matutava, viu três sinalizadores luminosos vermelhos subirem do bosque de salgueiros à beira do rio Jiao. Em seguida, escutou um rugido de avião vindo do céu. Segundo ela, passado algum tempo, um vulto se esgueirou para dentro do dormitório, pela estatura era justamente Wan Coração. Ela afirmou ter relatado logo em seguida o ocorrido ao diretor do hospital, mas aquele seguidor da via capitalista, mancomunado com Wan Coração, abafou o caso. Disse também que Wan Coração era, sem sombra de dúvida, espiã do Partido Nacionalista. Isso já era suficiente para acabar com a vida da minha tia, mas ela fez mais uma denúncia: minha tia teria ido várias vezes à vila para se deitar com Yang Lin, seguidor da via capitalista, e engravidou dele. Ela mesma fez o aborto. As massas possuem uma criatividade riquíssima e, ao mesmo tempo, uma imaginação sinistra. As denúncias de Huang Qiuya contra minha tia satisfaziam plenamente às necessidades psicológicas das pessoas. Some-se a isso o fato de minha tia se recusar a admitir a culpa e sempre oferecer resistência, e cada assembleia de denúncia se tornava mais vibrante e animada. Era o festival de horrores da nossa aldeia.
Eu estava acima de Huang Qiuya, e olhava para aquela cabeça esquisita, sentindo ódio e pena, mais um tanto de confusão, e medo, e tristeza. Tirei uma telha e mirei a cabeça raspada pela metade. Era só abrir minha mão para a telha se espatifar no cocuruto dela. Mas hesitei por um bom tempo e acabei desistindo… Muitos anos mais tarde, contei isso a minha tia. “Ainda bem que você não soltou a telha”, ela disse, “só agravaria minha culpa.” Depois de velha, a tia carregava um sentimento de culpa, não uma culpa qualquer, mas a culpa de algum delito gravíssimo, irredimível. Acho que minha tia se recrimina demais. Naquela época, qualquer um agiria da mesma forma, ninguém se sairia melhor. Mas ela responde, entristecida: “Você não entende…”.
Carregaram Yang Lin para cima do tablado, retiraram o pé que pisava as costas da minha tia. Puxaram-na para cima e a colocaram ao lado de Yang Lin, de cabeça baixa, o corpo curvado para a frente e os braços esticados para trás, como o caça J-5 que Wang Xiaoti pilotava. Fiquei olhando para aquele cabeção liso de Yang Lin. Seis meses antes, esse homem ainda era inacessível como um deus, torcíamos para que ele se casasse com a tia, apesar de ser vinte anos mais velho que ela, embora ela fosse substituir sua esposa falecida. Ele era secretário do Partido no distrito, um funcionário de alto nível que ganhava mais de cem iuanes por mês, uma grande autoridade que visitava as aldeias num jipe verde-oliva, seguido por assessores e guarda-costas! Muitos anos depois, minha tia contou que na verdade só o tinha visto uma vez. Não gostou de sua barriga, grande como a de uma grávida de oito meses, e odiou seu bafo de alho — no fundo ele era um caipira —, mas, mesmo assim, estava disposta a se casar com ele. “Por vocês, por esta família, eu me casaria com ele.” Segundo ela, no dia seguinte a seu encontro com Yang Lin na vila, o secretário da comuna, Qin Shan, foi fazer uma inspeção no hospital. Acompanhado do diretor, ele foi à seção de ginecologia e obstetrícia, cheio de sorrisos e lisonjas, um verdadeiro lacaio. Antes disso, Qin Shan era só presunção e empáfia, mas num piscar de olhos estava transformado, minha tia ficou muito impressionada. “Também por causa desses esnobes, eu me casaria com ele”, disse minha tia, “se não fosse a Revolução Cultural…”
Uma guarda vermelha atarracada subiu ao tablado com dois sapatos velhos na mão. Pendurou um no pescoço de Yang Lin, outro no da minha tia. Minha tia disse depois que até podia suportar ser chamada de contrarrevolucionária, espiã, mas não tolerava, em hipótese alguma, o tratamento de “sapato velho”, ou “vadia”. Isso não tinha o menor fundamento, era uma humilhação atroz. Ela tirou imediatamente o sapato do pescoço e o jogou com força para longe de si. O sapato velho, como se tivesse olhos, pousou bem na frente de Huang Qiuya.
