2.
O
dia do meu casamento amanheceu encoberto. As nuvens escuras formavam
uma capa densa, os trovões ribombavam. Quando os trovões pararam,
caiu um pé-d’água.
Minha
mãe resmungou: “E Yuan Bochecha ainda disse que escolheu para você
uma data auspiciosa, agora olhe só para este dilúvio!”.
Passava
das dez da manhã quando Wang Renmei chegou a minha casa. Veio
debaixo de chuva, acompanhada de duas primas. Pelas capas de chuva
que usavam, até parecia que estavam indo inspecionar a barragem para
prevenir inundações. Com uma lona plástica, montamos uma barraca
no pátio e improvisamos um fogão ali, agachei-me para avivar as
chamas com um fole e ferver água. Meu primo Cinco Sentidos provocou:
“Herói de guerra, a noiva já entrou e você continua agachado aí
fervendo água?”. “Então venha você fazer isso”, eu disse.
“Sua mãe já me mandou soltar fogos”, respondeu ele, “e soltar
fogos num dia de chuva é algo que requer técnica.” Minha mãe
apareceu na porta e gritou: “Cinco Sentidos! Pare de enrolar e vá
logo!”. Cinco Sentidos tirou do peito um cordão de panchões
embrulhado num plástico, acendeu o pavio, dispensou o cabo e segurou
uma ponta do cordão com a mão. Inclinou o corpo enquanto mantinha o
guarda-chuva sobre a cabeça e deixou que estalassem. Por causa da
chuva, a fumaça envolveu meu primo em vez de se dispersar. As
crianças que estavam ali para assistir ao espetáculo, mais
ensopadas que um frango na canja, começaram a bater as mãos e os
pés, gritando: “Cinco Sentidos está com a cabeça cheia de
fumaça…”. “O que esses pirralhos estão gritando agora?”,
resmungou minha mãe.
Segundo
o costume, a noiva deve entrar na casa do noivo sem dizer uma
palavra, passar pela sala principal, ir até o quarto nupcial e
sentar-se sobre o kang com as pernas de lado, é o que se chama de
“entronização”. Mas Wang Renmei, assim que chegou, ficou no
pátio vendo o espetáculo pirotécnico de Cinco Sentidos. Ele estava
com a cara preta de fumaça, parecia ter saído de dentro de um fogão
à lenha. Wang Renmei caiu na gargalhada. Suas duas primas que faziam
as vezes de damas de honra discretamente puxaram a manga do seu
vestido para lembrá-la do protocolo, mas ela não deu a mínima
atenção. Calçava sandálias de salto, feitas de plástico, que a
deixavam parecendo uma árvore, de tão alta. Cinco Sentidos a olhou
de cima a baixo e disse: “Cunhada, quem quiser te beijar vai
precisar de uma escada!”. “Cinco Sentidos, cale essa boca!”,
ralhou minha mãe. Wang Renmei falou: “Cinco Sentidos, deixe de ser
retardado! Até a Wang Vesícula beija o Chen Nariz sem precisar de
escada!”. Vendo a noiva tagarelar com meu primo no pátio, as tias
convidadas teciam comentários ao pé do ouvido. Pulei para fora da
barraca segurando uma pá de carvão na mão. As crianças começaram
a bater as mãos e os pés: “O herói apareceu! O herói
apareceu!”.
Eu
estava de farda nova, medalha no peito, o rosto coberto de carvão e
uma pá numa das mãos, não era nem carne nem peixe. Wang Renmei se
dobrava de tanto rir. No íntimo, eu estava numa completa confusão,
não sabia se ria ou chorava. Essa Wan Renmei parecia não bater
muito bem. Minha mãe gritou: “Leve-a para o quarto logo!”. Eu
disse a ela, cheio de ironia: “Vá para o quarto nupcial por
gentileza, minha senhora”. Wang Renmei respondeu: “Está muito
abafado lá dentro, aqui fora está fresco”. As crianças entoaram,
batendo as mãos e os pés: “Ó…Ó…Ó…”. Fui buscar um
punhado de doces dentro de casa, levei até a porta de entrada e
espalhei na ruazinha da frente. As crianças caíram em cima como um
enxame de abelhas e ficaram disputando os doces na lama. Peguei Wang
Renmei pelo pulso e a arrastei até o quarto. A porta era baixa e
ela, tum!, bateu a testa. “Ai”, gritou, “mãe do céu, acho que
quebrei a cabeça!” As tias convidadas se sacudiam de tanto rir.
