Durante
a Guerra Fria em Angola (que de fria só tinha mesmo o medo que
gelava a espinha sempre que o nosso sangrento conflito civil se
intensificava), aprendi desde cedo a conviver com autoritarismos de
toda espécie. Quando vim ao mundo, em 1978, o país já era uma
nação independente, mas, à medida que me foi sendo ensinada a arte
da sobrevivência, a palavra “liberdade”, dependendo do lugar e
do interlocutor, acarretava o risco de ser recebida como uma ofensa
ou um sonho impossível. Isso implicava uma intervenção urgente,
pois, se não nos curássemos dessa enfermidade com urgência
urgentíssima, alguém pouco preocupado com a nossa saúde poderia
vir bater-nos à porta de madrugada e fazer de nós um exemplo.
A
liberdade, principalmente a individual, me foi apresentada como sendo
coisa de louco, bêbado ou poeta. Algo que só está ao alcance de
uns poucos destemidos que a história tende a nos apresentar como
mártires. Liberdade para mim estava e está ainda na mesma categoria
da felicidade: não as discutimos com estranhos e se, por alguma
razão, sentíssemos a comichão de o fazer, teríamos de seguir
meticulosamente o sigilo conspiratório digno de um romance policial,
com portas trancadas, persianas corridas e o rádio ligado para
congestionar os microfones que a nossa paranoia imaginava existirem
escondidos nas paredes. Puro medo, mas, por via das dúvidas,
púnhamos o volume do rádio no onze, pois já dizia a sabedoria
popular: camarão que dorme, a onda leva.
Quando
passei a residir no hemisfério norte, ainda que o estatuto de
estrangeiro ditasse a forma como me relacionava com a palavra
“liberdade”, foi com o uso diário e exclusivo das línguas
europeias que me apercebi que dificilmente nos livraríamos dessa
ressaca colonial que nos embacia a mente. Ao transformar a literatura
no meu ofício, tenho feito uso do pretuguês e do inglês como um
par de ferramentas nas mãos de um mecânico para desenroscar
parafusos culturais, aceitando sem muito questionar o rótulo de
“literatura lusófona” que me é empregue e sentindo-me ora
incompleto e ora envergonhado por não estar a contribuir para a
construção de uma literatura angolana descolonizada. Uma literatura
que respondesse à minha inquietação: sem a presença, a
compreensão e o uso das línguas que carregam as memórias dos
nossos ancestrais, como poderemos gritar alto que a nossa história
não começa com a chegada dos europeus a África?
Um
dos livros mais importantes para estudar o uso das línguas europeias
nas literaturas africanas é o seminal Decolonising the Mind: the
Politics of Language in African Literature [Decolonizando a
mente: as políticas da linguagem na literatura africana], de Ngũgĩ
wa Thiong'o, editado nos anos 1980. A obra aborda não só questões
literárias, mas também as contradições do neocolonialismo em
África, as ditaduras opressivas, as guerras e os saques
pornográficos dos recursos do continente patrocinados pelos países
do Ocidente e pela China. Uma obra que continua a ser atual e demarca
como poucas a frase de Frantz Fanon: “A língua é uma tecnologia
de poder”.Como eu, os angolanos nascidos depois da independência e
que cresceram nas áreas urbanas não falam as nossas línguas
autóctones. Quando visitamos os nossos familiares no interior, nos
vemos na situação caricata de precisar de um tradutor, que em
muitos casos acabam por ser os nossos pais — a geração que
abraçou a tarefa de construir não só um país, mas também a sua
identidade num mundo pós-colonial. Sou-lhes grato pelos sacrifícios,
mas é-me difícil compreender o porquê de terem descartado o ensino
das línguas bantus aos seus filhos. A resposta com que nos têm
brindado sobre as razões de tal descaso é a de que, por não
pertencer a nenhuma etnia, o português foi a língua que melhor
serviu ao projeto de unidade nacional em Angola.
Na
década de 1950, Óscar Ribas, Tomaz Vieira da Cruz e Castro
Soromenho intensificaram a dança entre as línguas de origem bantu e
o português, trazendo para a literatura a linguagem dos musseques.
Porém, com exceção da Bíblia, de alguns poemas e fábulas, nenhum
romance foi publicado nas nossas oito línguas nativas. Mesmo que
existissem, a maior parte da população não tem até hoje uma
relação com a palavra escrita na sua língua materna. Por isso, a
expressão oral e a música ditam como a cultura é produzida e
consumida em todo o território.
A
nossa dívida para com o grupo N'gola Ritmos, liderado por Liceu
Vieira Dias, é eterna. Foi através da música produzida por eles
nos anos 1950 que conseguimos não só resgatar muito da nossa
identidade cultural, mas também vislumbrar um futuro no qual a
música contemporânea angolana poderia dialogar com o passado sem
comprometer em nada a sua essência. As aparições do N'gola Ritmos
na televisão portuguesa, em 1964, precisam ser melhor estudadas,
pois aconteceram na altura em que os movimentos de libertação
combatiam nas matas o exército português. E, embarcando na ilusão
do luso-tropicalismo, Portugal chamou para a metrópole Nino Ndongo,
Fontinhas, Xôdo, Zé Cordeiro, Lourdes Van-Dúnem e Gégé. Cantaram
em quimbundu canções de protesto e canções de dor que narram a
condição do angolano — para mim, as mais belas canções do
mundo.O nosso primeiro presidente, António Agostinho Neto,
discursando na União dos Escritores Angolanos em 1977, disse: “O
uso exclusivo da língua portuguesa, como língua oficial, veicular e
utilizável atualmente na nossa literatura, não resolve os nossos
problemas. E tanto no ensino primário, como provavelmente no médio,
será preciso utilizar as nossas línguas. E dada a sua diversidade
no país, mais tarde ou mais cedo deveremos tender para a aglutinação
de alguns dialetos, a fim de facilitar o contato”. Ou seja, o que
propunha era a criação do “angolanês”. Especulo o que ele
diria se ouvisse o vernáculo do kuduro, derivação da linguagem dos
musseques, e que acredito ser o mais próximo que conseguimos chegar
do sonho do autor do “Caminho do mato”. Convido o leitor a
ouvi-lo na voz de Belita Palma. É cantado em português, mas, quando
o ouço, imagino-o numa versão de Aline Frazão em quimbundu.
Kalaf Epalanga, in Minha pátria é a língua pretuguesa – Crônicas
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