quinta-feira, 14 de setembro de 2023

RELATO 1 | Kosuke Sawada


Há quanto tempo!”
O e-mail começava assim.
O remetente era Satoru Miyawaki, um amigo de infância que tinha se mudado para longe quando ainda eram pequenos. Ele se mudou várias outras vezes, mas os dois sempre mantiveram contato, e assim a amizade perdurava, mesmo agora, com mais de trinta anos. Podiam passar anos sem se ver, mas quando se encontravam a conversa fluía como se tivessem se visto no dia anterior. Satoru era desse tipo de amigo.
Desculpa pedir assim em cima da hora, mas será que você podia adotar meu gato?”
Segundo a mensagem, aquele gato era seu xodó, mas, por questões incontornáveis, Satoru não ia poder ficar com ele e estava procurando alguém que o adotasse.
Não havia explicação sobre os tais motivos incontornáveis. “Se você achar que pode ficar com ele”, continuava o texto do e-mail, “levo-o aí para apresentar vocês dois.”
Vinham duas fotos anexadas, de um gato branco com duas manchinhas escuras na cabeça. Kosuke soltou uma exclamação de espanto.
É igualzinho ao Hachi!
O gato da foto era muito parecido com aquele que tinham resgatado.
Kosuke desceu até a segunda foto: um close do rabo torto em forma de 7. Ele se lembrou de ter ouvido em algum lugar que gatos com rabo torto dão sorte.
Quem foi que disse isso? Refletiu por um instante, para logo em seguida deixar escapar um suspiro. A esposa. A esposa, que fora embora para a casa dos pais e que ele não sabia quando voltaria de lá.
A cada dia ele estava mais convencido de que ela nunca voltaria.
Kosuke se perguntou, em vão, se teria sido diferente se os dois tivessem um gato assim, de rabo torto.
Com um gato daqueles zanzando pela casa, recolhendo com o gancho do rabo as pequenas felicidades do dia a dia, quem sabe eles não conseguissem levar uma vida alegre, mesmo sem filhos?
Talvez eu possa ficar com ele, pensou. O gato era bonitinho, parecia Hachi, de rabo torto. Além do mais, seria bom ver Satoru.
Kosuke enviou uma mensagem à esposa, contando que um amigo tinha lhe pedido que adotasse seu gato e perguntando o que ela achava. A resposta: “Faça como quiser”. Considerando que até então todas as mensagens dele tinham sido sumariamente ignoradas, a grosseria até que era um bom sinal.
A esposa adorava gatos. Se ele adotasse o de Satoru, talvez conseguisse atraí-la com um convite para vir conhecê-lo. Se chorasse as pitangas dizendo que não sabia cuidar direito do novo bichano, era capaz até que ela voltasse, não por ele, mas por compaixão ao animalzinho.
Ih, mas meu pai não gosta de gatos…
Ao perceber que estava se preocupando com o humor do pai, Kosuke deu um resmungo de irritação.
É por causa desse tipo de coisa que nem minha esposa me quer. Agora o dono do estúdio sou eu. Não tenho que ficar esquentando a cabeça com o que meu pai acha ou deixa de achar.
A revolta contra o pai brotou em seu peito enquanto ele pensava isso. Incitado pelo sentimento, Kosuke Sawada respondeu que sim, podia ficar com o gato do amigo.
Satoru Miyawaki veio visitá-lo já na semana seguinte, no dia em que o estúdio não abria. Chegou em uma van prata, trazendo consigo seu tão adorado gato.

