terça-feira, 19 de setembro de 2023

Aglaia


Eu multiplicarei os teus trabalhos e os teus partos.
(Gênesis, III, 16)

Vinha do seu giro habitual pelos bares da praia. Cambaleava, apesar de amparar-se no ombro da moça morena. O recepcionista do hotel observou que Colebra estava mais embriagado do que nas outras noites. A mulher também não era a mesma da véspera, mas já se acostumara a vê-lo mudar constantemente de companhia. Retirou do escaninho, juntamente com a chave do apartamento, um envelope volumoso, que entregou ao hóspede. Este, numa voz pastosa, pediu que mandassem para seu quarto uma garrafa de uísque e dois copos:
Sempre comemoro o dia em que minha mulher me envia a mesada.
Os dedos incertos, teve dificuldade em abrir o envelope. Ao rompê-lo, espalharam-se pelo chão fotografias de recém-nascidos. Recolheu no meio delas o cheque:
São meus filhos. Os da última safra. — E apontava para as fotos.
Pronunciara as palavras com ódio, procurando ser sarcástico. Passou o braço pela cintura da companheira e a conduziu até o elevador. Ficaram no décimo andar.

A moça morena desistiu de dormir com ele na terceira dose da bebida. Largou-o, inconsciente, e ainda vestido.
Tão logo ela abandonou o aposento, os meninos começaram a entrar pela porta semicerrada. Depois de ocuparem o espaço livre do quarto, subiram uns nos ombros dos outros, para permitir a entrada dos que permaneciam no corredor. Invadiram a cama e foram-se amontoando sobre o corpo de Colebra, que forcejava para escapar à letargia alcoólica e desvencilhar-se do peso incômodo, a crescer gradativamente. Tarde recuperou a consciência. Ainda esbracejou, ouvindo o estalar de pequenos ossos, romperem-se cartilagens, uma coisa viscosa a empapar-lhe os cabelos. Quis gritar, a boca não lhe obedeceu. Sufocado por fezes e urina, que desciam pelo seu rosto, vomitou.

1. O pai não se opunha ao casamento, desde que realizado sob o regime de separação de bens. Procurava, assim, preservar a fortuna da filha, havida com o falecimento de uma tia.
Colebra concordou:
A sua desconfiança é justa, pois sabe que, no momento, nem emprego tenho. Em contrapartida, só me casarei mediante o compromisso de não termos filhos.
A exigência era fácil de ser atendida, porque a noiva tinha idêntico pensamento. Repugnava-lhe uma prole — pequena ou numerosa.

2. Após a cansativa cerimônia nupcial e uma viagem aérea, os dois olhavam o mar da janela do hotel. Aglaia, porém, tinha pressa de ir para a cama:
Posso despir-me aqui?
Um insólito pudor instigou-o a apontar o banheiro do apartamento. Em seguida voltou atrás:
Onde quiser. (O que lhe acontecera? Jamais se envergonhara diante de mulheres desnudas!)
Ela retornou ao quarto vestida com uma camisola transparente, entremostrando a carnadura sólida e harmônica.
Colebra esqueceu a momentânea reação de recato. Envolveu a jovem mulher nos braços e, ao acomodá-la no leito, Aglaia se desnudou: do busto despontaram os seios duros. Subiu as mãos pelas coxas dela e pensou, satisfeito, que nenhum filho nasceria para deformar aquele corpo.

3. Tudo era festa e ruído na vida deles. Acompanhados de grupos irrequietos, corriam para a luz, refugiavam-se na penumbra. Vidros e espelhos, tinham de sugar sofregamente o que a noite lhes oferecia. Pela madrugada, insaciados, abrigavam-se em casa e prosseguiam o ritual orgíaco até a explosão final do sexo. (O cemitério de copos e garrafas.)
De repente houve uma ruptura violenta: cessaram as regras de Aglaia.
Tentaram se enganar, acreditando que a suspensão menstrual seria temporária e retornaram aos programas noturnos, interrompidos durante a semana. Para ela, entretanto, o champanha perdera o antigo sabor, a penumbra a deprimia, sua apreensão contaminava o marido.
Implorantes, abatidos, procuraram o ginecologista, que procedeu ao exame da paciente e concluiu por uma possível gravidez.
Possível? — indagou aborrecida.
Exato. Certeza só daqui a algum tempo, através do teste de laboratório.
Doutor, tudo que o senhor diz é vago e reticente. Como posso estar grávida, se tomei a pílula?
Provavelmente não observou a prescrição do anovulatório. Conheço vários casos iguais ao seu.
Se ocorrer o pior, qual o prazo que terei para abortar?
Entre dois e três meses... Mas a senhora não vai cometer essa tolice. Sem contar os riscos que sua saúde correrá, está sujeita a ganhar alguns anos de prisão.
A advertência do médico não os demoveu da intenção de impedir, de qualquer modo, o nascimento da criança. Esperaram somente a época oportuna para procurar a pessoa que se encarregaria da tarefa.

