sábado, 30 de setembro de 2023

1519 – Cempoala

Cortez

Crepúsculo das altas chamas na costa de Veracruz. Onde naus estão ardendo e ardem os soldados rebeldes pendurados das traves de madeira da nau capitã. Enquanto abre sua bocarra o mar devorando as fogueiras, Hernán Cortez, de pé sobre a areia aperta o pomo de sua espada e descobre a cabeça.
Não só as naves e os enforcados foram a pique. Já não haverá regresso; nem mais vida que a que nascida a partir de agora, traga consigo o ouro e a glória ou o abutre da derrota. Na praia de Veracruz afundaram os sonhos dos que bem que gostariam de voltar a Cuba, para dormir a sesta colonial em redes tecidas, envolvidos em cabeleiras de mulher e fumaça de charuto: o mar conduz ao passado e à terra, ao perigo. Em lombo de cavalo irão os que puderam pagá-lo, os demais irão a pé: setecentos homens México adentro, até as serras e os vulcões e o mistério de Montezuma.
Cortez ajusta seu chapéu de plumas e dá as costas às chamas. De um galope chega ao casario indígena de Cempoala, enquanto cai a noite. Não diz nada à tropa. Logo ficarão sabendo.
Bebe vinho, sozinho em sua tenda. Talvez pense nos homens que matou sem confissão ou nas mulheres que penetrou sem boda desde seus dias de estudante em Salamanca, que tão remotos parecem, ou em seus perdidos anos de burocrata nas Antilhas, durante o tempo de espera. Talvez pense no governador Diego Velázquez, que estará tremendo de fúria em Santiago de Cuba. Com certeza sorri, ao pensar neste dormilão boboca, cujas ordens nunca mais obedecerá; ou na surpresa que espera os soldados que está escutando amaldiçoar nas rodas de dados e baralho do acampamento.
Algo disso anda em sua cabeça, ou talvez a fascinação e o pânico dos dias que estão por vir; e então ergue o olhar, a vê na porta e à contraluz a reconhece. Se chamava Malinali ou Malinche quando o cacique de Tabasco deu-a de presente a ele. Faz uma semana que se chama Marina.
Cortez lhe diz umas quantas palavras enquanto ela, imóvel, espera. Depois, sem um gesto, a moça desata os cabelos e a roupa. Um redemoinho de tecidos coloridos cai entre seus pés despidos e ele cala quando o corpo dela aparece e resplandece.
A poucos passos dali, o soldado Bernal Díaz del Castillo escreve, à luz da lua, a crônica da jornada. Usa como mesa um tambor.

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

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