quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Tempo e contratempo | Junho de 2014



Humor envelhece. Quando a Companhia das Letras me chamou para escrever sobre o Millôr, tremi nas bases. E se ele tiver envelhecido? Essa parte da vida é triste. Depois de morrer, a gente continua envelhecendo. Ou melhor, as pessoas continuam envelhecendo. A gente, por não envelhecer junto, acaba perdendo o vigor, saindo do tom, soando repetitivo de tanto que já nos repetiram. E se o Millôr, nosso humorista mais inteligente e mordaz, tiver ficado obsoleto? Já aconteceu com outros, tão bons quanto ele. Já não assistimos aos filmes de Oscarito e nem ouvimos os programas da PRK30. Humor passa. Mais rápido do que o drama. Seu material é a sociedade atual, e ela muda o tempo todo.
Breve flashback. Tinha oito anos quando percebi que o Papai Noel que frequentava minha casa uma vez por ano parecia demais com meu avô, e os dois nunca estavam na sala ao mesmo tempo. Fui o último dos primos a perceber. Decepcionei-me duplamente: o Papai Noel não existia e eu fui estúpido o bastante para acreditar nele.
Passei a duvidar de tudo. Como saber se a Vovó Mafalda existe? Como saber se a Vovó Mafalda não é o meu avô? E o chão? O fogo? Logo percebi que o fogo existia, quando me queimei. Na falta de prova melhor, passei a acreditar cegamente nos meus sentidos (depois deixei de acreditar, quando usei drogas. Mas isso foi muito depois).
Não demorei a duvidar da existência de Deus. Ele se parecia com meu avô. Mais do que a Vovó Mafalda. E ao contrário da Vovó Mafalda, que estava na televisão ao mesmo tempo que meu avô estava na poltrona, eu nunca tinha visto Deus e o meu avô ao mesmo tempo, no mesmo lugar. Pra falar a verdade, eu nunca tinha sequer visto Deus. Será que, assim como Papai Noel e Vovó Mafalda, pensei, Deus é só um velhinho que inventaram pra gerar lucro?
Talvez tenha sido pra aplacar essa dúvida que ganhei de presente um livro chamado A Bíblia para crianças. Gostava muito de ler e lembro que devorei aquelas páginas com a mesma avidez dedicada aos meus livros preferidos. No entanto, ao contrário de Convenção das bruxas e O grande amor do pequeno vampiro, aquela história pecava por não ter coerência interna. Por que Deus criou o mundo e só depois criou a luz? Não era mais fácil ter feito o contrário? Os filhos de Adão e Eva eram irmãos? E tiveram filhos? Não é pecado? Procurei em vão pelo nome do autor, para lhe escrever uma carta. Não havia nenhuma menção ao autor, somente ao ilustrador, o que não me servia de nada. Pensei que talvez o protagonista pudesse me esclarecer alguma coisa.
Resolvi convocá-lo. Lembro-me como se fosse ontem. Fui até a janela do quarto e pensei bem forte: “Aparece, se você existe”. Nada. “Vai, só pra mim, eu não conto pra ninguém.” Repeti em voz alta: “Aparece, cara”. Quem sabe, se eu disser as palavras mágicas, ele vem. “Por favor. Eu estou pedindo por favor.” Nada.
Passei um bom tempo inconsolável. Ou bem Deus não existia, ou não estava nem aí pra mim. Ou ambas as coisas. Não, ambas as coisas não era possível. O fato é que o mundo ficou com uma lacuna impreenchível. Por que isso tudo? Pra que isso tudo? O que é isso tudo? O que vem depois disso tudo?
Foi por acaso (será?) que topei com um livro chamado A Bíblia do caos. O título me interessou, embora não soubesse o que é caos. Ou talvez por isso mesmo. O título era mais convidativo do que A Bíblia para crianças ou A Bíblia Sagrada. E embaixo do título, estava escrito: Millôr Definitivo. Pelo menos o autor dessa bíblia tinha coragem de assiná-la.