4. Estava, desde a manhã do dia anterior, recostada no sofá, com uma sonda no útero.
Além do corpo dolorido, a náusea aumentava seu mal-estar. Dormitava a pequenos intervalos e vagarosamente o sangue começou a escorrer, intensificaram-se as dores.
No instante em que Aglaia, impaciente com a demora do aborto, entrou em crise histérica, a parteira a transferiu para a mesa obstétrica.
Por favor, a anestesia — pediu numa voz lamurienta.
Preocupada em observar a dilatação do colo uterino, a mulher encarou-a com raiva:
Isto aqui não é hospital.
Concentrou-se novamente no seu trabalho e notou que a hemorragia tornava-se abundante, aceleravam-se as contrações. Pouco depois o embrião caía nas suas mãos. Jogou-o numa bacia e caminhou até o armário. De lá trouxe um instrumento semelhante a uma colher de bordas cortantes, que utilizou para fazer a curetagem. A paciente cerrou os olhos, temerosa de ver a cena. Ultrapassara os limites do sofrimento físico. Desmaiou.
Ao chegar a casa, ela ingeriu uma dose avultada de barbitúricos. Mesmo assim, não dormiu muito e acordou de madrugada com agudas cólicas abdominais. Ansiada, sacudida pelos vômitos, seus gemidos despertaram o marido. Assustado com o estado dela, telefonou ao ginecologista e lhe fez um breve relato do que se passava. A resposta seria de uma pessoa ofendida:
Vocês são uns irresponsáveis! Como puderam fazer isso, se foram alertados das consequências?! Sigam imediatamente para o hospital.

5. Útero perfurado — fora o diagnóstico do médico.
Nos três dias posteriores à hospitalização, enfraquecida pelas sucessivas hemorragias, Aglaia teve seu quadro clínico agravado por uma septicemia.
Colebra se desesperou: tinham de salvá-la, senão ele retrocederia na escala social, os amigos desapareceriam à notícia de que voltara a ser um pobretão. (E a estúpida não usara corretamente a pílula!)
O dinheiro era sua ideia fixa. Sem diploma, habilitação para aspirar ocupações rendosas e detestando trabalhar, temia o possível retorno aos tempos dos pequenos empregos, dos biscates humilhantes.
Ia e vinha pelos corredores, importunando as enfermeiras, à espera de palavras tranquilizadoras.
Insatisfeito com as respostas, sentindo-se vítima da incompetência dos médicos, pensou ter descoberto uma saída, a única: pedir à esposa que fizesse o testamento. Não desejava tudo para si, o sogro herdaria a metade.
Ela aquiesceu, sem forças para negar, prostrada pela anemia.
No momento exato em que o tabelião, diante das testemunhas, perguntou se a enferma estava em condições de decidir sobre o destino de seus bens, o ginecologista entrou no quarto e, revoltado com a imprudência, pois proibira as visitas, enxotou-os:
Abutres, para fora!

