A
nova casa de Lélio Landucci fica no alto de uma encosta e domina o
vale de Botafogo, densamente povoado e cheio de silêncio. Amigos,
muitos amigos, o conduziram até ali, numa tarde de céu mais neutro
do que azul, mas tão tranquila que, sob seu arco, a ideia de casa e
o sentimento de paz se fundiam numa unidade perfeita. Sim, Lélio
Landucci fora realmente descansar, depois de muito andar pelas ruas
do centro, onde o víamos sempre com sua pasta, suas provas de livros
dos outros, sua civilizada gentileza (comment allez vous, mon cher?),
seus vastos conhecimentos quase sem aplicação, sua bondade numerosa
e seu discretíssimo destino de artista a quem a vida impunha tarefas
rotineiras, escrupulosamente cumpridas.
Portinari,
Manuel Bandeira, Dante Milano, Órris Soares, Alcides da Rocha
Miranda, cada um que ali estava podia contar sua memória particular
de Landucci, e recompor um traço que, somado a outros,
reconstituiria a figura inteira, intelectualmente das mais
aristocráticas que já passaram por aqui. Era escultor, arquiteto,
crítico de arte, técnico em artes gráficas, mas era, sobretudo, um
florentino de velha tradição cultural e de um bom gosto infalível,
com a visão estética enriquecida pela perspectiva sociológica,
adquirida em seus tempos parisienses de militante socialista. Na casa
dos vinte anos, foi aviador militar e participou da Guerra Mundial de
1914 sob a bandeira da Itália, mas não se podia dizer ao certo se
nele o francês era menos autêntico do que o italiano; e a impressão
final que nos causava era a de um europeu, no sentido mais fino dessa
palavra, que vai perdendo o sentido. Contudo ainda, tantos anos de
Brasil, e mais precisamente de vida carioca, o foram marcando por sua
vez, inscrevendo em sua personalidade linhas de um estilo brasileiro
tão cordial que o antigo Landucci, por assim dizer, adquirira uma
segunda natureza, sem nenhum dilaceramento das raízes originais,
antes as mantendo fixas e vivazes. Nem seria possível, a quem teve o
privilégio de ser conterrâneo de Dante e de Giotto, esquecer-se.
del
bello ovile ov’io dormi’ agnello.
Como
não há nos museus, ao que conste, esculturas de sua lavra, nem se
conhecem obras consideráveis de arquitetura construídas sob sua
traça, nem deixou livros a não ser o admirável estudinho sobre
Portinari, além de alguns artigos esparsos de jornal (inclusive um
nas edições de cinquentenário do Correio da Manhã), sua
presença no meio artístico do Brasil, dentro de alguns anos,
estará, talvez, esfumada. Contudo, sua passagem não foi a da sombra
da asa sobre a água. Esteve entre os mais avisados julgadores das
experiências artísticas, nos últimos vinte e cinco anos; era uma
opinião que contava, num meio onde tão poucas sugestões úteis
podem recolher os artistas plásticos para se orientarem; além dos
belos livros de arte que se devem a seu senso gráfico servido por um
cuidado chinês da minúcia, temos a creditar-lhe um novo tipo de
edições oficiais, de sobriedade nobre e elegante, como são hoje as
do Instituto Nacional do Livro. Mas, sobretudo, legou-nos uma lição
cotidiana, sem a menor ênfase, de esmero e pureza. Rever provas,
paginar, idealizar um frontispício, eram operações que lhe
mereciam tanto apreço quanto o debate sobre os rumos da arte no
mundo politizado de hoje, ou em torno das soluções urbanísticas de
que o Rio carece, ou outro tema qualquer em que se comprazia sua
inteligência crítica, tão segura e bem equipada.
Resta
dele outro traço: foi um dos colaboradores de Landowski, no
monumento ao Cristo do Corcovado, e dizem mesmo que a obra, em sua
concepção geral, teria obedecido a um croqui de sua autoria. O
público não sabe disso, e a estátua, que se integrou na paisagem
do Rio, tem um sentido anônimo e coletivo, em cuja intimidade é
grato imaginar, oculta mas generosa, a sensibilidade de Lélio
Landucci.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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