Outono
carioca de 1960. Um show marcou para sempre a história da música
brasileira. E a minha vida. Numa noite quente, no anfiteatro ao ar
livre da Faculdade de Arquitetura, na Praia Vermelha, as luzes se
apagaram e ouviu-se a gravação de Sylvinha Telles e grande
orquestra de “Eu preciso de você” (Tom Jobim e Aloysio de
Oliveira). Uma abertura festiva e empolgante, não em ritmo de bossa
nova mas de overture da Broadway. Uma a uma se iluminaram as janelas
do segundo andar atrás do palco e de cada uma delas foi desfraldada
uma bandeira, com as palavras “a noite”, “do amor”, “do
sorriso” e “da flor”. No meio do público que superlotava os
dois mil lugares do anfiteatro, aplaudi delirantemente.
Muita
gente estava ali para ver João Gilberto, lançando o seu segundo Lp,
O amor, o sorriso e a flor, que estourava nas rádios com clássicos
instantâneos como “Samba de uma nota só”, “Corcovado”, “O
pato” e “Meditação”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, cujos
versos deram nome ao disco e ao show e um slogan para o novo
movimento musical:
“Quem
acreditou no amor, no sorriso e na flor, então sonhou, sonhou, e
perdeu a paz, o amor, o sorriso e a flor se transformam depressa
demais...”
Muitos
estavam ali para ver Norma Bengell, que era uma das mulheres mais
bonitas e desejadas do Brasil, vedete das revistas de Carlos Machado,
estrela da coluna de Stanislaw Ponte Preta, sonho erótico nacional.
Ela tinha lançado um disco pela Odeon, Oooooh Norma, onde cantava
com voz sexy e cool standards americanos, canções de Tom Jobim e o
“Obala-lá” de João Gilberto.
Alguns
poucos como eu estavam ali também para ouvir a bossa dos novos
cariocas Nara Leão, Nana e Dory Caymmi, Luiz Carlos Vinhas, Roberto
Menescal e Chico Feitosa e de paulistas desconhecidos como Sérgio
Ricardo, Johnny Alf, Pedrinho Mattar e Caetano Zama.
Ronaldo
Bôscoli era o apresentador e um dos produtores do show, numa
bem-sucedida manobra em conjunto com o marketing da Odeon: Ronaldo
lançava a sua turma de amigos, e a gravadora, o disco de João. Mas
a Odeon exagerou: escalou para a “Noite do amor, do sorriso e da
flor” alguns de seus artistas mais populares, como o nordestino e
bolerístico Trio Iraquitã e a explosiva sambista carioca Elza
Soares, que não tinham nada a ver com a bossa nova. Muito pelo
contrário.
Norma
entrou esfuziante, com cabelos louros e curtos e pernas enormes,
ovacionada pelo público.
Lindíssima,
cantou com voz felina uma música de Oscar Castro Neves e Luvercy
Fiorini dedicada às feiosas:
“Vem
menina feia, amor bonito você vai encontrar, há um pequeno príncipe
esperando por você, que vai de amor te encantar...”
E
depois, todo mundo, bossa ou não, cantou.
Cantou
até Normando Santos, um pernambucano muito alto e muito magro, com
uma voz grave e sotaque carregado e um estilo meio antigo de cantar.
Cheio de sorrisos e simpatia, ele abriu o vozeirão em “Jura de
pombo”, primeira parceria de Roberto Menescal com Ronaldo Bôscoli,
sobre uma briga de amor entre um casal de pombos, com final feliz.
Começava com a pombinha toda de branco indo se encontrar com um
pombo moreno.
A
letra não era de duplo sentido, mesmo num tempo em que “pombinha”
era uma lírica gíria para as partes femininas, era para ser
romântica e divertida, na linha do sucesso “Lobo bobo”, o
público riu e aplaudiu. Depois, surpresa: o paulista Caetano Zama
apresentou um ousado “samba concreto”, em parceria com Roberto
Freire, experimentalismo paulistano que já pretendia ir além da
bossa nova, que mal estava começando. “O menino e a rosa” era um
jogo de palavras e repetições em uns poucos acordes de violão e o
público não entendeu mas aplaudiu.
