quarta-feira, 4 de outubro de 2023

As rãs | 14.


Quando tivemos a onda de nascimentos dos “bebês batata-doce”, o chefe de família que ia cadastrar o filho na comuna recebia cupons de racionamento que lhe davam direito a cinco metros e meio de tecido e um litro de óleo de soja. Quem tinha gêmeos ganhava o dobro. Ao ver aquele óleo dourado e acariciar os cupons com cheiro de tinta, esses pais de família ficavam de olhos úmidos e alma agradecida. Como é boa esta nova sociedade! Até nos dão coisas quando temos filhos. Minha mãe dizia: “O país carece de pessoas, o país precisa de mais mão de obra, o país valoriza as pessoas”.
Enquanto as massas populares estavam imbuídas desse sentimento de gratidão, os cidadãos tomaram secretamente a decisão de ter mais filhos a fim de retribuir o favor do Estado. A mulher de Xiao Lábio Superior, o zelador do armazém de grãos — mãe do meu colega Xiao Lábio Inferior —, já tinha dado três irmãzinhas ao meu colega. A mais novinha ainda nem tinha desmamado e a barriga da mãe já ia crescendo outra vez. Quando eu voltava com a vaca do pasto, sempre via Xiao Lábio Superior atravessar a pontezinha numa bicicleta surrada. Era tão corpulento que a bicicleta mal suportava o fardo e guinchava. Sempre tinha alguém da aldeia para caçoar dele: “Velho Xiao, que idade você tem? Nunca descansa à noite?”. Ele respondia rindo: “Não posso descansar, não devo poupar esforços para produzir mais gente para o país!”.
No final de 1965, o rápido crescimento populacional causou inquietação nos altos escalões. Com isso, veio a primeira grande onda de planejamento familiar desde a fundação da Nova China. O governo lançou o seguinte slogan: “Um não é pouco; dois é bom; três é demais”. Quando a equipe de cinema do distrito vinha passar filmes, mostravam slides antes de cada sessão para divulgar o controle de natalidade. Cada vez que aparecia na tela uma daquelas ilustrações exageradas de órgãos genitais do homem ou da mulher, a plateia, no escuro, desandava a dar gritinhos e gargalhadas. Nós, os adolescentes, aderíamos à bagunça, enquanto muitos jovens, homens e mulheres, se davam as mãos sem que ninguém visse. Essas propagandas de contracepção serviam, na realidade, como incentivo à reprodução, como afrodisíaco. O grupo teatral do distrito criou mais de uma dezena de equipes para encenar, de aldeia em aldeia, uma pequena peça intitulada Metade do céu, que combatia a crença de que o homem é superior à mulher.
Na época, minha tia já era diretora da seção de ginecologia e obstetrícia do posto de saúde da comuna e assumia, ao mesmo tempo, a vice-chefia da coordenação local de planejamento familiar. O chefe era o secretário do Partido na comuna, Qin Shan, mas ele só ocupava o cargo nominalmente, não cuidava de nada. Na prática, minha tia tinha o comando: era ela quem organizava e executava os trabalhos de controle de natalidade na nossa comuna.
Naquela altura, minha tia já tinha engordado um pouco e seus dentes, antes brancos de dar inveja, amarelaram por falta de tempo para escovar. Sua voz estava rouca, meio masculina. Sempre escutávamos seus discursos pelo alto-falante.
Ela normalmente começava com as seguintes frases: “Bate o gongo, bate bem, cada um vende o que tem. Cada qual vende o seu peixe, vou vender o meu também. Hoje quero falar de planejamento familiar…”.
Naquele período, ela perdeu parte de seu prestígio em meio à população. Até mesmo as mulheres de nossa aldeia que um dia se beneficiaram de seus favores começaram a falar mal dela.
Embora a tia não poupasse esforços para implementar o planejamento familiar, osresultados eram insignificantes, os moradores locais não apoiavam a causa. Quando o grupo teatral veio se apresentar em nossa aldeia, a atriz principal cantou no palco: “É chegada uma nova era, homens e mulheres são iguais”. Na plateia, Wang Pé, pai de Wang Fígado, estourou: “Conversa fiada! É tudo igual? Quem falou que é tudo igual?”. Na frente do tablado, o povo se juntou em seu apoio, houve confusão, tumulto, gritaria. Tijolos e telhas foram atirados ao palco, os atores bateram em retirada, humilhados. Naquele dia, Wang Pé tinha bebido meio litro de aguardente. Sob efeito do álcool, sua estupidez aflorou. Ele pulou para cima do tablado, cambaleando e gesticulando, e começou a discursar: “Vocês que mandam no céu e na terra, agora também vão mandar em quem quer ter filho? Quero ver vocês acharem uma corda para costurar a mulher naquele lugar”. A plateia caiu na gargalhada. Instigado, Wang Pé catou uma telha do palco, mirou o lampião a gás que lançava uma luz ofuscante pendurado na trave em frente à cortina e atirou com toda a força. A luz se apagou na hora, palco e plateia eram um breu só. Por causa disso, Wang Pé passou duas semanas na cadeia. Depois de liberado, ainda não se dava por vencido e dizia furioso a quem quer que encontrasse: “Quero ver quem tem coragem de cortar meu pinto!”.
