Eu
multiplicarei os teus trabalhos e os teus partos.
(Gênesis,
III, 16)
Vinha
do seu giro habitual pelos bares da praia. Cambaleava, apesar de
amparar-se no ombro da moça morena. O recepcionista do hotel
observou que Colebra estava mais embriagado do que nas outras noites.
A mulher também não era a mesma da véspera, mas já se acostumara
a vê-lo mudar constantemente de companhia. Retirou do escaninho,
juntamente com a chave do apartamento, um envelope volumoso, que
entregou ao hóspede. Este, numa voz pastosa, pediu que mandassem
para seu quarto uma garrafa de uísque e dois copos:
— Sempre
comemoro o dia em que minha mulher me envia a mesada.
Os
dedos incertos, teve dificuldade em abrir o envelope. Ao rompê-lo,
espalharam-se pelo chão fotografias de recém-nascidos. Recolheu no
meio delas o cheque:
— São
meus filhos. Os da última safra. — E apontava para as fotos.
Pronunciara
as palavras com ódio, procurando ser sarcástico. Passou o braço
pela cintura da companheira e a conduziu até o elevador. Ficaram no
décimo andar.
A
moça morena desistiu de dormir com ele na terceira dose da bebida.
Largou-o, inconsciente, e ainda vestido.
Tão
logo ela abandonou o aposento, os meninos começaram a entrar pela
porta semicerrada. Depois de ocuparem o espaço livre do quarto,
subiram uns nos ombros dos outros, para permitir a entrada dos que
permaneciam no corredor. Invadiram a cama e foram-se amontoando sobre
o corpo de Colebra, que forcejava para escapar à letargia alcoólica
e desvencilhar-se do peso incômodo, a crescer gradativamente. Tarde
recuperou a consciência. Ainda esbracejou, ouvindo o estalar de
pequenos ossos, romperem-se cartilagens, uma coisa viscosa a
empapar-lhe os cabelos. Quis gritar, a boca não lhe obedeceu.
Sufocado por fezes e urina, que desciam pelo seu rosto, vomitou.
1.
O pai não se opunha ao casamento, desde que realizado sob o regime
de separação de bens. Procurava, assim, preservar a fortuna da
filha, havida com o falecimento de uma tia.
Colebra
concordou:
— A
sua desconfiança é justa, pois sabe que, no momento, nem emprego
tenho. Em contrapartida, só me casarei mediante o compromisso de não
termos filhos.
A
exigência era fácil de ser atendida, porque a noiva tinha idêntico
pensamento. Repugnava-lhe uma prole — pequena ou numerosa.
2.
Após a cansativa cerimônia nupcial e uma viagem aérea, os dois
olhavam o mar da janela do hotel. Aglaia, porém, tinha pressa de ir
para a cama:
— Posso
despir-me aqui?
Um
insólito pudor instigou-o a apontar o banheiro do apartamento. Em
seguida voltou atrás:
— Onde
quiser. (O que lhe acontecera? Jamais se envergonhara diante de
mulheres desnudas!)
Ela
retornou ao quarto vestida com uma camisola transparente,
entremostrando a carnadura sólida e harmônica.
Colebra
esqueceu a momentânea reação de recato. Envolveu a jovem mulher
nos braços e, ao acomodá-la no leito, Aglaia se desnudou: do busto
despontaram os seios duros. Subiu as mãos pelas coxas dela e pensou,
satisfeito, que nenhum filho nasceria para deformar aquele corpo.
3.
Tudo era festa e ruído na vida deles. Acompanhados de grupos
irrequietos, corriam para a luz, refugiavam-se na penumbra. Vidros e
espelhos, tinham de sugar sofregamente o que a noite lhes oferecia.
Pela madrugada, insaciados, abrigavam-se em casa e prosseguiam o
ritual orgíaco até a explosão final do sexo. (O cemitério de
copos e garrafas.)
De
repente houve uma ruptura violenta: cessaram as regras de Aglaia.
Tentaram
se enganar, acreditando que a suspensão menstrual seria temporária
e retornaram aos programas noturnos, interrompidos durante a semana.
Para ela, entretanto, o champanha perdera o antigo sabor, a penumbra
a deprimia, sua apreensão contaminava o marido.
Implorantes,
abatidos, procuraram o ginecologista, que procedeu ao exame da
paciente e concluiu por uma possível gravidez.