6 Por fim, o alívio, a convalescença, a alegria, um pouco murcha, voltando. Bebiam menos descontraídos, sentindo pesar-lhes a sombra do anovulatório, a ser usado sob rigoroso controle.
De nada valeram as precauções e de novo Aglaia engravidou. Indignada, saiu atrás do médico, que estranhou o fato: não compreendia, porém os tratados confirmavam a existência de percentagem pequena de falhas na utilização da pílula. Insistiu que continuasse a usá-la e mudasse a marca do anticoncepcional.
Surpreendentemente ela sofreu outra gravidez. Desconcertado, o ginecologista recomendou o uso de um dispositivo intrauterino, que também não produziu o efeito previsto.
Colebra achou melhor procurarem outros médicos e estes sugeriram métodos antigos, que incluíam tabelas e preservativos, sob a forma de condoms, espermicidas, esponjas, supositórios. Não obstante os filhos continuavam a vir.
Experimentaram evitar os contatos sexuais. Nem com essa decisão Aglaia deixou de engravidar. E o marido não podia suspeitar dela porque as crianças só pareciam com ele: os mesmos cabelos louros, as sardas, os olhos esverdeados, a pele clara, enquanto a mãe era morena.
Na desesperança deixaram-se esterilizar e o resultado os decepcionou. Em prazo mais curto do que o normal nasceram trigêmeos.

7. Desencadeara o processo e de súbito o nascimento dos filhos não obedecia ao período convencional, a gestação encurtava-se velozmente. Nasciam com seis, três, dois meses e até vinte dias após a fecundação. Jamais vinham sozinhos, mas em ninhadas de quatro e cinco. Do tamanho de uma cobaia, cresciam com rapidez, logo atingindo o desenvolvimento dos meninos normais.
Não se prendiam ao corpo materno pelo cordão umbilical. Essa circunstância facilitava o parto, sem que amenizasse as dores e fossem menores os incômodos da gravidez.
Com o tempo, tiveram de contratar uma parteira permanente e fazer acréscimos na casa, pequena para conter a família.
Desde que uma das crianças nascera dentro de um táxi, evitavam sair à rua. O episódio serviu para acirrar as rixas entre os dois, que se acusavam mutuamente da interminável série de partos.
Os amigos pediam-lhes calma, os médicos insistiam que todo um processo de fecundação fora violentamente alterado e a medicina não podia explicar o inexplicável.
Insensíveis aos conselhos e advertências, viam no sexo a maldição, a origem do caos.
Consumiam-se no rancor e, como fórmula de atenuar os atritos, concordaram em dormir em quartos separados. A medida foi ineficaz. Em qualquer lugar em que se defrontassem, reiniciavam as discussões.
Partiu dela a iniciativa do desquite. Oferecia em troca, ao companheiro, generosa pensão mensal. O marido hesitou em aceitá-la, julgando conveniente não dar uma resposta imediata. Na simulação de indiferença pela oferta, esperava negociar um acordo e obter uma quantia maior que a oferecida.

8. A mulher parecia ter-se desinteressado do assunto e ele se impacientava, irritava-se com as crianças, barulhentas e sujas, que um batalhão de empregadas se esforçava em vão para manter limpas. Além da algazarra, das brigas, a desordem dominava a casa. Em meio a móveis quebrados, fraldas molhadas e pedaços de brinquedos, os pequenos destruidores se divertiam em jogar para o ar as bolas e urinóis nem sempre vazios. Apesar da contínua vigilância, Colebra se surpreendia, às vezes, com o impacto de um objeto atirado na sua cabeça. Nessas ocasiões, reagia brutalmente, jogando os meninos contra a parede. Reprimia, a custo, o impulso de esmagá-los com os pés.

9. Quando nasceram as primeiras filhas de olhos de vidro, Colebra ficou confuso e uma dúvida, que nunca lhe ocorrera, perturbou-o, apressando sua decisão de aceitar o desquite sugerido pela esposa. Procurou-a um tanto temeroso de que, arrependida, ela recusasse o acordo ou reduzisse o valor da mesada. Não houve, todavia, dificuldade no acerto final. Disfarçando seu contentamento, ele se afastou para cuidar da bagagem.
Do seu quarto, ouviu gritos. Correu de volta à sala e encontrou Aglaia soluçando:
Não me abandone, não me deixe sozinha a parir essas coisas que nem ao menos se parecem comigo! Por favor, não me abandone!
O marido ficou indeciso se ela se arrependera em consentir na separação ou se apenas sofria as dores provocadas pelas contrações uterinas. Na incerteza, retrocedeu para apanhar as malas e, no caminho, chamou a parteira.

Murilo Rubião, in Obra Completa

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