Ao ouvir o ruído do motor, Kosuke saiu à rua e viu Satoru entrando com a van no estacionamento do estúdio.
Kosuke! Há quanto tempo! — Satoru largou o volante e ficou acenando pela janela aberta.
Estacione logo de uma vez! — apressou Kosuke, sorrindo.
Fazia uns três anos que não se viam, mas Satoru continuava bem-humorado como sempre. Não mudara nada desde os tempos de criança.
Você podia ter parado na primeira vaga. Nessa aí é ruim de manobrar.
Havia três vagas diante do estúdio, e Satoru estava estacionando na mais próxima da entrada. Ali, plantas e objetos ficavam no caminho, então os clientes geralmente preferiam as outras. O carro dos moradores ficava nos fundos da casa, em uma vaga não asfaltada.
É que aí vai atrapalhar se chegar algum cliente…
Hoje não abrimos, esqueceu?
Naquele estúdio fotográfico, que Kosuke herdara do pai, a folga semanal era às quartas-feiras. Kosuke havia proposto se encontrarem em um sábado ou domingo, pois Satoru trabalhava em uma empresa privada, mas ele fez questão de vir no dia de folga de Kosuke. Disse que já estava pedindo um favor e não queria dar mais trabalho.
Ah, é verdade! — disse Satoru, descendo da van e pegando a caixa de transporte no banco de trás.
Nana está aí dentro?
Está! Você viu as fotos? Ele se chama Nana por causa do rabo em forma de 7. Mandei bem nesse nome, hein?
Não sei se eu diria que “mandou bem”… Você tem esse gosto por nomes literais, desde Hachi.
Kosuke o convidou a entrar e quis ver como era Nana, mas o gato não queria sair da caixa por nada. Só chiava lá dentro, mal-humorado. Espiando o interior da caixa, Kosuke viu apenas o traseiro branco e o rabo preto e torto.
Ué, o que foi que deu em você, Nana? Naaana? — Agoniado, Satoru tentou por algum tempo convencer o gato a sair, mas não adiantou. — Desculpa, ele deve estar nervoso em uma casa desconhecida… Daqui a pouco se acalma.
Os dois resolveram deixar a caixa ali, com a portinhola aberta, enquanto colocavam o papo em dia.
O que quer beber? Um chá ou café, já que está dirigindo?
Pode ser um café.
Kosuke serviu duas xícaras. Satoru pegou a sua e perguntou, casualmente:
E sua esposa?
Por um segundo, Kosuke pensou em disfarçar, mas nenhuma desculpa lhe veio à mente.
Voltou pra a casa dos pais.
Ah…
Satoru ficou com a expressão culpada de quem não queria ter cutucado uma ferida.
Mas então… Tudo bem você decidir sozinho sobre Nana? Ela não vai achar ruim quando voltar?
Pelo contrário, é capaz de ela voltar só por causa do gato, se eu ficar com ele.
Hum, mas cada um tem suas preferências, em se tratando de gatos…
Eu encaminhei as fotos que você me mandou, e ela respondeu assim: “Faça como quiser”.
Isso quer dizer que ela gostou?
Essa foi a única vez que ela me respondeu desde que foi embora.
Kosuke tinha dito em tom de brincadeira que era capaz que sua esposa voltasse por causa do gato, mas na verdade estava mesmo contando com isso.
Se ela voltar, sei que não vai expulsar o gato. Ela nunca faria isso. E se ela não voltar, eu crio Nana sozinho. De um jeito ou de outro, não tem problema.
Satoru pareceu se conformar com a resposta. Agora era a vez de Kosuke fazer perguntas.
Mas, deixando isso de lado, me diga: por que você não pode mais ficar com ele?
Ah, bom… — Satoru deu um sorriso atrapalhado e coçou a cabeça. — É que aconteceram umas coisas, e não vai dar mais.
De repente, Kosuke entendeu. Bem que ele tinha achado estranho ao saber que Satoru viria visitá-lo no meio da semana.
Demitiram você?
É, bem… A questão é que não vou mais poder ficar com Nana.
A resposta foi ambígua, mas Kosuke não quis pressioná-lo.
Enfim, aí preciso arranjar uma casa pra ele, então resolvi pedir aos amigos mais próximos.
Entendi… Que chato!
A vontade de ficar com o gato aumentou. Era uma boa ação, além de justo para Satoru.
E você, como está? Digo… vai se sair bem disso?
Vou sim, obrigado. Se eu conseguir resolver as coisas para Nana, vai ficar tudo bem.
Pelo jeito, era melhor parar por ali. Não parecia ser o caso de insistir e perguntar se ele precisava de alguma coisa.
Nossa, mas eu levei um susto quando vi as fotos! Ele é igualzinho ao Hachi!
Ao vivo parece mais ainda… — disse Satoru, espiando a caixa às suas costas. Nana não dava sinal de que ia sair de lá. — Também levei um susto quando o vi pela primeira vez! Por um instante, achei que fosse Hachi.
O jeito como ele falou, com uma risada de quem diz “é claro que não podia ser ele”, doeu um pouco em Kosuke.
No fim, o que aconteceu com Hachi?
Ele morreu quando eu estava no colégio. Meu tio que o criava me avisou, disse que foi no trânsito.
Devia ter sido uma notícia bem dolorosa para Satoru. Onde será que ele estava quando soube?
Você podia ter me contado…
Como um amigo que conhecia Hachi, Kosuke poderia pelo menos ter acompanhado Satoru em seu luto. Devia ter chorado sozinho, pensando no gato.
Desculpa, eu fiquei tão triste que não consegui pensar em mais nada…
Não precisa pedir desculpas por isso, poxa! — Kosuke ameaçou empurrar o amigo, que se esquivou brincando.
O tempo passa muito rápido, não acha? Parece que foi ontem que a gente encontrou Hachi na rua! Você lembra?
Se eu lembro?
Como é que eu ia esquecer uma coisa dessas? — perguntou Kosuke, sorrindo.
Satoru também sorriu, meio envergonhado.
[…]

Hiro Arikawa, in Relatos de um gato viajante

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