A
cidade estava sombria, mas viva.
Dentro
do carro, o silêncio.
Não
restava nada além da volta para casa.
Mais
cedo, veio a cerveja, compartilhada com certeza.
Sumido,
Sininho, Maguire.
Schwartz
e Starkey.
Todos
ganharam uma graninha, inclusive o tal do Lepra, que tinha apostado
em catorze minutos redondos. Quando começou a se vangloriar, os
outros meninos disseram na lata que ele deveria era se preocupar em
fazer um transplante de pele, isso, sim. Henry ficou com o resto do
dinheiro. Tudo isso se deu sob um céu rosa-acinzentado. O melhor
grafite da cidade.
Em
determinado momento, Schwartz estava contando a eles aquela sacanagem
dos cuspes na linha dos duzentos metros, quando a garota, de bobeira
com Starkey no estacionamento, fez a pergunta.
— O
que aquele garoto tem? — Essa não era a questão em questão, no
entanto, logo ficaria claro qual era. — Correndo daquele jeito.
Brigando daquele jeito... — continuou ela, pensando um pouco e
depois bufando. — Que brincadeira ridícula é essa de vocês? Seus
imbecis!
— Imbecis...
— repetiu Starkey. — Valeu!
Ele
a abraçou como se tivesse acabado de receber um elogio.
— Ei,
gatinha!
Henry.
Garota
e gárgula se viraram para olhar, e Henry deu um sorrisinho contido.
— Não
é uma brincadeira, é treino!
Ela
pôs a mão no quadril, e já dá para imaginar o que a garota com a
alcinha de renda caída perguntou depois. Henry fez o que pôde para
satisfazer a curiosidade dela.
— Certo,
Clay, ajuda a gente a entender. Você treina tanto pra quê?
Só
que Clay não estava prestando atenção ao ombro da garota. Estava
concentrado no arranhão na bochecha que não parava de latejar,
cortesia do bigode de Starkey. Com a mão boa, mexeu no bolso,
resoluto, então se agachou.
É
importante mencionar que o propósito dos treinos de nosso irmão era
um mistério igualmente incompreensível para ele também. Clay só
sabia que estava se preparando e esperando pelo dia em que
compreenderia — e o dia, por acaso, era aquele. A resposta estava à
espera, em casa, na cozinha.
***
Rua
Carbine e travessa Empire, e então um trecho da Poseidon.
Clay
sempre gostou daquele caminho para casa.
Gostava
das mariposas no alto, amontoadas nos postes de luz. Ele se
perguntava se a noite as deixava agitadas ou calmas; em todo caso,
conferia propósito a elas. As mariposas sabiam o que fazer.
Logo
chegaram à rua Archer.
Henry:
dirigindo com uma só mão, sorrindo.
Rory:
pés apoiados no painel.
Tommy:
meio adormecido por cima da cachorra ofegante.
Clay:
sem saber que chegava a hora.
Por
fim, Rory não aguentou mais... a calmaria.
— Porra,
Tommy, essa cachorra precisa mesmo respirar tão alto?
Três
deles deram uma risada curta e seca.
Clay
olhava pela janela.
Henry
podia dar a impressão de ser um doido ao volante, jogando o carro na
calçada de qualquer jeito, mas não, ele não era assim.
Ligou
a seta em frente à casa da sra. Chilman, a vizinha.
Fez
uma curva suave na entrada da nossa garagem — tão suave quanto
aquele carro permitia.
Faróis
desligados.
Portas
abertas.
A
única coisa que traiu a paz absoluta foi fechá-las, quatro tiros
disparados na direção da casa.
Juntos,
atravessaram o gramado.
— O
que tem pra comer? Algum tonto aqui sabe?
— Sobras
de ontem.
— Imaginei.
Os
pés passaram pela varanda.
***
— Lá
vêm eles — falei. — Melhor você se preparar pra dar o fora
daqui.
— Entendi.
— Você
não entendeu nada.
Naquele
momento, eu tentava compreender por que tinha deixado o homem ficar.
Poucos minutos antes, quando ele me contou a razão de ter dado as
caras, minha voz ricocheteou na louça e voou até a garganta do
Assassino:
— Você
quer o quê?!?
Talvez
fosse a crença de que a história já estivesse em curso;
aconteceria de qualquer jeito e, se fosse aquele o momento,
paciência. Além disso, apesar do estado lastimável do Assassino,
eu sentia algo mais ali. Havia um quê de resolução, e, claro,
expulsá-lo teria sido um prazer e tanto — ah, agarrá-lo pelo
braço! Erguê-lo. Enxotá-lo porta afora. Jesus, teria sido lindo
pra cacete! Mas nos deixaria vulneráveis. O Assassino poderia voltar
a agir quando eu não estivesse por perto.