Há alguns anos, quando minha tia voltava para casa, chegava cercada de gente; mas agora, nas raras vezes em que aparece, as pessoas a evitam com frieza. Minha mãe tentou aconselhá-la: “Cunhada, esse negócio de planejamento familiar, foi você que inventou ou foi seu superior que mandou fazer?”.
Como pode pensar que fui eu que ‘inventei’?”, disse minha tia, indignada. “É um apelo do Partido, uma instrução do presidente Mao, uma política nacional. O presidente Mao disse: ‘A humanidade deve exercer o autocontrole e crescer de forma planejada’.”
Minha mãe abanou a cabeça: “Desde a Antiguidade até hoje, pôr filho no mundo é a ordem natural das coisas. Na dinastia Han, o imperador baixou um decreto mandando todas as mulheres se casarem assim que completassem treze anos de idade, do contrário, o pai ou o irmão seriam chamados a prestar contas. Se a mulher não tiver filhos, onde o país vai recrutar soldados? Todo dia anunciam que os americanos vêm nos atacar, todo dia falam de libertar Taiwan, mas, se não deixarem a mulher ter filhos, de onde virão os soldados? E, sem soldados, quem vai enfrentar a invasão americana? Quem vai libertar Taiwan?”.
Cunhada, não quero mais ouvir essas frases feitas”, interrompeu minha tia. “Não acha que o presidente Mao é mais sensato que você? Foi ele quem disse: ‘A população deve ser controlada. Se continuar sem organização nem disciplina, a humanidade vai acabar antes da hora!’.”
Mas o presidente Mao disse também: ‘Quanto mais gente, maior a força; quanto mais gente, maior o poder de fazer as coisas; gente é tesouro vivo; o mundo é feito de gente!’. E disse mais!”, continuou minha mãe. “‘Não deixar a chuva cair é tão errado quanto proibir a mulher de ter filhos’.”
Minha tia não sabia se ria ou chorava: “Cunhada, você está deturpando citações do presidente Mao. Antigamente cortavam a cabeça de quem distorcia um decreto imperial. Nunca dissemos que vamos proibir as pessoas de terem filhos, vamos incentivar a terem menos filhos, e de maneira planejada”.
Mas é o destino que decide quantos filhos uma pessoa vai ter na vida”, disse minha mãe. “Quem precisa de vocês para planejar? Vocês são como um cego que acende a luz: puro desperdício de vela.”
Tal como previu minha mãe, a despeito de todos os esforços, minha tia e suas colegas só desperdiçaram recursos e ainda caíram na boca do povo. No início, distribuíam preservativos gratuitos para que as funcionárias de cada aldeia distribuíssem às mulheres em idade fértil, e pediam que exigissem dos maridos que usassem durante a relação. Mas aqueles preservativos ou eram jogados no chiqueiro, ou eram inflados como balões e, pintados de várias cores, viravam brinquedo de criança. Minha tia e suas colegas também foram bater de porta em porta para distribuir contraceptivos femininos, mas as mulheres se recusavam a tomar a pílula, com medo dos efeitos colaterais. Mesmo quando obrigadas a engolir o medicamento na frente delas, era só virarem as costas que as mulheres enfiavam um dedo ou palito na garganta e vomitavam o comprimido. Foi então que surgiu a ideia de recorrer à vasectomia.
Naquela época, corriam na aldeia boatos de que essa técnica tinha sido inventada por minha tia e Huang Qiuya. Diziam que Huang Qiuya contribuiu com a teoria e minha tia com a prática clínica. Xiao Lábio Inferior, sério, nos contou: “Aquelas duas são umas esquisitonas que nunca se casaram e sentem inveja, sentem ódio mesmo, toda vez que veem casais juntinhos, por isso bolaram esse plano para acabar com a família. Primeiro, fizeram experiências com leitões, depois com macacos machos e finalmente com dez presidiários condenados à morte. O teste deu certo e os dez presidiários tiveram sua pena convertida em prisão perpétua”. Naturalmente, não demorou nada para que a gente percebesse que ele estava dizendo um monte de asneiras.