— Possível?
— indagou aborrecida.
— Exato.
Certeza só daqui a algum tempo, através do teste de laboratório.
— Doutor,
tudo que o senhor diz é vago e reticente. Como posso estar grávida,
se tomei a pílula?
— Provavelmente
não observou a prescrição do anovulatório. Conheço vários casos
iguais ao seu.
— Se
ocorrer o pior, qual o prazo que terei para abortar?
— Entre
dois e três meses... Mas a senhora não vai cometer essa tolice. Sem
contar os riscos que sua saúde correrá, está sujeita a ganhar
alguns anos de prisão.
A
advertência do médico não os demoveu da intenção de impedir, de
qualquer modo, o nascimento da criança. Esperaram somente a época
oportuna para procurar a pessoa que se encarregaria da tarefa.
4.
Estava, desde a manhã do dia anterior, recostada no sofá, com uma
sonda no útero.
Além
do corpo dolorido, a náusea aumentava seu mal-estar. Dormitava a
pequenos intervalos e vagarosamente o sangue começou a escorrer,
intensificaram-se as dores.
No
instante em que Aglaia, impaciente com a demora do aborto, entrou em
crise histérica, a parteira a transferiu para a mesa obstétrica.
— Por
favor, a anestesia — pediu numa voz lamurienta.
Preocupada
em observar a dilatação do colo uterino, a mulher encarou-a com
raiva:
— Isto
aqui não é hospital.
Concentrou-se
novamente no seu trabalho e notou que a hemorragia tornava-se
abundante, aceleravam-se as contrações. Pouco depois o embrião
caía nas suas mãos. Jogou-o numa bacia e caminhou até o armário.
De lá trouxe um instrumento semelhante a uma colher de bordas
cortantes, que utilizou para fazer a curetagem. A paciente cerrou os
olhos, temerosa de ver a cena. Ultrapassara os limites do sofrimento
físico. Desmaiou.
Ao
chegar a casa, ela ingeriu uma dose avultada de barbitúricos. Mesmo
assim, não dormiu muito e acordou de madrugada com agudas cólicas
abdominais. Ansiada, sacudida pelos vômitos, seus gemidos
despertaram o marido. Assustado com o estado dela, telefonou ao
ginecologista e lhe fez um breve relato do que se passava. A resposta
seria de uma pessoa ofendida:
— Vocês
são uns irresponsáveis! Como puderam fazer isso, se foram alertados
das consequências?! Sigam imediatamente para o hospital.
5.
Útero perfurado — fora o diagnóstico do médico.
Nos
três dias posteriores à hospitalização, enfraquecida pelas
sucessivas hemorragias, Aglaia teve seu quadro clínico agravado por
uma septicemia.
Colebra
se desesperou: tinham de salvá-la, senão ele retrocederia na escala
social, os amigos desapareceriam à notícia de que voltara a ser um
pobretão. (E a estúpida não usara corretamente a pílula!)
O
dinheiro era sua ideia fixa. Sem diploma, habilitação para aspirar
ocupações rendosas e detestando trabalhar, temia o possível
retorno aos tempos dos pequenos empregos, dos biscates humilhantes.
Ia
e vinha pelos corredores, importunando as enfermeiras, à espera de
palavras tranquilizadoras.
Insatisfeito
com as respostas, sentindo-se vítima da incompetência dos médicos,
pensou ter descoberto uma saída, a única: pedir à esposa que
fizesse o testamento. Não desejava tudo para si, o sogro herdaria a
metade.
Ela
aquiesceu, sem forças para negar, prostrada pela anemia.
No
momento exato em que o tabelião, diante das testemunhas, perguntou
se a enferma estava em condições de decidir sobre o destino de seus
bens, o ginecologista entrou no quarto e, revoltado com a
imprudência, pois proibira as visitas, enxotou-os:
— Abutres,
para fora!
6
Por fim, o alívio, a convalescença, a alegria, um pouco murcha,
voltando. Bebiam menos descontraídos, sentindo pesar-lhes a sombra
do anovulatório, a ser usado sob rigoroso controle.
De
nada valeram as precauções e de novo Aglaia engravidou. Indignada,
saiu atrás do médico, que estranhou o fato: não compreendia, porém
os tratados confirmavam a existência de percentagem pequena de
falhas na utilização da pílula. Insistiu que continuasse a usá-la
e mudasse a marca do anticoncepcional.
