terça-feira, 26 de setembro de 2023

Caixa com gatos




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Perto do estúdio fotográfico Sawada, subindo uma ladeira suave, chegava-se a uma área residencial. Ali, em uma região proclamada trinta anos antes como a epítome do desenvolvimento, enfileiravam-se casas padronizadas e modernos prédios residenciais.
A família de Satoru morava naquele bairro, em um condomínio modesto. Eram apenas Satoru e os pais.
Kosuke conheceu Satoru na escola de natação, quando estava no segundo ano do ensino fundamental. Desde pequeno, Kosuke tinha tendência a dermatite atópica, e a mãe o matriculou na natação porque acreditava na teoria de que esse esporte torna a pele mais resistente. Já Satoru tinha outros motivos. Foi o professor da escola quem sugeriu que ele fizesse aulas de natação e aprendesse a sério o esporte, pois parecia ter nadadeiras nas mãos, de tão rápido que era na água.
Muito brincalhão, Satoru passava os intervalos das aulas fazendo gracinhas — rondava o fundo da piscina grudado ao chão como uma salamandra, assustava os outros alunos agarrando seus pés por baixo da água. Os professores brigavam com ele e o chamavam de Kappa, a criatura do folclore japonês que vive nos rios e prega peças nos humanos, e esse logo se tornou seu apelido. Dependendo do humor do professor, às vezes também era chamado de “Nadadeiras”.
Quando a aula começava, Satoru se juntava à turma do curso avançado, a dos que nadavam bem, e Kosuke ficava na turma normal, cheia de crianças com alergias.
Mesmo com os apelidos de Kappa ou Nadadeiras, era impressionante ver Satoru atravessando a piscina a grandes braçadas. Nessas horas, apesar de ser seu amigo, Kosuke sentia uma pontinha de raiva. Bem que eu podia nadar como Satoru.
Mas logo mudou de ideia ao vê-lo pular na piscina fazendo palhaçadas e dar com a testa no piso.
Talvez, no dia que encontraram Hachi, o pêndulo estivesse pendendo um pouco mais para a inveja…
Era um dia no começo do verão, e eles já praticavam natação havia dois anos.
Kosuke foi o primeiro a chegar ao pé da ladeira da área residencial, onde se encontravam para irem juntos ao treino. Por conta disso, foi ele quem viu primeiro a caixa.
No chão, embaixo de uma placa grande com o mapa do bairro, estava largada uma caixa de papelão. E a caixa miava baixinho. Ele entreabriu a tampa, temeroso, e encontrou duas bolas de pelo branco macio, decoradas aqui e ali por manchas marrons e pretas.
Ele observou os animais em silêncio. Eram criaturas tão indefesas e delicadas! Tão pequenas que dava até medo de tocar …
Nossa! Gatos! — A voz de Satoru ressoou acima da cabeça dele. — De onde veio isso?
Ele se agachou ao lado de Kosuke.
A caixa estava largada aqui.
Ah, que bonitinhos!
Os dois passaram algum tempo acariciando timidamente as bolinhas de pelo com as pontas dos dedos, até que Satoru propôs:
Vamos pegar eles?
Kosuke hesitou por um momento, lembrando-se das advertências severas da mãe, que sempre dissera que ele não podia mexer em animais por causa da dermatite, mas, se Satoru pegasse um no colo, Kosuke não ia aguentar ficar só olhando. Além do mais, ele é que tinha encontrado a caixa.
Apanhou um dos filhotes com cuidado, com as duas mãos. Ele era tão leve!
Os meninos queriam continuar brincando com os gatos por horas, mas iam se atrasar para a natação. “Acho que a gente tem que ir”, “Já está tarde”, “Vamos logo!”. Incentivando um ao outro, conseguiram afinal se afastar da caixa.
Combinaram de voltar por ali para ver os gatos de novo e dispararam pela rua até a escola de natação.
Quando chegaram, esbaforidos, o treino já tinha começado. Os dois levaram uma bronca do professor.
Assim que a aula acabou, eles dispararam de volta, rumo ao pé da ladeira.
A caixa continuava ali, embaixo do mapa, mas agora tinha só um gatinho. Pelo visto, alguém tinha levado o outro. Naquele momento, os dois meninos sentiram que o destino do filhote que restara estava nas mãos deles. Era o que tinha duas manchinhas na testa e o rabo torto.
Eles se sentaram no chão ao lado da caixa e ficaram vendo o gatinho dormir calmamente, todo enrolado. Que criança não ia querer levar para casa um bichinho fofo como aquele? Era óbvio que os dois estavam calculando, a toda velocidade, o que aconteceria se o levassem.
Como seria lá em casa? Mamãe não aceitaria, por causa da dermatite… E papai também não gosta muito de animais.
Enquanto Kosuke refletia sobre as várias questões que enfrentaria em casa, Satoru foi logo dizendo:
Vou pedir pra minha mãe!
Ei, assim não vale!
No protesto que Kosuke deixou escapar havia um pequeno rancor que ele guardava fazia algumas semanas, quando ele ouvira uma menina da natação de quem gostava comentando, enquanto via Satoru nadar: “Puxa, ele é o máximo!”. (Pensando sobre isso agora, ela provavelmente queria dizer apenas “Para alguém tonto como o Kappa, até que ele manda bem”, então talvez não fosse um elogio digno de inveja…)
Satoru nadava bem, não tinha dermatite e com certeza poderia ficar com o gato se o levasse para casa, porque tinha pais legais. Além de ganhar elogio da menina de que eu gosto, ainda vai ter esse gatinho? Não é justo!
O protesto do amigo atingiu Satoru como uma bofetada. Kosuke se arrependeu assim que viu a expressão perplexa dele.
Sabia perfeitamente que estava só descontando sua frustração no amigo.
É que… fui eu que vi primeiro…
Essa foi a única desculpa esfarrapada que conseguiu produzir, mas bastou para fazer Satoru se desculpar sinceramente.
Verdade, você encontrou primeiro, então o gato é seu.
Kosuke só pôde concordar com a cabeça, sentindo-se patético por descontar sua raiva no amigo. Depois de uma despedida meio desconfortável, ele levou a caixa para casa.
Ao contrário do que ele imaginara, a mãe não se opôs à ideia.
Você não tem tido mais dermatite, talvez por causa da natação. Se cuidarmos para a casa ficar bem limpa, acho que não tem problema. Além do mais, quando fomos para a casa do seu tio no outro dia, você não teve problemas com o gato dele…
Pensando bem, ultimamente ela não dava mais tantos sermões sobre a dermatite. Também fazia tempo que não iam ao médico.
No fim, o verdadeiro obstáculo foi o pai.
Ficou maluco? De jeito nenhum!
E fim de conversa. Não havia chance de argumentar.
O que você vai fazer se ele sair afiando as unhas pela casa? E saiba que criar um gato não é de graça não, viu? Você acha que eu dou duro o dia inteiro lá no estúdio pra comprar comida pra bicho?
A mãe tentou interceder a favor do menino, mas, aparentemente, isso só aumentou a irritação do pai. Cada vez mais obstinado, ele enxotou Kosuke de casa, mandando-o devolver a caixa ao lugar onde a tinha encontrado, e que fizesse isso antes do jantar.
Kosuke foi choramingando até o pé da ladeira, abraçado à caixa com o gatinho. Chegou até a placa com o mapa, mas como poderia largar a caixa lá? Em vez disso, seguiu até a casa de Satoru, mesmo se sentindo ainda um pouco desconfortável por terem se despedido em um clima desagradável.

Hiro Arikawa, in Relatos de um gato viajante

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