terça-feira, 15 de agosto de 2023

Seara Vermelha | 3


Tonho estava com treze anos e mal ouvira o grito de Jeronimo abandonara a companhia de Noca, a irmãzinha de sete anos. Correra para o curral, ia ajudar o avô a tirar leite. Ficava segurando o bezerrinho pela corda para que ele não se aproximasse demasiado das tetas da vaca. Depois chegaria a vez da cabra, Noca e Ernesto – o menorzinho – tomavam desse leite, Jucundina afirmava que nada melhor que leite de cabra para criar menino. Tonho gostava daquele trabalho, a vaca era a própria mansidão e por vezes ele a cavalgava, apesar dos ralhos do avô. Brincava também com o bezerrinho, imitava seus mugidos, bulia com o jumento, única das criações que tinha nome, pois se chamava Jeremias e, ao ouvir chamar-se assim, logo vinha no seu passo demorado. Com a chuva, pocas de água suja enchiam a estrada e Tonho pisava em cada uma delas, diversão melhor não podia haver. Espiava para trás, Noca era uma tola que ficava na porta da casa em companhia da gata amarela, a Marisca. Não sabia o bom que era o trabalho no curral, tirar leite, bulir com Jeremias.
Noca estava com medo. Segurava a gata contra o peito magro e sujo. Tonho lhe dissera que naquela noite, que era a da festa de Ataliba, eles iam ficar sozinhos em casa, os dois e mais o pequenininho, e que o bicho viria com certeza e comeria Noca.
Come tu também...
M'iscondo...
E saiu rindo pros lados do curral. Noca se aperta contra Marisca, sua gata, sua amiga, sua boneca, sua onica ternura na casa pobre. Seus olhos amedrontados fitam com amor a gatinha amarela e remelenta. Marisca mia ao aperto da menina e Noca conversa com ela:
Tu fica comigo... Se o bicho vier nóis bota ele pra fora...
Junto de Marisca ela não tem medo. Marisca e valente, da nas galinhas, rosna para o cachorro de tio João Pedro quando ele vem de visita, pula na cerca, até já caçou umas preás pelo campo. E um dia Marisca matou uma cobra bem na frente da casa, cobra pequena mas venenosa e naquela noite Jucundina deu-lhe um pires de leite. Marisca e valente, junto dela Noca não tem medo, não se importa de ficar sozinha. Malvadeza dos outros, irem para a festa, deixarem ela e os irmãos, os três sozinhos, quando existe o bicho que pega meninos, que os leva ninguém sabe para onde. Noca se encolhe ante a recordação, aperta mais a gata contra o peito. Marisca, incomodada com a pressão das mãos da criança, estira-se, solta-se, pula para o chão. Mia longamente para as sombras do crepúsculo e fica logo atenta a voz de Zefa que chega da cozinha nas suas imprecações. O dorso da gata se alteia como se ela visse um inimigo. Mas a pequena e suja mão de Noca a acaricia e ela se agacha para melhor receber o carinho, anda sob a mão da menina e rosna baixinho, docemente. Volta a saltar para o colo de Noca. A noite vem chegando trazida pelas sombras e Noca descobre subitamente no alto dos céus a figura do bicho. Seu corpinho raquítico treme sob o vestido de burgariana. E só em Marisca encontra consolo e coragem, alegria e ternura.
Nunca tivera uma boneca, nem mesmo uma dessas bruxas de pano que vendem na feira. Nunca tivera um brinquedo, nem mesmo um desses de madeira que os amadores fabricam. Nunca ouvira música nem assistira aos teatros de títeres, nada tivera além de Marisca. Resume para ela a boneca que viu na mão da filha de Artur, o automóvel de flandres que tanto encantara a ela e a Tonho ha casa-grande, resume o mundo inteiro, as personagens das histórias que por vezes Jucundina contava, nada mais ela tem além da sua gata.
Vai ficar sozinha essa noite com os irmãos pequenos, e Tonho disse que o bicho vira. Se Agostinho estivesse ali, Noca lhe perguntaria se era verdade. Agostinho tem uma garrucha, podia dar um tiro no bicho. Ele vem numa nuvem, bufando de raiva, ele come menino. A gata salta do colo de Noca atrás de um besouro que apareceu com o crepúsculo. A pata se agita no ar mas o besouro e mais rápido, engana Marisca. E mia zangada, o besouro está pousado na parede, fora do alcance do pulo da gata. Noca vai de mansinho, tapa o besouro com a mão, derruba-o no terreiro, Marisca salta, Noca bate palmas com as mãos, mãos magras e sujas, boca suja também mas que riso mais doce!

Jorge Amado, in Seara Vermelha

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