A
casa era pequena, havia tanta gente lá dentro que não dava nem para
mexer a bunda. As três tiraram as capas de chuva, estavam pingando,
não tinha onde pendurar, a não ser por cima da porta. O chão já
estava molhado mesmo, cada pé que ali entrava trazia mais barro ou
água, e se misturava, e se remexia, e o lamaçal estava formado. O
quarto era pequeno, o kang não media nem dois metros de
comprimento, na cabeceira estava o enxoval de Wang Renmei: quatro
edredons novos, dois acolchoados, dois cobertores de lã, dois
travesseiros, formavam uma pilha que quase alcançava o forro de
papel do teto. Mal encostou o traseiro no kang, Wang Renmei
gritou: “Ai, que kang é esse pelo amor da minha mãe? Isto
é uma chapa quente!”.
Minha
mãe explodiu, batia com a bengala no chão, dizendo: “E mesmo que
for chapa quente, quero ver você sentar nele para queimar essa sua
bunda!”.
Wang
Renmei deu outra risada, e me falou em voz baixa: “Corre Corre, sua
mãe é engraçada. Se eu queimar minha bunda, como é que vou dar à
luz um campeão mundial?”.
Eu
estava louco de raiva, mas não convinha sair do sério numa data
auspiciosa, estiquei a mão e toquei a esteira do kang, de
fato estava bem quente. Como iríamos receber muita gente, todas as
tias possíveis tinham sido convidadas, os dois fogões da casa
arderam sem parar, assaram pão de vapor, fritaram legumes,
cozinharam macarrão. Em consequência, a esteira sobre o kang
estava a ponto de derreter. Tirei um edredom da pilha, dobrei-o em
quadrado e coloquei num canto: “Sente-se por obséquio, minha
senhora”. Wang Renmei riu e disse: “Corre Corre, você é
engraçado, cada vez que abre a boca fala ‘minha senhora’, por
que não me chama do jeito que costumamos falar por aqui? Pode me
chamar de ‘mulher’ ou de ‘Renmei’, como antes”. Eu não
sabia o que dizer, estava casado com uma pateta, o que mais poderia
dizer? Ela nem mesmo percebeu que eu a chamava de “minha senhora”
por pura ironia, para descontar a raiva que sentia. “Pois bem,
mulher, Renmei, faça o favor de sentar no kang.” Com a
ajuda das duas primas, tirei seus sapatos, tirei suas meias de náilon
ensopadas e a coloquei sobre o kang. Uma vez ali em cima, ela
ficou de pé, a cabeça encostando no forro do teto. Nesse espaço
baixo e estreito, ela parecia ainda mais alta. Aqueles dois cambitos
de ave pernalta praticamente não tinham panturrilha. Os pés não
eram pequenos, eram quase do tamanho dos meus. Ela ficava dando
voltas descalça sobre aquele kang de menos de dois metros
quadrados. Normalmente as damas de honra devem permanecer sentadas no
leito com a noiva, mas Wang Renmei ocupava todo o espaço, restava às
suas primas ficar uma em pé e a outra sentada na beirada do kang.
Talvez para mostrar que era alta, pôs-se na ponta dos pés e tocou o
teto com a cabeça. Parece ter achado graça nesse brinquedo, porque
começou a saltitar na ponta dos pés, dando voltas sobre o kang,
deixando a cabeça bater no teto, tum-tum. Minha mãe espichou a
cabeça para dentro do quarto e disse: “Minha nora, se você
quebrar esse kang, onde vai dormir esta noite?”. E ela
respondeu, sorrindo: “Se o kang quebrar, a gente dorme no
chão!”.
À
noitinha minha tia chegou para jantar. Entrou pelo portão, gritando:
“A excelentíssima senhora sua tia chegou! Como é que ninguém vem
me receber?”.
Saímos
correndo para recebê-la. Minha mãe disse: “Com essa chuva,
pensamos que não viria”.
Segurava
um guarda-chuva de papel envernizado, arregaçara as calças e andava
com os pés nus, os sapatos presos no sovaco.
“Essa
chuva não é nada, não deixaria de vir nem que chovesse canivete!”,
minha tia disse. “Meu sobrinho é um herói, como eu poderia faltar
ao casamento de um herói?” Eu disse: “Tia, quem disse que sou
herói? Sou militar de fogão, trabalhei na cozinha, nunca vi nem
sombra do inimigo”.