A guarda vermelha deu um salto e agarrou minha tia pelos cabelos, puxava-a para baixo com força. Minha tia forçou a cabeça para cima e ficou num cabo de guerra com a moça. “Tia, abaixe a cabeça senão ela vai arrancar seu cabelo junto com o couro! Essa gorda tem pelo menos cinquenta quilos e já está pendurada no seu corpo, agarrada ao seu cabelo.” Minha tia sacudiu a cabeça bruscamente, como um cavalo bravo que balança a crina — a moça caiu no chão com duas mechas de cabelo nas mãos. O sangue escorria pela cabeça de minha tia — ainda hoje dá para ver duas cicatrizes do tamanho de uma moeda — até a testa e as orelhas. Mas seu corpo se manteve ereto. A plateia estava em total silêncio, um burro que puxava uma carroça esticou o pescoço e zurrou bem alto. Não ouvir o choro da minha mãe me deixava angustiado.
Nesse momento, Huang Qiuya pegou o sapato caído na frente dela e subiu trotando no tablado. Acho que ela não sabia o que tinha acontecido lá em cima, se soubesse, jamais faria isso. Ela congelou ao ver a cena. Jogou o sapato no chão, murmurou alguma coisa e bateu em retirada. Lábio Superior entrou em cena a passos largos, gritava com voz severa: “Wan Coração, quanta agressividade!”. Ele meneou o braço, tentou ele mesmo puxar slogans, com a intenção de mobilizar o público e sair do impasse, mas ninguém o seguiu. A garota gorda jogou os tufos de cabelo no chão, como se largasse duas cobras, abriu o berreiro e desceu do tablado aos tropeços.
Parada aí!”, ordenou Lábio Superior a Huang Qiuya, que descia do tablado de costas. Apontando para o sapato no chão, ele disse: “Você, você vai pendurar isso nela!”.
O sangue escorria pela orelha da minha tia até o pescoço, atravessava a sobrancelha e pingava no olho. Ela levantou a mão para limpar o rosto.
Huang Qiuya pegou do chão o sapato gasto e caminhou trêmula até minha tia. Assim que levantou a cabeça e viu o rosto dela, soltou um grito esquisito e caiu para trás, babando.
Alguns guardas vermelhos subiram e arrastaram-na para baixo como quem arrasta um cachorro morto.
Xiao Lábio Superior agarrou Yang Lin pelo colarinho e levantou-o, para que ele endireitasse a cintura.
Yang Lin tinha os dois braços caídos, as pernas dobradas e o corpo amolecido. Se Lábio Superior o soltasse, cairia no tablado.
Wan Coração teima em resistir, está num beco sem saída!”, disse Xiao Lábio Superior. Se ela não quer confessar, confesse você. Haverá clemência para quem confessar e rigor para quem resistir! Confesse, vocês já cometeram adultério?”
Yang Lin ficou em silêncio.
Lábio Superior acenou, um homem parrudo subiu e, com as mãos, aplicou mais de uma dúzia de bofetadas em Yang Lin. O som era tão nítido que alcançava o topo das árvores. Umas coisas brancas saltaram e caíram no tablado. Acho que eram dentes. O corpo de Yang Lin balançava, visivelmente a ponto de cair. O homem parrudo o segurou pelo colarinho.
Fale, cometeram ou não?!”
Sim…”
Quantas vezes?”
Uma vez…”
Fale a verdade!”
Duas vezes…”
Não está dizendo a verdade!”
Três… Quatro… Dez… Muitas vezes… Nem me lembro mais…”
Minha tia soltou um guincho de arrepiar os ossos e pulou sobre Yang Lin, como uma leoa atacando a presa. Yang Lin caiu paralisado no tablado. Minha tia arranhava o rosto dele desesperada… Só depois de muito esforço alguns brigadistas corpulentos conseguiram tirá-la de cima dele.
Nesse momento, ouviu-se um estalido estranho na lagoa, a camada de gelo rachou e cedeu, muitas pessoas caíram na água gelada.

Mo Yan, in As rãs

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