[…]
Perto
do estúdio fotográfico Sawada, subindo uma ladeira suave,
chegava-se a uma área residencial. Ali, em uma região proclamada
trinta anos antes como a epítome do desenvolvimento, enfileiravam-se
casas padronizadas e modernos prédios residenciais.
A
família de Satoru morava naquele bairro, em um condomínio modesto.
Eram apenas Satoru e os pais.
Kosuke
conheceu Satoru na escola de natação, quando estava no segundo ano
do ensino fundamental. Desde pequeno, Kosuke tinha tendência a
dermatite atópica, e a mãe o matriculou na natação porque
acreditava na teoria de que esse esporte torna a pele mais
resistente. Já Satoru tinha outros motivos. Foi o professor da
escola quem sugeriu que ele fizesse aulas de natação e aprendesse a
sério o esporte, pois parecia ter nadadeiras nas mãos, de tão
rápido que era na água.
Muito
brincalhão, Satoru passava os intervalos das aulas fazendo gracinhas
— rondava o fundo da piscina grudado ao chão como uma salamandra,
assustava os outros alunos agarrando seus pés por baixo da água. Os
professores brigavam com ele e o chamavam de Kappa, a criatura do
folclore japonês que vive nos rios e prega peças nos humanos, e
esse logo se tornou seu apelido. Dependendo do humor do professor, às
vezes também era chamado de “Nadadeiras”.
Quando
a aula começava, Satoru se juntava à turma do curso avançado, a
dos que nadavam bem, e Kosuke ficava na turma normal, cheia de
crianças com alergias.
Mesmo
com os apelidos de Kappa ou Nadadeiras, era impressionante ver Satoru
atravessando a piscina a grandes braçadas. Nessas horas, apesar de
ser seu amigo, Kosuke sentia uma pontinha de raiva. Bem que eu
podia nadar como Satoru.
Mas
logo mudou de ideia ao vê-lo pular na piscina fazendo palhaçadas e
dar com a testa no piso.
Talvez,
no dia que encontraram Hachi, o pêndulo estivesse pendendo um pouco
mais para a inveja…
Era
um dia no começo do verão, e eles já praticavam natação havia
dois anos.
Kosuke
foi o primeiro a chegar ao pé da ladeira da área residencial, onde
se encontravam para irem juntos ao treino. Por conta disso, foi ele
quem viu primeiro a caixa.
No
chão, embaixo de uma placa grande com o mapa do bairro, estava
largada uma caixa de papelão. E a caixa miava baixinho. Ele
entreabriu a tampa, temeroso, e encontrou duas bolas de pelo branco
macio, decoradas aqui e ali por manchas marrons e pretas.
Ele
observou os animais em silêncio. Eram criaturas tão indefesas e
delicadas! Tão pequenas que dava até medo de tocar …
— Nossa!
Gatos! — A voz de Satoru ressoou acima da cabeça dele. — De onde
veio isso?
Ele
se agachou ao lado de Kosuke.
— A
caixa estava largada aqui.
— Ah,
que bonitinhos!
Os
dois passaram algum tempo acariciando timidamente as bolinhas de pelo
com as pontas dos dedos, até que Satoru propôs:
— Vamos
pegar eles?
Kosuke
hesitou por um momento, lembrando-se das advertências severas da
mãe, que sempre dissera que ele não podia mexer em animais por
causa da dermatite, mas, se Satoru pegasse um no colo, Kosuke não ia
aguentar ficar só olhando. Além do mais, ele é que tinha
encontrado a caixa.
Apanhou
um dos filhotes com cuidado, com as duas mãos. Ele era tão leve!
Os
meninos queriam continuar brincando com os gatos por horas, mas iam
se atrasar para a natação. “Acho que a gente tem que ir”, “Já
está tarde”, “Vamos logo!”. Incentivando um ao outro,
conseguiram afinal se afastar da caixa.
Combinaram
de voltar por ali para ver os gatos de novo e dispararam pela rua até
a escola de natação.