João
Gilberto não tinha nada a ver com tudo isso. João foi a grande
estrela da noite, fechando o show. Abriu com os hits de seu
novo disco, “Samba de uma nota só” e “O pato”, depois cantou
“Brigas nunca mais” em dueto com sua mulher Astrud e fechou com
“Meditação”, diante da plateia hipnotizada pela qualidade e
novidade das músicas e pelo ritmo e a harmonia em perfeita sincronia
com sua voz e seu violão. Como o amor, o sorriso e a flor da canção,
o show de João terminou depressa demais.
Nessa
noite inesquecível, além da presença suave e carismática de João,
me impressionaram a beleza e gostosura de Norma e o charme carioca de
Ronaldo e Nara. Nessa noite vi pela primeira vez o poeta Vinícius de
Moraes e ouvi as vozes do quarteto Os Cariocas, com suas
harmonizações dissonantes inspiradas nos grandes conjuntos vocais
americanos, ouvi o espantoso estilo serpenteante de Johnny Alf, um
negro de voz rouca e fraseado jazzístico. Adorei o ambiente jovem e
animado, a sensação de estar testemunhando o nascimento de alguma
coisa grande e bonita.
Durante
todo o show fiquei especialmente fascinado com os músicos do
conjunto, Luiz Carlos Vinhas no piano, Roberto Menescal com uma
incrível guitarra elétrica vermelha, o baterista Helcio Milito e
suas tambas, Bebeto no sax e Luiz Paulo no contrabaixo, um ritmo
sensacional, umas sonoridades diferentes, uns acordes estranhos, umas
músicas maravilhosas.
Desejei
ardentemente ser um deles.
Meu
primo Gugu, Augusto Mello Pinto, trabalhava na televisão e era amigo
de Ronaldo Bôscoli e das moças e rapazes da “Turma da bossa
nova”. Foi ele que me levou às primeiras festinhas musicais, que
trouxe a bossa nova para reuniões em nossa casa. Eu tinha 16 anos,
uma mãe bonita e musical e um pai simpático e inteligente e os dois
adoravam música e arte moderna, como a bossa nova. Minha vida ganhou
novo ritmo. Começou a virar uma festa, como as que se repetiam em
nosso apartamento na Rua Paissandu, onde eram presenças habituais
Ronaldo e Nara, que namoravam, Johnny Alf, que sempre levava um
“sobrinho” ou “afilhado”, Roberto Menescal, que era bonito,
discreto e cobiçado pelas garotas, a doce Alayde Costa, os elétricos
Luiz Carlos Vinhas e Luizinho Eça, as belas irmãs Toledo, a loura
Rosana e a morena Maria Helena, disputadas pela rapaziada, Chico
Fim-de-noite e seus óculos escuros. E o barbudo Miele, que não
cantava nem tocava mas era simpático e engraçado, o pintor José
Henrique Bello, que não era cantor mas fazia uma sempre aplaudida
imitação de João Gilberto cantando “Rapaz de bem”, de Johnny
Alf (que João jamais cantou), André Midani, um francês louro e
animado que trabalhava na Odeon com Aloysio de Oliveira, o designer
Aloysio Magalhães, com seus bigodões, que divertia o pessoal ao
violão com suas emboladas e desafios nordestinos. E até mesmo,
algumas poucas vezes, quando tinha menos gente, João Gilberto.
Uma
noite, no apartamento de meu avô, no Posto Seis, levado por Dory
Caymmi e diante de poucas testemunhas, João nos visitou. Cantou,
tocou e conversou muito com meu pai, que o admirava tanto quanto eu e
minha mãe e dizia que as palavras que saíam da boca de João eram
como seixos que vinham rolando e rolando por um rio até se tornarem
redondos e lisos, até virarem música.
Naquela
noite, naquele terraço sobre Copacabana, hipnotizado, vi e ouvi João
Gilberto de perto pela primeira vez.
[…]
Nelson Motta, in Noites Tropicais
Nenhum comentário:
Postar um comentário