Antes
da língua e do verbo, antes de ouvir na rádio a Amália a cantar
canções tristes e de a minha mãe me dizer que aquilo que ouvia se
chamava fado. Bem antes de ler num livro de história o nome de Diogo
Cão e a sua chegada à foz do rio Zaire. Antes das mil formas de
cozinhar o bacalhau descritas num velho livro de receitas portuguesas
na casa da minha avó. A ideia de Portugal surgiu-me desavisada.
Festejávamos o regresso de um familiar de umas férias passadas em
Lisboa. A sala encheu-se de histórias; fotografias de uma praça
onde as pombas sem medo vinham comer na palma das mãos mostravam-se
ao som do rasgar de papel de embrulho, por entre um cheiro novo, doce
e frutado que invadia o ar. Nunca mais me esqueci do cheiro das maçãs
de casca verde e azeda tão saborosas, tão distantes das que nos
chegavam da Huíla. E as prendas… As prendas eram de cortar o
fôlego. Na minha casa as crianças nunca se prenderam aos
brinquedos; por isso, qualquer livro de banda desenhada me deixava
nas nuvens. Mas aquela dúzia de livros Disney e Marvel fizeram de
mim simplesmente o kandengue mais feliz de Benguela. De mim e de
todos os miúdos lá da rua, porque esses objetos de culto pop não
ficavam muito tempo na posse dos seus proprietários. Corriam o
bairro todo até voltarem; muitos nunca voltavam. Raros e desejados,
esses livros só eram possíveis de obter via Portugal. E foi por
essa via que começou a ganhar forma em mim a ideia de Portugal, o
lugar-donde-vinham-os-livros-de-BD-e-que-cheirava-a-maçãs-Granny-Smith.
Hoje,
sempre que viajo por Portugal, inconscientemente procuro aquele
lugar. E este fim de semana não foi exceção. As festividades
carnavalescas levaram-nos até ao norte do país, à cidade berço.
Amanhecemos em Guimarães e com o dia todo para domingar. Para não
nos sentirmos deslocados, evitámos o registo turista e decidimos
fazer o que supostamente um nato da terra faria. Uma chuva miudinha
insistia em não parar, talvez por isso metade da cidade hibernava,
sem que isso ofuscasse a sua beleza. A busca de um restaurante
levou-nos até Vizela, onde encontrámos um que merecidamente nos fez
dedicar três horas do nosso tempo e apetite. A tarde corria
acelerada para o seu fim e restavam-nos poucas escolhas de
entretenimento. Talvez por isso fomos naturalmente conduzidos para o
interior de um shopping center. Não fizemos grandes juízos,
aceitámos o fato e deambulámos por ali de montra em montra.
Escolhemos um filme, Call Girl, comprámos pipocas e
coca-colas e entrámos na sala que se encontrava com o maior número
de pessoas. Talvez fosse por causa do efeito da protagonista Soraia
Chaves, mas penso que não poderíamos ter escolhido um melhor filme
para aquele fim de tarde. Ao sairmos do cinema com um sorriso
estampado no rosto, sem aquela culpa que às vezes nos pesa quando
seguimos determinada tendência popular, lembrei-me da satisfação
que sentia depois de ler um livro de BD, quase como se saboreasse
aquele lugar-donde-vinha-a-banda-desenhada; só não cheirava às
maçãs.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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