A voz sonora de minha tia era ouvida com frequência nos alto-falantes: “Atenção, diretores das brigadas de produção! Atenção, diretores das brigadas de produção! Conforme a oitava reunião da Coordenação de Planejamento Familiar da Comuna Popular, todo homem cuja mulher teve três ou mais filhos deve ir ao posto de saúde para fazer a vasectomia. Após a cirurgia, receberá vinte iuanes de ajuda de custo para alimentação e uma semana de folga com os pontos de trabalho contados normalmente…”.
Ao ouvir o anúncio, os homens se reuniam para resmungar: “Que merda, já vi castrar porco, capar boi, burro e cavalo, mas onde já se viu capar homem? Ninguém aqui quer trabalhar de eunuco em palácio de imperador, querem castrar a gente para quê?”. Quando os funcionários do planejamento familiar explicavam que a cirurgia era só uma ligadura que… eles arregalavam os olhos e retorquiam: “Agora vocês falam bonito, mas depois que a gente deitar na mesa de operação e tomar a anestesia, quem garante que elas não vão cortar fora nossas bolas e até nosso pau? Aí sim, todo o mundo aqui vai ter que mijar agachado igual mulher”.
Apesar de extremamente salutar para as mulheres, a vasectomia, essa operação tão simples e de raríssimas sequelas, encontrou enormes obstáculos. Minha tia e suas colegas prepararam tudo no posto de saúde, mas ninguém apareceu. A Direção Distrital de Planejamento Familiar telefonava todos os dias para cobrar o relatório com os números e andava extremamente insatisfeita com o trabalho da minha tia. Numa reunião extraordinária, o comitê do Partido na comuna aprovou duas resoluções: primeiro, a vasectomia deveria começar pelos dirigentes e depois ser estendida aos funcionários em geral e aos trabalhadores comuns. Nas aldeias, começaria com a chefia da equipe de produção, estendendo-se em seguida à população em geral. De acordo com a segunda resolução, quem resistisse à cirurgia, iniciasse ou espalhasse boatos estaria sujeito às medidas da ditadura do proletariado; quem atendesse aos critérios, mas se recusasse a fazer a operação, seria suspenso do trabalho pela equipe de produção, se continuasse a desobedecer, teria sua cota de racionamento diminuída. Caso ainda resistissem, os funcionários seriam afastados do cargo; os trabalhadores seriam demitidos da função; os membros do Partido seriam expulsos.
O próprio secretário do Partido na comuna, Qin Shan, fez um discurso no rádio para dizer que o planejamento familiar era um assunto de grande importância, que dizia respeito à economia nacional e ao bem-estar da população. Todos os órgãos públicos e as equipes diretamente subordinadas à Comuna deviam lhe dar a mais alta prioridade. Os funcionários e membros do Partido que atendessem aos critérios deviam tomar a iniciativa e servir de exemplo para as massas populares. A fala de Qin Shan de repente adquiriu um tom coloquial: “Camaradas, vamos falar de mim, por exemplo, minha mulher já fez a cirurgia de retirada do útero por causa de uma doença, mesmo assim, para mostrar à população que não precisa ter medo da vasectomia, resolvi fazer a operação no posto de saúde amanhã de manhã”.
Em seu discurso, o secretário Qin também solicitou a cooperação ativa da Liga da Juventude Comunista, da Federação das Mulheres e das escolas na campanha de divulgação, a fim de produzir uma poderosa corrente em prol da vasectomia. Como em todos os movimentos precedentes, o professor Xue, o principal literato da nossa escola, redigiu uns versinhos que decoramos com a maior rapidez. Depois, em grupos de quatro, segurando alto-falantes de papelão ou de folha de metal enrolada, subíamos nos telhados e nas árvores e dali gritávamos: “Camaradas da comuna, vamos lá sem pânico nem inquietação! Vasectomia é coisa bem simples, nada a ver com castração! Uma operaçãozinha de nada, em quinze minutos está terminada! Sem sangue nem suor, o camarada sai pronto para outra jornada!”.
Segundo minha tia, naquela primavera atípica, foram feitas seiscentas e quarenta e oito vasectomias em toda a comuna. Ela mesma fez trezentas e dez operações. Na verdade, disse ela, bastaria explicar a ideia direito, definir bem a política, fazer os diretores darem o exemplo e garantir a implementação em todos os níveis que a população reagiria de forma compreensiva e racional. Nas numerosas cirurgias que ela fez, a grande maioria dos pacientes foi trazida por dirigentes da aldeia ou diretores das unidades de trabalho. Encrenqueiros mesmo, que precisaram de medidas repressoras, só houve dois. Um foi Wang Pé, o carroceiro, o outro foi Xiao Lábio Superior, o zelador do armazém de grãos.