“Quem
trabalha na cozinha também é importante. As pessoas são ferro, a
comida é aço. Se os soldados não estiverem bem alimentados”,
disse a tia, “como vão conseguir romper as linhas inimigas?
Rápido, sirvam-me a comida, ainda preciso voltar depois da janta, o
rio está subindo, daqui a pouco encobre a ponte e eu não vou ter
como passar.”
“Se
não conseguir voltar, passe uns dias aqui conosco”, minha mãe
disse, “faz tempo que não ouvimos suas histórias, esta noite
vamos poder pôr o assunto em dia.”
“Não
posso de jeito nenhum”, disse minha tia, “amanhã tenho reunião
do Conselho Consultivo Político no distrito.”
“Corre
Corre, sabia que sua tia agora é alta funcionária?”, minha mãe
perguntou. “Virou membro do comitê permanente do Conselho
Consultivo Político!”
“E
isso lá é ser alta funcionária? Só me puseram ali para fazer
número.”
Minha
tia entrou no quarto do oeste, a parentada ali se agitou. Quem estava
sentado no kang se levantou para lhe ceder lugar,
espremendo-se onde podiam. “Fiquem nos seus lugares”, ela disse,
“já estou de saída, só vim beliscar alguma coisa.”
Minha
mãe mandou minha irmã servir alguma coisa para nossa tia, que
levantou a tampa da panela e pegou um pãozinho. Como estava muito
quente, jogou o pãozinho de uma mão para outra enquanto assoprava,
sua boca fazia fuuu-fuuu. Partiu o pãozinho com as mãos, pegou umas
pequenas porções da carne cozida, colocou entre os pedaços de pão
e deu uma bela mordida. “Assim está bom”, disse ela mastigando
as palavras junto com a comida, “nem precisa trazer prato, nem
tigela, comer assim é que é bom, desde que entrei nessa carreira,
nunca mais tive tempo de sentar para comer.”
Ainda
com a boca cheia, minha tia disse: “Deixe-me ver o seu quarto
nupcial”.
Como
achava o kang quente demais, Wang Renmei estava sentada no
parapeito da janela e lia uma revista em quadrinhos, aproveitando a
luz que vinha lá de fora. Dava risadas enquanto lia.
“Minha
tia está aqui!”, eu disse.
Wang
Renmei pulou de onde estava e segurou a mão da minha tia: “Eu
queria falar com a senhora e a senhora veio!”.
“O
que é que queria falar comigo?”, minha tia perguntou.
Wang
Renmei disse, abaixando a voz: “Dizem que a senhora tem aí um
remédio para fazer nascer gêmeos”.
Minha
tia fechou a cara e perguntou: “Quem te disse isso?”.
“Foi
Wang Vesícula.”
“É
conversa fiada!” Minha tia engasgou com o pãozinho, tossiu, ficou
com o rosto vermelho, minha irmã trouxe meia tigelinha de água, ela
bebeu, deu uns tapinhas no peito e disse com seriedade: “Esse
remédio não existe, e mesmo que existisse, quem é que teria
coragem de receitar?”.
“Wang
Vesícula contou que lá em Chenjiazhuang tem uma mulher que tomou o
remédio que a senhora receitou e teve um casal de gêmeos”, disse
Wang Renmei.
A
tia entregou a minha irmã o meio pãozinho que tinha na mão e
disse: “Que raiva! Wang Vesícula, aquela peste! Tive o maior
trabalho para tirar a criança da barriga daquela bostinha e ela
ainda sai espalhando boatos a meu respeito sem um pingo de
consideração. A próxima vez que a encontrar, vou arrancar a língua
dela”.
“Tia,
não se zangue”, falei enquanto chutava discretamente a canela de
Wang Renmei. “Cala a boca!”, sussurrei.
Wang
Renmei deu um grito exagerado: “Ai, mãe do céu, assim você me
quebra a perna!”.
Minha
mãe disse, irritada: “Perna de cachorro não quebra!”.
“Quebra
sim, sogrinha!”, respondeu Wang Renmei. “O cachorro amarelo do
meu tio quebrou a perna no ‘gato de ferro’ do Xiao Lábio
Superior.”
