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Mas há também escritores cujo vocabulário e cuja abordagem à
linguagem são despojados, secos, até espartanos.
Alice
Munro escreve com a simplicidade e beleza de uma caixinha de
guardados. Tudo em seu estilo destina-se a não atrair nenhuma
atenção, a nos fazer não reparar. Mas se lemos o seu trabalho
atentamente, cada palavra nos desafia a pensar numa maneira mais
direta, menos exagerada ou ostentosa de dizer o que ela está
dizendo.
Seu
estilo é aparentemente tão fácil que apresenta outro tipo de
desafio: o de imaginar os rascunhos e revisões, os cálculos
requeridos para chegar a algo aparentemente tão impensado. Não se
trata de escrita espontânea, automática, mas, novamente, do produto
final de numerosas decisões, de palavras experimentadas, postas à
prova, eliminadas, substituídas por outras melhores – até, como
na abertura de “Dulse”, termos uma descrição compacta, completa
e penosamente sincera das complexidades de toda a vida de uma mulher,
suas circunstâncias amorosas e profissionais, seu estado
psicológico, bem como o ponto em que ela se situa ao longo do
continuum do início ao fim da vida.
No
fim do verão Lydia tomou um barco para uma ilha ao largo da costa
sul de New Brunswick, onde pernoitaria. Sobravam-lhe apenas alguns
dias antes que tivesse de estar de volta a Ontário. Trabalhava como
editora-assistente numa casa editorial em Toronto. Era também poeta,
mas não mencionava isso a menos que fosse algo que as pessoas já
soubessem. Nos últimos dezoito meses, vivera com um homem em
Kingston. Até onde sabia, isso estava terminado.
Havia
percebido alguma coisa sobre si mesma nessa viagem às Províncias
Marítimas. Era que as pessoas não estavam mais tão interessadas em
conhecê-la. Não que tivesse gerado tanto alvoroço antes, mas
houvera alguma coisa com que podia contar. Tinha quarenta e cinco
anos e estava divorciada havia nove. Seus dois filhos haviam começado
suas próprias vidas, embora ainda houvesse recuos e confusões. Ela
não tinha ficado mais gorda ou mais magra, sua aparência não se
deteriorara de nenhuma maneira alarmante, no entanto havia deixado de
ser um tipo de mulher e se tornado outro, e percebera isso nessa
viagem.
Observe
a intimidade relativa que resulta da escolha da escritora de chamar
nossa heroína pelo primeiro nome, as rápidas e hábeis pinceladas –
numa linguagem quase tão simples quanto a de jornal – com que as
questões essenciais (quem, o que e onde, mas não o porquê) são
tratadas. Lydia tem recursos para tomar um barco em algum lugar
apenas para um pernoite, mas não ócio nem liberdade suficientes
para estender suas férias além dos poucos dias que lhe restam.
Sabemos não somente de seu trabalho como editora, mas também de
suas férias, e do fato de que as pessoas à sua volta podem saber,
ou não, que ela é também uma poeta. Numa frase, somos informados
sobre sua vida sentimental e a resignação não dramática (“Até
onde sabia, isso estava terminado”) com que nossa heroína rememora
os dezoito meses vividos com um amante em quem opta por pensar não
pelo nome, mas apenas como “um homem em Kingston”.
Descobrimos
sua idade, seu estado civil; ela tem dois filhos. Quanta verbosidade
poderia ter sido desperdiçada no resumo dos “recuos e confusões”
periódicos que obstruíram os filhos crescidos de Lydia em seu
progresso rumo à maturidade. E como a última parte da passagem
teria sido menos convincente e comovente se Munro tivesse escolhido
expressar a avaliação da heroína em relação a seu efeito
misteriosamente alterado sobre os outros (“as pessoas não estavam
mais tão interessadas em conhecê-la”) em palavras mais
emocionais, mais intensas, mais pesadamente carregadas de
autocomiseração, pesar ou desapontamento.
Finalmente,
a passagem contradiz uma forma de mau conselho muitas vezes dados a
jovens escritores – a saber, que o papel do autor é mostrar, não
contar. Nem é preciso dizer que muitos grandes romancistas combinam
exposição dramática com longas seções de pura narrativa autoral,
que é, suponho, o que se quer dizer com contar. E a advertência
contra o contar leva a uma confusão que faz escritores novatos
pensarem que tudo deve ser dramatizado – não nos diga que um
personagem está feliz, mostre-nos como ele grita “viva!” e dá
pulinhos de alegria –, quando de fato a responsabilidade de mostrar
deveria ser assumida pelo uso enérgico e específico da linguagem.
Há muitas ocasiões na literatura em que contar é muito mais eficaz
que mostrar. Muito tempo teria sido desperdiçado se Alice Munro
acreditasse que não poderia começar sua história até nos ter
mostrado Lydia trabalhando como editora-assistente, escrevendo
poesia, rompendo com seu amante, lidando com os filhos,
divorciando-se, ficando mais velha, e dando todos os passos que
levaram ao momento em que a história corretamente se inicia.
[...]
Francine Prose, in Para ler como um escritor
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