Não.
Melhor assim.
A
melhor maneira de controlar a situação seria nos juntarmos, nós
cinco, numa demonstração de força.
Não,
espera aí.
Nós
quatro, e um traidor.
***
Daquela
vez, foi instantâneo.
Henry
e Rory não tinham farejado o perigo antes, mas, ali dentro da casa
na rua Archer, ele era palpável. Havia cheiro de discussão no ar, e
de bituca de cigarro.
— Shhh
— fez Henry, esticando o braço para trás. — Cuidado.
Eles
seguiram pelo corredor.
— Matthew?
— Aqui.
Absorta
e profunda, minha voz confirmou tudo.
Por
alguns instantes, os quatro se entreolharam, em alerta, confusos,
pesquisando em um arquivo interno algum registro do próximo passo.
Henry
de novo:
— Tá
tudo bem com você, Matthew?
— Tudo
tranquilo! Vem cá!
Eles
deram de ombros, conformados.
Não
havia mais razão para não entrarem, então, um a um, dirigiram-se à
cozinha, onde a luz parecia um encontro entre mar e rio, o amarelo se
transformando em branco.
Eu
estava diante da pia, de braços cruzados. Atrás de mim estava a
louça, limpa e reluzente, como uma peça rara e exótica de museu.
esquerda
dos meus irmãos, à mesa, estava ele.
***
Céus,
dá para ouvir daí?
O
coração deles?
A
cozinha virou um pequeno continente à parte, os quatro garotos se
movimentando em uma terra de ninguém, em uma espécie de migração
em grupo. Quando chegaram à pia, ficamos aglomerados, Aurora entre
nós. É curioso como funcionam os garotos; não nos incomodamos com
contato físico — ombros, cotovelos, articulações, braços —, e
todos encaramos nosso agressor, que se encontrava sentado, sozinho, à
mesa. Uma pilha de nervos da cabeça aos pés.
O
que pensar numa hora dessas?
Cinco
garotos e pensamentos embaralhados, e Aurora com os caninos à
mostra.
Sim,
a cachorra instintivamente o desprezava também, e foi ela quem
quebrou o silêncio: rosnou e se preparou para avançar no homem.
Calmo
e contundente, estendi a mão.
— Aurora.
Ela
parou.
O
Assassino logo abriu a boca.
Nada
saiu.
A
luz estava branca feito aspirina.
***
A
cozinha então começou a se abrir, ou pelo menos se abriu para Clay.
O restante da casa ruiu, e o quintal cedeu, sucumbiu ao nada. A
cidade e o subúrbio e todos os campos abandonados foram destroçados
e assolados em uma onda apocalíptica, negra. Para Clay só havia
aquele lugar, a cozinha, que num fim de tarde passara de zona
climática a continente, e agora isto:
Um
mundo de mesa-e-torradeira.
De
irmãos e suor à beira da pia.
A
atmosfera ainda estava opressiva, quente e granulada, como o ar antes
de um furacão.
O
Assassino parecia estar com a cabeça longe, como se considerasse
todos esses elementos, mas logo a içou de volta. Agora, pensou ele.
Preciso agir agora. Então agiu, um esforço colossal de sua parte.
Levantou-se, e havia algo de aterrorizante em sua tristeza. Ele havia
imaginado aquele momento inúmeras vezes, mas chegou ali oco,
esvaziado. Uma casca de tudo que era. Poderia muito bem ter surgido
do armário ou de debaixo da cama:
Um
monstro manso e confuso.
Um
pesadelo, de repente mais vívido do que nunca.
***
Mas
então — de repente —, era o bastante.
Fez-se
uma declaração silenciosa, e os anos de sofrimento equilibrado não
seriam tolerados nem mais um segundo; a corrente rachou e por fim se
quebrou. A cozinha já tinha visto de tudo aquele dia, e então todo
aquele movimento cessou e se resumiu a cinco corpos o encarando.
Cinco garotos estavam unidos, lado a lado, mas um deles estava
sozinho, exposto — pois já não tocava irmão algum —,
apreciando e detestando a situação. Ele a abraçou, lamentou por
ela. Só lhe restava dar aquele passo em direção ao único buraco
negro da cozinha:
Enfiou
a mão no bolso mais uma vez e, quando a tirou, segurava pecinhas. O
garoto as exibiu — mornas e vermelhas e plásticas —, as partes
de um pregador de roupa despedaçado.
Depois
disso, o que restava?
Clay
o instigou, a voz brotando no silêncio, emergindo da escuridão rumo
à luz:
— Oi,
pai.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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