Sabem
do que tenho mais saudades? Do livro aberto. Sim, isso mesmo, tenho
saudade de ver um livro escancarado na mão de um leitor. Já não me
lembro da última vez que vi um livro a ser devorado em público. Ler
em público, ou até carregar um livro debaixo do braço, passou à
história, é hoje praticamente figura de museu, alimento da
nostalgia de poetas, romancistas e cronistas, para se empanturrarem
até arrotarem os seus desvarios e estórias, que por vaidade ou
capricho masoquista se dão ao trabalho de publicar em livros, que
ficarão para sempre calados.
Nutrimos
pelos livros o mesmo que sentimos por certos cães: medo. As casas
comerciais, cada vez mais escassas, que carregam na fachada a palavra
“Livraria” são encaradas com o mesmo respeitinho que nutrimos
por aquelas habitações onde nos portões se lê “Cuidado com o
cão”. As nossas bibliotecas estão para nós como os canis
municipais: nunca pomos lá os pés. Ninguém quer ver, ninguém está
para se comover com aquela quantidade de livros abandonados,
engaiolados nas prateleiras numa agonia sem fim.
Quando
kandengues, nossos pais, para incutir sentido de responsabilidade,
nos davam de presente livros, e com eles as mesmas recomendações
que forneciam quando nos ofereciam o nosso primeiro cachorrinho:
“Cuida bem dele, leva-o a passear, é o teu melhor amigo”. Nós,
na emoção inicial, brincávamos com eles envoltos naquela alegria
infantil. Quando cresceram, ou melhor, quando nós crescemos, os
abandonámos com a sua coleira/prateleira num canto qualquer, até
morrerem de velhice.
O
desaparecimento do livro do espaço público me leva de volta ao
tempo em que em Luanda, anos 1980-90, se não me falha a memória, os
cães que circulavam pela cidade desapareceram de forma repentina.
Dizem as más-línguas que os responsáveis seriam um grupo de
cooperantes filipinos cuja culinária, de tão vasta e exótica,
incluía alguns quitutes e guisados confeccionados com carne de
rafeiro. Um mito urbano que alimentou o nosso imaginário coletivo
durante anos e, até hoje, repousa num anexo nos fundos da nossa
memória.
Caros
leitores, amigos da provocação e da conversa fiada, do largo da
Maianga aos cafés da Restinga, de estímulo e afeto, românticos e
nostálgicos, amantes da velha e quase extinta arte da leitura,
permitam-me que vos dedique estas palavras, perdoem a vaidade deste
vosso humilde cronista, tão pecador como qualquer outro, mas que vos
tem na mais alta estima. A vocês, caros companheiros das manhãs
aborrecidas de terça-feira, cuja utilidade, para além de ser mais
um dia de labuta semanal, é apenas a de nos lembrar que o fim de
semana ainda vem longe.
Se
tencionam iniciar uma coleção de livros, estimados leitores, eis
aqui algumas informações úteis que temos a obrigação de não
respeitar:
• Logo
a partir dos primeiros meses, todos os livros, sem exceção, devem
ser vacinados anualmente contra a raiva;
• Os
livros não devem ter livre acesso à rua;
• Ao
sair com o livro, mantenha-o sob controlo, utilizando coleira e guia;
• Nunca
provoque um livro;
• Não
toque em livros estranhos, feridos ou que estejam se alimentando;
• Não
separe lutas entre livros, nem mexa com escritores e as suas
criações;
• E
em caso de acidentes por mordedura: lavar o ferimento com água e
sabão e procurar orientação médica; identificar o livro agressor
e o seu proprietário; caso o livro seja conhecido, observar o objeto
por dez dias.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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