Logo na primeira página, percebi que aquilo, sim, era um livro que explicava o mundo. “Viver é desenhar sem borracha.” Em cada verbete, Millôr revelava verdades subversivas. “O pessimista é um sujeito que acerta duas vezes: quando acerta e quando erra.” E, finalmente, a frase que me arrebatou: “Se Deus existisse, já teria me convencido”.
Usei o livro de todos os jeitos. Decorava as frases, uma por uma. Fazia perguntas e abria o livro numa página aleatória, como se faz com o I Ching. Anotava uma frase no caderno e assinava Gregorio Duvivier, só pra sentir como seria ter escrito uma frase dessas.
Um dia, minha mãe me apresentou para um senhor careca, atlético, de nariz grande e olhos vivos. “Esse é o Millôr”, ela disse. “O definitivo?”, perguntei. Ele não se parecia com Deus. Faltavam a barba e a cabeleira. Mas ele pelo menos existia. Decidi, desde então, que só ia venerar um Deus que frequentasse a minha casa.
E assim foi. Pelo menos um domingo por mês, o Millôr almoçava na varanda lá de casa, acompanhado de sua inseparável companheira Cora Rónai. Almoçavam também minhas incontáveis tias, primos, e outros artistas e jornalistas agregados. Mas eu só tinha olhos para o Millôr. Todo o mundo só tinha olhos para o Millôr.
Qualquer assunto que se apresentasse, o Millôr matava no peito e chutava de voleio, no ângulo. Ele falava tão bem quanto escrevia: com gestos largos e voz baixa, chiando no s, carioquíssimo. Tinha um vício de linguagem: suas frases eram concluídas pela expressão “você entende?”. Era desnecessário. Todos já tinham entendido. E concordado. Quer dizer, nem sempre. Lembro de um dia em que ele discursava, veemente, contra a ciclovia. Era pequeno e não entendi nada. Perguntei à minha mãe, recentemente, o porquê desse ódio. Ela disse que não fazia a menor ideia. Mas era engraçado.
Vivemos tempos obscuros. Talvez Millôr tenha sido o primeiro a ver aquilo que ele chamava de “escuridão no fim do túnel”. O aumento de informação não significa uma melhor qualidade de informação. O humor ficou mais iconoclasta, graças a Deus (quer dizer, apesar d’Ele), mas não melhor. O mesmo vale pro jornalismo. Sua carteira de trabalho, que lhe atribuía, na época, sessenta anos de jornalismo, já não valeria de nada. Qualquer um é jornalista. Qualquer um é produtor de conteúdo. Isso é ótimo. Mas é perigosíssimo.
Outro dia, vi um humorista usando o Millôr pra defender o politicamente incorreto e o “humor sem limites” (esse é um dos problemas de morrer, você continua sendo usado por aí). Não sei se o Millôr concordaria com isso. Apesar de ter sofrido com a censura e as patrulhas, tanto de esquerda como de direita, Millôr era bastante responsável politicamente. “Quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos.” Acho difícil que, em seu incontável rol de piadas, encontrem-se piadas racistas, por exemplo. Não estou dizendo que é impossível. Estou dizendo que é improvável. Tampouco o vejo alegando, em sua defesa, que determinada piada “é só uma piada”. A piada é o seu material de trabalho, e não há nada de pequeno nisso. Uma piada, para o Millôr, é enorme. Trata-se de uma arma e ele sabia disso melhor que ninguém. “O humorista é um sujeito que tem importância suficiente pra ser preso mas não o bastante pra ser solto.”
Ao ler Tempo e contratempo, não se deixe enganar. Seu texto frequentemente mimetiza a linguagem da infância. Seu traço parece naïf. O próprio título é um trocadilho bobo, assinado por um alter ego pueril. Mas por trás de Emmanuel Vão Gôgo, em cada página, se esconde Millôr Fernandes, nosso humorista mais cético. Em cada verbete desta enciclopédia humorística, a roupagem ingênua esconde um olhar subversivo sobre o mundo, mas também profundamente poético. E afetivo. O olhar de Vão Gôgo é o de quem vê o mundo pela primeira vez. E gosta dele. Assim como o pequeno Nicolau, de Goscinny, Vão Gôgo é uma criança que tenta entender o mundo, maravilhado. E a gente, que achava que entendia o mundo, percebe que não tinha entendido nada.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

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