A rainha Elisabeth assinando a sentença de morte de Mary Stuart (1879), de Sándor Liezen-Mayer
A
arte, em nossa sociedade, tornou-se tão pervertida que não somente
a arte ruim veio a ser considerada boa, mas até mesmo a noção do
que é arte se perdeu. Desse modo, para falar de arte na nossa
sociedade, é preciso, antes de tudo, distinguir a arte verdadeira de
falsificações.
Um
sinal irrefutável que distingue a arte verdadeira da falsificada é
o contágio. Se um homem, sem nenhum esforço de sua parte e sem
mudança na sua situação, após ler, ouvir ou ver uma obra de outro
homem, experimentar um estado de espírito que o une a esse homem e a
outros que percebem o objeto de arte da mesma forma que ele, então o
objeto que evoca tal estado é um objeto de arte. Por mais poético,
realista, notável ou divertido que um objeto seja, não será um
objeto de arte a menos que evoque em alguém aquele sentimento,
totalmente diferente de qualquer outro, de felicidade e de união
espiritual com outro (o autor) e com outros (ouvintes ou
espectadores) que percebem a mesma obra artística.
É
verdade que esse é um sinal externo, e que aqueles que esqueceram o
efeito produzido por arte genuína e que esperam dela algo bem
diferente — os quais constituem a vasta maioria de nossa sociedade
— podem pensar que a sensação de diversão e certa excitação
que experimentam com relação a falsificações artísticas seja o
sentimento estético. Embora essas pessoas não possam ser
persuadidas — assim como é impossível persuadir um daltônico de
que verde não é vermelho —, esse sinal se mantém preciso para
aqueles que têm um sentimento não pervertido e não atrofiado em
relação à arte e que distinguem claramente entre todas as demais a
sensação provocada por ela.
A
principal peculiaridade dessa sensação é: aquele que percebe o
trabalho artístico se funde ao seu autor de tal maneira que lhe
parece que o objeto percebido foi feito não por outra pessoa, mas
por ele mesmo, e que tudo o que é expresso por esse objeto é
exatamente o que ele há muito vem querendo expressar. O efeito da
verdadeira obra de arte é abolir, na consciência do receptor, a
distinção entre si e o artista, mas, além disso entre si e todos
os que percebem a mesma obra de arte. É essa libertação da pessoa
de seu isolamento e de sua solidão que constitui a principal força
atrativa e propriedade da arte.
Se
um homem experimenta esse sentimento, se fica contagiado com o estado
de espírito do autor, se sente essa fusão com outros, o objeto que
evoca esse estado é arte. Se não há um contágio assim, nenhuma
junção com o autor e com aqueles que percebem a obra, não há
arte. Mas o contágio não é meramente um sinal irrefutável de
arte; o grau desse contágio é também a única medida do valor
artístico.
Quanto
mais forte o contágio, melhor é a arte enquanto arte,
independentemente de seu conteúdo — isto é, independentemente do
valor do sentimento que ela transmite.
A
arte se torna mais ou menos contagiante, dependendo de três
condições: (1) a maior ou menor particularidade do sentimento
transmitido; (2) a maior ou menor clareza com a qual esse sentimento
é transmitido; e (3) a sinceridade do artista, isto é, a maior ou
menor força com a qual o artista experimenta os sentimentos que
transmite.
Quanto
mais particular o sentimento transmitido, mais fortemente ele afeta o
observador. Este experimenta maior prazer quanto mais particular seja
o estado de espírito para o qual é transferido, e, portanto, mais
forte e voluntariamente ele se funde com esse estado.
A
clareza da expressão do sentimento contribui para o contágio,
porque, ao mesclar-se com o autor em sua consciência, o observador
fica mais satisfeito quanto mais claramente está expresso o
sentimento que, conforme lhe parece, ele conhece e experimenta já
por muito tempo, e para o qual só agora encontra expressão.
Porém,
mais do que tudo, o grau de contágio da arte é dimensionado pelo
grau de sinceridade do artista. Assim que o espectador, ouvinte ou
leitor sente que o artista está contagiado por sua obra e está
escrevendo, cantando ou atuando para si mesmo, e não apenas para
afetar os outros, esse estado de espírito contagia o observador. Se,
ao contrário, o espectador, leitor ou ouvinte sente que o autor está
escrevendo, cantando ou atuando não para sua própria satisfação,
mas para o público, e que, portanto, o autor não sente aquilo que
está expressando, há imediatamente uma resistência e, então, o
mais novo e particular sentimento, a mais artística técnica não
produzem impressão alguma e até se tornam repelentes.
Estou
falando das três condições de contágio e valor na arte, mas, de
fato, somente a última vale: o artista deve experimentar uma
necessidade íntima de expressar o sentimento que transmite. Essa
condição inclui a primeira, porque, se o artista é sincero, vai
expressar seu sentimento tal como o percebeu. E como cada homem é
singular, esse sentimento será particular para todos os outros, e
será tanto mais particular quanto mais profundamente sincero for o
artista. E essa sinceridade o forçará a encontrar uma expressão
clara do sentimento que deseja transmitir.
E,
portanto, essa terceira condição — a sinceridade — é a mais
importante das três. Ela sempre está presente na arte popular, o
que garante seu poderoso efeito, e está quase totalmente ausente na
arte da nossa alta classe, que é fabricada incessantemente pelos
artistas por motivos de ganho pessoal ou de vaidade.
Essas
são as três condições cuja presença distingue a arte das
falsificações e ao mesmo tempo determina o valor de qualquer
trabalho artístico, qualquer que seja o seu conteúdo.
Na
ausência de uma dessas condições, a obra não pertencerá à arte,
mas a suas contrafações. Se ela não transmite a particularidade do
sentimento do artista e consequentemente não é particular, se é
expressa de maneira incompreensível, ou se não provém da
necessidade íntima do autor, não é uma obra de arte. Mas se todas
as três condições estiverem presentes, ainda que no menor grau,
essa obra será arte, mesmo que seja fraca.
A
presença de variados graus das três condições —
particularidade, clareza e sinceridade — determina o valor do
objeto de arte, independentemente do seu conteúdo. Os trabalhos
artísticos podem ser classificados conforme o seu valor pela
presença dessas três condições em maior ou menor grau. Em uma, a
particularidade do sentimento transmitido pode predominar; em outra,
a clareza da expressão; em uma terceira, a sinceridade; em uma
quarta, a sinceridade e a particularidade, mas com falta de clareza;
em uma quinta, particularidade e clareza, mas menos sinceridade, e
assim por diante, em todos os graus e combinações possíveis.
Assim
a arte é distinguida da não arte e o seu valor determinado
independentemente de seu conteúdo — isto é, não importando se
ela transmite sentimentos bons ou ruins.
Mas
como determinar se a arte é boa ou má em seu conteúdo?
Leon Tolstói, in O que é arte?
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