Confiante no seu bom histórico familiar, Wang Pé era reacionário e agressivo. Depois de ser liberado da detenção, saiu falando bobagens. Dizia que a faca entraria branca e sairia vermelha de quem viesse obrigá-lo a fazer a tal operação. Meu amigo Wang Fígado, que estava gostando da Leoazinha, pendia emocionalmente para o lado da assistente da minha tia. Ele tomou a iniciativa de convencer o pai a fazer a vasectomia. Como resultado, ganhou dois tabefes. Fígado saiu de casa correndo, o pai foi atrás dele com um chicote na mão. Chegaram ao açude na entrada da aldeia e ficaram ali batendo boca, cada qual de um lado da água. Wang Pé: “Seu filho de um jumento, como se atreve a mandar seu pai fazer a operação!”. Wang Fígado: “Se você diz que sou filho de um jumento, então sou filho de jumento mesmo”. Pé refletiu por um instante, percebeu que xingar o filho era o mesmo que xingar a si próprio e começou a perseguir o rapaz em volta do açude. Pai e filho ficaram rodando e rodando como quem empurra um moinho. Juntou muita gente em volta para botar mais lenha na fogueira, queriam ver o circo pegar fogo, a risadaria tomou conta.
Wang Fígado roubou um sabre de casa e entregou-o ao secretário Yuan Rosto. Contou que era a arma letal que o pai tinha preparado. Disse ainda que o pai prometera usá-la para cortar ao meio quem o obrigasse a fazer a cirurgia. Yuan, que não queria ser acusado de omissão, pegou o sabre e o levou à comuna, onde reportou tudo ao secretário Qin Shan e a minha tia. Furioso, Qin bateu na mesa e disse: “Reacionário! Sabotar o planejamento familiar é um ato contrarrevolucionário!”. Minha tia disse: “Se não dermos um jeito nesse Wang Pé, vai ser difícil fazermos qualquer avanço”. Yuan Rosto concordou e disse que os homens que deviam fazer essa cirurgia estavam todos se espelhando em Wang Pé. O secretário Qin decidiu: “Vamos deter esse mau exemplo”.
O policial da comuna, o velho Ning, veio com uma pistola Mauser pendurada na cintura para dar apoio moral. O secretário Yuan chegou com a diretora de assuntos da mulher, o capitão da milícia e quatro milicianos para invadir a casa de Wang Pé.
A esposa de Pé amamentava uma criança no colo enquanto trançava palha à sombra de uma árvore. Assim que percebeu o jeito hostil dos visitantes, largou o trabalho, sentou-se no chão e caiu em prantos.
Em pé debaixo do beiral, Wang Fígado não disse uma palavra.
Sentada no batente da sala, Wang Vesícula examinava seu rostinho delicado num pequeno espelho que segurava na mão.
Saia daí, Wang Pé”, gritou Yuan Rosto. “Se não sair por bem, sairá por mal. O policial Ning está aqui. Você pode até escapar hoje, mas amanhã não escapa. Seja homem e venha resolver isso logo.”
A diretora de assuntos da mulher disse à esposa de Pé: “Fang Lianhua, pare com essa choradeira. Fale para seu marido sair logo”.
O interior da casa continuou em perfeito silêncio. Yuan Rosto olhou para o policial Ning, que fez um sinal com a mão. Quatro milicianos invadiram a casa segurando uma corda.
Nesse momento, Wang Fígado, que continuava debaixo do beiral, piscou para o policial e torceu a boca para o lado do chiqueiro no canto do muro.
Embora tivesse uma perna mais curta que a outra, o policial Ning se movia com agilidade. Em poucas e largas passadas alcançou a entrada do chiqueiro. Sacou a pistola e ordenou: “Wang Pé, saia daí!”.
Wang Pé saiu com a cabeça coberta de teias de aranha. Os quatro milicianos o cercaram com a corda.
Pé limpou o suor do rosto e disse, enfurecido: “Ning, seu coxo, para que essa gritaria toda? Acha que me mete medo só porque está com esse pedaço de sucata na mão?”.
Não vim aqui para lhe meter medo”, respondeu Velho Ning, “venha comigo sem resistir e vai ficar tudo bem.”