Surpreendentemente
ela sofreu outra gravidez. Desconcertado, o ginecologista recomendou
o uso de um dispositivo intrauterino, que também não produziu o
efeito previsto.
Colebra
achou melhor procurarem outros médicos e estes sugeriram métodos
antigos, que incluíam tabelas e preservativos, sob a forma de
condoms, espermicidas, esponjas, supositórios. Não obstante os
filhos continuavam a vir.
Experimentaram
evitar os contatos sexuais. Nem com essa decisão Aglaia deixou de
engravidar. E o marido não podia suspeitar dela porque as crianças
só pareciam com ele: os mesmos cabelos louros, as sardas, os olhos
esverdeados, a pele clara, enquanto a mãe era morena.
Na
desesperança deixaram-se esterilizar e o resultado os decepcionou.
Em prazo mais curto do que o normal nasceram trigêmeos.
7.
Desencadeara o processo e de súbito o nascimento dos filhos não
obedecia ao período convencional, a gestação encurtava-se
velozmente. Nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias
após a fecundação. Jamais vinham sozinhos, mas em ninhadas de
quatro e cinco. Do tamanho de uma cobaia, cresciam com rapidez, logo
atingindo o desenvolvimento dos meninos normais.
Não
se prendiam ao corpo materno pelo cordão umbilical. Essa
circunstância facilitava o parto, sem que amenizasse as dores e
fossem menores os incômodos da gravidez.
Com
o tempo, tiveram de contratar uma parteira permanente e fazer
acréscimos na casa, pequena para conter a família.
Desde
que uma das crianças nascera dentro de um táxi, evitavam sair à
rua. O episódio serviu para acirrar as rixas entre os dois, que se
acusavam mutuamente da interminável série de partos.
Os
amigos pediam-lhes calma, os médicos insistiam que todo um processo
de fecundação fora violentamente alterado e a medicina não podia
explicar o inexplicável.
Insensíveis
aos conselhos e advertências, viam no sexo a maldição, a origem do
caos.
Consumiam-se
no rancor e, como fórmula de atenuar os atritos, concordaram em
dormir em quartos separados. A medida foi ineficaz. Em qualquer lugar
em que se defrontassem, reiniciavam as discussões.
Partiu
dela a iniciativa do desquite. Oferecia em troca, ao companheiro,
generosa pensão mensal. O marido hesitou em aceitá-la, julgando
conveniente não dar uma resposta imediata. Na simulação de
indiferença pela oferta, esperava negociar um acordo e obter uma
quantia maior que a oferecida.
8.
A mulher parecia ter-se desinteressado do assunto e ele se
impacientava, irritava-se com as crianças, barulhentas e sujas, que
um batalhão de empregadas se esforçava em vão para manter limpas.
Além da algazarra, das brigas, a desordem dominava a casa. Em meio a
móveis quebrados, fraldas molhadas e pedaços de brinquedos, os
pequenos destruidores se divertiam em jogar para o ar as bolas e
urinóis nem sempre vazios. Apesar da contínua vigilância, Colebra
se surpreendia, às vezes, com o impacto de um objeto atirado na sua
cabeça. Nessas ocasiões, reagia brutalmente, jogando os meninos
contra a parede. Reprimia, a custo, o impulso de esmagá-los com os
pés.
9.
Quando nasceram as primeiras filhas de olhos de vidro, Colebra ficou
confuso e uma dúvida, que nunca lhe ocorrera, perturbou-o,
apressando sua decisão de aceitar o desquite sugerido pela esposa.
Procurou-a um tanto temeroso de que, arrependida, ela recusasse o
acordo ou reduzisse o valor da mesada. Não houve, todavia,
dificuldade no acerto final. Disfarçando seu contentamento, ele se
afastou para cuidar da bagagem.
Do
seu quarto, ouviu gritos. Correu de volta à sala e encontrou Aglaia
soluçando:
— Não
me abandone, não me deixe sozinha a parir essas coisas que nem ao
menos se parecem comigo! Por favor, não me abandone!
O
marido ficou indeciso se ela se arrependera em consentir na separação
ou se apenas sofria as dores provocadas pelas contrações uterinas.
Na incerteza, retrocedeu para apanhar as malas e, no caminho, chamou
a parteira.
Murilo Rubião, in Obra Completa
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