Depois
de se aposentar, Xiao Lábio Superior voltou para a aldeia e
especializou-se em judiar dos animais. Arranjou uma espingarda para
matar aves e saía atirando a torto e a direito, atirava em tudo que
voava, não deixava escapar nem a pega, que é um pássaro da sorte
para a gente da aldeia. Arranjou uma rede finíssima e foi pescar por
aí, não deixou escapar nem os menores peixinhos. E ainda arranjou
um “gato de ferro”, uma formidável mandíbula de metal — que
ele escondia pelo bosque e nas sepulturas do campo para pegar texugo
e doninha. O cachorro do tio de Wang Renmei pisou por acidente no tal
“gato de ferro” e quebrou a perna.
À
menção do nome de Xiao Lábio Superior, o rosto da minha tia se
transformou. Ela rangeu os dentes: “Esse imprestável merecia ter
sido fulminado por um punhado de raios há muito tempo, mas continua
por aí, na vida mansa, comendo e bebendo do bom e do melhor, tem uma
saúde de touro, parece que até Deus tem medo desse infeliz!”.
“Tia”,
disse Wang Renmei, “Deus pode ter medo dele, mas eu não tenho,
posso me vingar dele pela senhora!”
Minha
tia se alegrou e riu. Quando terminou de rir, disse: “Sobrinha, me
desculpe a franqueza, quando meu sobrinho me contou que iria se casar
com você, fui contra, mas assim que soube que foi você que rompeu
com o filho de Xiao Lábio Superior, concordei na hora. Eu disse
muito bem, essa menina tem caráter! O que há de mais em entrar para
a universidade? No futuro, nossos descendentes não vão apenas
estudar numa universidade, vão estudar nas mais renomadas, como a
Universidade de Pequim, a Tsinghua, Cambridge, Oxford. Não vão só
se graduar, vão fazer mestrado e doutorado! Vão ser acadêmicos e
cientistas. E, claro, ainda vão ser campeões mundiais!”.
“Mas
então, tia”, disse Wang Renmei, “a senhora precisa me receitar
aquele remédio para ter gêmeos, vou gerar mais dois bons
descendentes para a família Wan e matar Xiao Lábio Superior de
raiva!”
“Mas
será possível?! Dizem que te falta um parafuso, será que falta
mesmo? Me enrolou esse tempo todo para me fazer cair de novo na sua
conversa.” Minha tia disse, muito séria: “Vocês, jovens, devem
escutar o Partido, seguir o Partido, não podem ficar pensando em
burlar as regras. O planejamento familiar é uma política nacional
básica, é assunto da mais alta relevância. O secretário comanda e
o Partido todo colabora. Mostrar o caminho, mostrar o exemplo.
Reforçar a pesquisa científica. Melhorar a técnica, implementar as
medidas. É preciso perseverar no movimento das massas. Um filho por
casal é uma política forjada em ferro, não vai mudar nos próximos
cinquenta anos. Se não controlarmos o crescimento populacional,
nosso país está acabado. Corre Corre, você é membro do Partido, é
um militar revolucionário, tem a obrigação de servir de exemplo
aos demais”.
“Tia,
a senhora me dá o remédio sem ninguém ver, eu tomo e ninguém fica
sabendo”, disse Wang Renmei.
“Mas
esta moça tem mesmo um parafuso a menos. Eu já disse e vou repetir:
esse remédio não existe! E mesmo que existisse, eu não poderia dar
a você! Sou membro do Partido, membro do Conselho Consultivo
Político, vice-diretora do Grupo Dirigente de Planejamento Familiar,
como é que eu poderia ser a primeira a infringir a lei? Posso ter
sofrido algumas injustiças, mas uma coisa é certa: sou comunista de
coração, isso não vai mudar nunca. Sou do Partido enquanto viver,
serei do Partido depois de morrer. Para onde o Partido aponta, eu
vou. Corre Corre, sua mulher é estúpida, não tem um pingo de
discernimento, você deve estar consciente dessa situação e não
fazer besteira. Agora me deram um novo apelido: ‘Rainha do
Inferno’. Fiquei lisonjeada! Sua tia faz de tudo por aquelas que
querem ter um filho conforme o planejamento familiar, queimo incenso,
faço abluções. Mas quanto àquelas que engravidam fora do
planejamento”, minha tia cortou o ar com a mão num movimento
brusco, “ninguém me escapa!”
Mo Yan, in As rãs
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