E o que acontece se eu não obedecer? Vai ter coragem de atirar?” Wang Pé apontou o dedo para o meio de suas pernas e disse: “Então acerte aqui se for capaz. É melhor ficar aleijado pela bala do seu revólver do que pela faca daquelas tias”.
A diretora de assuntos da mulher disse: “Wang Pé, deixe de ser impertinente, a vasectomia não passa de uma atadura dos canais…”.
Você é que merece que costurem esse seu negócio!”, gritou Wang Pé desaforado, apontando para a virilha da diretora.
O policial Ning balançou a arma na mão e comandou: “Amarrem-no já”.
Quero ver quem tem coragem!” Wang Pé virou-se, pegou uma pá e ergueu-a no ar. Com os olhos faiscando, ameaçou: “Arranco a cabeça de quem chegar perto!”.
Nesse momento, Wang Vesícula, aquela miniatura de menina, levantou-se com seu espelhinho na mão. Na época já tinha treze anos, mas media apenas setenta centímetros de altura. Apesar da baixa estatura, seu corpo era bem-proporcionado, parecia uma diminuta beldade de Lilliput. Ela usou o espelho para jogar um feixe de luz no rosto de Wang Pé e deixou escapar um riso singelo.
Aproveitando que Wang Pé se ofuscava sob a luz forte, os quatro milicianos caíram sobre ele, tomaram-lhe a pá e seguraram seus braços atrás das costas.
Enquanto os milicianos tentavam amarrar seus braços com a corda, ele desatou a chorar alto. Foi um choro tão sentido que entristeceu as pessoas que assistiam à cena encarapitadas no muro e apinhadas no portão da casa. Com a corda pronta, os milicianos ficaram sem saber o que fazer.
Yuan Rosto disse: “Wang Pé, você é homem ou não é? Como pode se apavorar desse jeito por causa de uma operaçãozinha? Eu fui o primeiro a fazer para dar o exemplo e não me afetou em nada. Se não acredita, mande sua mulher perguntar à minha!”.
Não precisa falar mais”, disse Wang Pé chorando, “já chega, vou com vocês.”
Nas palavras de minha tia, o imprestável do Xiao Lábio Superior era um exemplo de mau funcionário nos órgãos subordinados à comuna. Meteu-se a turrão só porque tinha carregado umas macas no hospital secreto do Exército da Oitava Rota. Mas foi só o Comitê do Partido na comuna deliberar se ele devia ser exonerado e mandado de volta para a lavoura, que ele montou em sua bicicleta velha e correu para o posto de saúde. Minha tia contou que Xiao a designou especialmente para fazer a cirurgia nele. Era um descarado, sem-vergonha, boca-suja. Antes de ir para a mesa de operação, ainda ficou importunando a Leoazinha com perguntas: “Moça, não consigo entender uma coisa, dizem que o excesso de esperma sai sozinho. Mas, se vocês amarrarem meus canais de esperma, por onde vai sair o excesso? Não vai fazer minha barriga inchar até estourar?”.
Leoazinha me olhou totalmente ruborizada. Eu disse: ‘Preparar a pele!’.
Durante o preparo da pele para a cirurgia, ele teve uma ereção. Leoazinha, que nunca tinha passado por uma situação dessas, largou o bisturi e se afastou para o lado. Então eu disse: ‘Que tal se concentrar em pensamentos mais sadios?’. Ele respondeu no maior cinismo: ‘Meus pensamentos são bem sadios, mas se ele quer ficar duro, o que é que eu posso fazer?’. ‘Pois muito bem’, a tia pegou um martelo de borracha, mirou bem e martelou sem cerimônia. A coisa murchou de imediato.
Juro por tudo que é mais sagrado”, contou a tia, “que fiz as cirurgias de Wang Pé e Xiao Lábio Superior com todo o cuidado e consegui um resultado excelente. Mas, depois da operação, Wang Pé deu para andar encurvado, dizia que eu mexi em algum nervo dele; Xiao Lábio Superior toda hora vinha ao posto de saúde para criar caso e ainda compareceu várias vezes ao distrito para me acusar, perante as autoridades, de ter comprometido sua capacidade sexual… Sobre esses dois sujeitos”, continuou minha tia, “o problema de Wang Pé provavelmente era psicológico, mas aquele Xiao Lábio Superior só queria azucrinar mesmo. Durante a Grande Revolução Cultural, quando foi chefe dos Guardas Vermelhos, sabe-se lá quantas moças ele desonrou. Se não tivesse feito a ligadura, ele poderia ter algum receio, algum medo de engravidar uma moça e a história acabar mal. Mas, com a vasectomia feita, ele não teve escrúpulos!”

Mo Yan, in As rãs

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