quarta-feira, 13 de setembro de 2023

O rolo compressor humano

 


Depois que o último da turma chegou ao parque Bernborough, eles conversaram, riram. Deleitaram-se. Bebiam como todo adolescente, sedentos, de boca escancarada. Cumprimentavam-se com apertos de mãos e dizendo “Oi!” e “Ei!” e “Por onde você andou, bafo de bunda?!?”. Eram virtuoses da aliteração e nem sabiam.
Assim que colocava o pé para fora do carro, a primeira tarefa de Henry era conferir se Clay já estava no vestiário. Ali embaixo da arquibancada, ele se familiarizaria com a leva do dia; havia seis garotos, todos à espera, e aconteceria o seguinte:
Sairiam pelo túnel.
Se posicionariam na pista de quatrocentos metros.
Três na linha de cem.
Dois na linha de duzentos.
E um em qualquer ponto entre a linha de trezentos e a chegada.
Por último, e mais importante, os seis fariam tudo que pudessem para impedir Clay de completar uma volta. Falar era fácil, fazer já era outra história.
Quanto ao bando que assistia, tentavam adivinhar o resultado. Cada um chutava um tempo específico, e era aí que Henry entrava. Ele cuidava das apostas com o maior prazer. Com um toquinho de giz na mão e um cronômetro antigo em volta do pescoço, estava preparado.

***

Naquele dia, aos pés da arquibancada, ele foi rodeado por vários garotos em questão de segundos. Para Henry, vários deles nem eram de verdade: não passavam de apelidos que vinham com garotos de brinde. Quanto a nós todos, exceto por dois, nossa amizade começava e terminava ali; eles sempre seriam esses imbecis. Parando para pensar, até que é legal.
E aí, Henry? — indagou Lepra.
Só dá para sentir pena de alguém com esse apelido. Cheio de perebas de todas as formas, tamanhos e cores. Aparentemente, começou a fazer manobras estúpidas de bicicleta aos oito anos e nunca parou.
Henry quase sentiu pena também, mas optou por um sorrisinho debochado.
E aí o quê?
Ele tá cansado já?
Não muito.
Ele já subiu a escadaria do prédio do Barrão? — Dessa vez, foi o Gargalo. Charlie Drayton. — E o morro até o cemitério?
Olha, ele tá no ponto, ok? Em perfeitas condições. — Henry esfregou as mãos, entusiasmado. — Temos seis feras na pista também. Até o Starkey.
Starkey! Então o filho da puta voltou, é? Isso vai render pelo menos mais uns trinta segundos, aposto.
Ah, nem vem, Peixe, o Starkey só fala. O Clay vai passar fácil por ele.
Quantos andares tem seu prédio mesmo, Barrão?
Seis — respondeu Henry —, e a chave já tá ficando enferrujada, cara. Descola uma nova pra gente, e quem sabe eu não deixo você apostar de graça?
Barrão, de cabelo crespo e rosto crespo, lambeu o beiço encrespado.
Como é que é? Tá falando sério?
Tá bom, paga metade.
Ei! — disse um cara chamado Fantasma. — Por que só o Barrão ganha aposta de graça?
Henry interrompeu antes mesmo de haver algo a ser interrompido.
O negócio é o seguinte, Fantasma, seu branquelo idiota: o Barrão tem algo a oferecer em troca. Ele é útil. — Abraçou o garoto e caminhou ao seu lado, como um mentor transmitindo conhecimentos. — Você, por outro lado, é um inútil. Entendeu?
Tá bom, Henry. — Barrão não desistiu. — Então que tal você ficar com a minha chave e me dar três apostas por conta da casa?
Por conta da casa? Virou tratante agora, foi?
De onde você tirou que “por conta da casa” é coisa de tratante? Tem nada a ver.
Henry ficou procurando quem tinha dito aquilo no meio do bando.
Foi você, Chewie, sua bola de pelos? Mal aprendeu a falar e já vem querer me dar lição? — E para o restante: — Dá pra acreditar?
Todos riram.
Boa, Henry.
E não me venham com essa de Boa-Henry.
Ei, Henry! — Barrão. Última tentativa. — E se...?
Ai, merda!
Soltou uma bola fumegante de fúria, mas era pura encenação, zero raiva. Aos dezessete, ele já tinha ultrapassado todas as pedras que a vida na família Dunbar colocara em seu caminho, e sempre sorrindo. Também tinha certo carinho pelas quartas-feiras no Bernborough e pelos garotos que ficavam assistindo atrás da cerca. Ele adorava que aquilo fosse o evento da semana, e que Clay encarasse mais como um aquecimento.
Certo, cambada, quem vai primeiro? Dez de adiantamento, ou cai fora!
Ele pulou em um banco de madeira cheio de farpas.

***

As apostas variavam de 2’17” a 3’46”, com um sonoro 2’32”. Com o toquinho de giz verde, Henry escreveu os nomes e tempos no concreto sob os pés deles, ao lado das apostas da semana anterior.
Tá bom, Pavão, já chega.
Pavão, conhecido também como Vong, ou Kurt Vongdara, estava agonizando havia um bom tempo. Tinha poucas coisas que ele levava muito a sério, mas, ao que tudo indicava, as apostas entravam na seleta lista.
Certo — disse ele. — Com o Starkey na pista, marca... Ai, caralho... Cinco e onze.
Meu Deus! — Henry sorriu, agachado. — E lembrem-se, garotos, nada de mudar de ideia ou mexer com o giz...
Ele viu alguma coisa.
Uma pessoa.
Por pouco eles não tinham se encontrado em casa, na cozinha, mas naquele momento ele viu bem — implacável e inconfundível, de cabelo ruivo bem escuro e olhos de sucata, mastigando um chiclete. Henry ficou bem satisfeito.
O que houve? — Uma pergunta coletiva, em coro. — O que está acontecendo? O que...
Henry ergueu os olhos, em sincronia com a voz, que no exato momento parou entre as apostas de giz.
Senhores...
Por um breve instante, no rosto de cada um dos garotos surgiu um olhar impagável de puta-merda, então correram até Henry.
E mudaram as apostas.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

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