Quando
chegaram, esbaforidos, o treino já tinha começado. Os dois levaram
uma bronca do professor.
Assim
que a aula acabou, eles dispararam de volta, rumo ao pé da ladeira.
A
caixa continuava ali, embaixo do mapa, mas agora tinha só um
gatinho. Pelo visto, alguém tinha levado o outro. Naquele momento,
os dois meninos sentiram que o destino do filhote que restara estava
nas mãos deles. Era o que tinha duas manchinhas na testa e o rabo
torto.
Eles
se sentaram no chão ao lado da caixa e ficaram vendo o gatinho
dormir calmamente, todo enrolado. Que criança não ia querer levar
para casa um bichinho fofo como aquele? Era óbvio que os dois
estavam calculando, a toda velocidade, o que aconteceria se o
levassem.
Como
seria lá em casa? Mamãe não aceitaria, por causa da dermatite… E
papai também não gosta muito de animais.
Enquanto
Kosuke refletia sobre as várias questões que enfrentaria em casa,
Satoru foi logo dizendo:
— Vou
pedir pra minha mãe!
— Ei,
assim não vale!
No
protesto que Kosuke deixou escapar havia um pequeno rancor que ele
guardava fazia algumas semanas, quando ele ouvira uma menina da
natação de quem gostava comentando, enquanto via Satoru nadar:
“Puxa, ele é o máximo!”. (Pensando sobre isso agora, ela
provavelmente queria dizer apenas “Para alguém tonto como o Kappa,
até que ele manda bem”, então talvez não fosse um elogio digno
de inveja…)
Satoru
nadava bem, não tinha dermatite e com certeza poderia ficar com o
gato se o levasse para casa, porque tinha pais legais. Além de
ganhar elogio da menina de que eu gosto, ainda vai ter esse gatinho?
Não é justo!
O
protesto do amigo atingiu Satoru como uma bofetada. Kosuke se
arrependeu assim que viu a expressão perplexa dele.
Sabia
perfeitamente que estava só descontando sua frustração no amigo.
— É
que… fui eu que vi primeiro…
Essa
foi a única desculpa esfarrapada que conseguiu produzir, mas bastou
para fazer Satoru se desculpar sinceramente.
— Verdade,
você encontrou primeiro, então o gato é seu.
Kosuke
só pôde concordar com a cabeça, sentindo-se patético por
descontar sua raiva no amigo. Depois de uma despedida meio
desconfortável, ele levou a caixa para casa.
Ao
contrário do que ele imaginara, a mãe não se opôs à ideia.
— Você
não tem tido mais dermatite, talvez por causa da natação. Se
cuidarmos para a casa ficar bem limpa, acho que não tem problema.
Além do mais, quando fomos para a casa do seu tio no outro dia, você
não teve problemas com o gato dele…
Pensando
bem, ultimamente ela não dava mais tantos sermões sobre a
dermatite. Também fazia tempo que não iam ao médico.
No
fim, o verdadeiro obstáculo foi o pai.
— Ficou
maluco? De jeito nenhum!
E
fim de conversa. Não havia chance de argumentar.
— O
que você vai fazer se ele sair afiando as unhas pela casa? E saiba
que criar um gato não é de graça não, viu? Você acha que eu dou
duro o dia inteiro lá no estúdio pra comprar comida pra bicho?
A
mãe tentou interceder a favor do menino, mas, aparentemente, isso só
aumentou a irritação do pai. Cada vez mais obstinado, ele enxotou
Kosuke de casa, mandando-o devolver a caixa ao lugar onde a tinha
encontrado, e que fizesse isso antes do jantar.
Kosuke
foi choramingando até o pé da ladeira, abraçado à caixa com o
gatinho. Chegou até a placa com o mapa, mas como poderia largar a
caixa lá? Em vez disso, seguiu até a casa de Satoru, mesmo se
sentindo ainda um pouco desconfortável por terem se despedido em um
clima desagradável.
Hiro Arikawa, in Relatos de um gato viajante
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