Sugestão
poética para os teólogos: Deus como dono de uma loja de brinquedos.
A sugestão não é original. Jacob Boehme(147) a fez muito antes.
Para Boehme, o propósito da vida é brincar. “No brinquedo a vida
se expressa na sua plenitude; portanto, o brinquedo como fim
significa que a vida, ela mesma, tem um valor intrínseco... Quando
Boehme se refere à vida de Deus tal como ela é em si mesma, ele se
refere a ela como ‘brinquedo’... Adão deveria ter se contentado
em brincar com a natureza, no Paraíso. ‘Da mesma forma como Deus
brinca com o tempo desse mundo externo, assim o homem divino interno
deveria brincar com as coisas externas’. Adão caiu quando o
brinquedo se tornou coisa séria.”(148) O objetivo último da
educação é ajudar-nos a permanecer crianças, ajudar- -nos a
brincar sem que nos machuquemos. O “adulto”, morador da Feira das
Utilidades, é criado pela educação como servo da criança eterna.
O adulto é um servo da criança (149).
Nas
línguas inglesa e alemã, as palavras que se usam para brincar,
“play”, no inglês, e “spielen”, no alemão, são usadas
também para se referir ao ato de tocar um instrumento. Um mesmo
verbo para se referir àquilo que uma criança faz e àquilo que o
artista faz. Essa coincidência não é acidental. Essas línguas
sabem que o brinquedo e a arte são a mesma coisa. Brinquedo e arte
são inúteis. São fins em si mesmos. O seu propósito é dar prazer
e alegria. Não posso garantir que o que vou escrever seja uma
citação ipsis verbis, mas posso garantir que o espírito é
verdadeiro. Palavras do existencialista russo Nikolas Berdjaev: no
Paraíso não existe nem ética nem política; somente estética. Com
o que concorda Nietzsche: “Estou convencido de que a arte
representa a tarefa mais alta e a tarefa realmente metafísica do
homem. [...] A existência do mundo só se justifica como um fenômeno
estético”.(150)
……………………………………………
(147)
Jacob Boehme (1575- 1624), teólogo místico.
(148)
Citado por Norman O. Brown, Life against Death, p. 33.
(149)
Zaratustra: “O corpo é uma grande razão... E um instrumento do
seu corpo é também a sua pequena razão, meu irmão, a que chamas
pelo nome de ‘espírito’ – um pequeno instrumento e um
brinquedo da sua grande razão. [...] Há mais razão no seu corpo
que na sua melhor sabedoria”.
150
FN I (I), p. 14, O nascimento da tragédia.
O
brinquedo e a arte são as únicas atividades permitidas no Paraíso.
O poeta, o artista, a criança: esses são os seres paradisíacos. No
Paraíso não existe trabalho. Existe apenas brinquedo e arte.(151)
(151)
A ária, cantilena, das Bachianas brasileiras no 5 (que estou ouvindo
agora) é absolutamente linda. Mas é absolutamente inútil. Não há
nada que eu possa fazer com ela. Fico a pensar: que magia contém a
melodia – essa voz de soprano que canta sem dizer uma única
palavra, agora o veludo do violoncelo, um lamento –, que magia ela
contém que me faz querer chorar? Incompreensível combinação essa:
sinto alegria pela beleza e, ao mesmo tempo, vontade de chorar.
Aforismo de William Blake: “O excesso de tristeza ri; o excesso de
alegria chora” (William Blake, Poesia e prosa selecionadas, p. 39).
A Valsinha, do Chico, a sonata Appassionata, de Beethoven, o
Carinhoso – todos são inúteis. Mas dão alegria. Sobre a
Appassionata, transcrevo trecho da tese A procura da palavra, de
Severino Antônio Barbosa, p. 115: “Máximo Gorki conta em suas
memórias que Lênin, depois de ouvir sonatas de Beethoven, fez uma
confidência: ‘Não conheço nada de mais belo do que a sonata
Appassionata; poderia ouvi-la todos os dias. Música surpreendente,
sobre-humana. Digo-me sempre com um orgulho talvez ingênuo e pueril:
‘Que maravilhas os homens podem criar!’. Mas não posso ouvir
música constantemente, ela age sobre os meus nervos, tenho vontade
de dizer tolices e de acariciar as criaturas que, vivendo num inferno
assim, podem criar tanta beleza...’”.
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer
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