quarta-feira, 30 de agosto de 2023

O que é arte? | Capítulo XIV

The Mother of God with the Infant Christ (c. 1880-1890), Viktor Vasnetsov

Eu sei que a maioria das pessoas consideradas inteligentes, e que são de fato inteligentes — capazes de compreender os mais difíceis raciocínios científicos, matemáticos e filosóficos —, muito raramente é capaz de entender uma verdade simples e óbvia, se ela for de natureza tal que exija que essas pessoas admitam que um julgamento que formaram sobre alguma coisa, às vezes com grande esforço — um julgamento do qual têm orgulho, que ensinaram a outros e com base no qual organizaram toda a sua vida —, possa estar errado. Portanto, tenho poucas esperanças de que os argumentos que estou apresentando sobre a perversão da arte e do gosto em nossa sociedade venham a ser aceitos ou mesmo seriamente discutidos. Contudo, vou apresentá-los, já que esse estudo me deu a convicção de que quase tudo que é considerado arte, a boa e total arte de nossa sociedade, não é verdadeira nem boa, nem é o total dela e nem mesmo é arte, em absoluto, mas somente uma falsificação. Essa afirmação, eu sei, é muito estranha e parece paradoxal. Porém, se reconhecemos uma vez como verdadeiro que a arte é uma atividade humana por meio da qual algumas pessoas transmitem seus sentimentos a outras, e não é a servidão da beleza, a manifestação de uma ideia, e assim por diante, tal declaração tem que ser aceita. Se for verdade que a arte é uma atividade por meio da qual um homem, tendo vivenciado um sentimento, transmite-o conscientemente a outros, devemos inevitavelmente admitir que de tudo aquilo que, entre nós, é chamado de arte das classes superiores — todos esses romances, contos, dramas, comédias, pinturas, esculturas, sinfonias, óperas, operetas, balés etc., que passam por obras de arte — haverá no máximo um em 100 mil que tenha se originado de um sentimento experimentado pelo seu autor; o restante são obras fabricadas, falsificações artísticas nas quais o empréstimo, a imitação, o efeito e o desvio substituem o contágio pelo sentimento. Pode-se provar que a proporção entre verdadeiras obras de arte e essas falsificações é de um para centenas de milhares, ou até menor, com o seguinte cálculo. Eu li em algum lugar que existem 30 mil pintores-artistas só em Paris. Deve haver o mesmo número na Inglaterra, o mesmo na Alemanha, o mesmo na Rússia, na Itália e em alguns países menores combinados. De forma que deve haver, ao todo, cerca de 120 mil pintores na Europa e a mesma quantidade de músicos e a mesma quantidade de escritores-artistas. Se essas 300 mil pessoas produzirem pelo menos três obras de arte por ano (e muitas produzem dez ou mais), a cada ano será produzido um milhão de obras de arte. Quantas houve nos últimos dez anos, e quantas em todo o período desde que a arte das classes superiores se separou da arte popular? Milhões, obviamente. E, no entanto, quem, entre os maiores conhecedores de arte, recebeu de fato uma impressão de todos esses supostos trabalhos artísticos, ou pelo menos veio a saber de sua existência? Sem falar no povo, que não tem sequer ideia dessas obras, a classe alta não deve conhecer nem mesmo um milésimo de todas elas e não se lembra daquelas que conhece. Todos esses objetos aparecem à guisa de arte, não produzem nenhuma impressão sobre ninguém, exceto às vezes uma impressão de divertimento para uma turba ociosa de ricos, e desaparecem sem traço. Replica-se a isso, normalmente, que se não fosse esse gigantesco número de tentativas malsucedidas, não haveria verdadeiras obras de arte. Mas esse raciocínio é o mesmo que se um padeiro, em resposta à reclamação de que seu pão não estava bom, dissesse que, se não fosse por uma centena de pães ruins, não haveria nenhum bem assado. É verdade que onde há ouro há também muita areia; mas isso não pode de modo algum servir de pretexto para dizer uma porção de coisas tolas com o propósito de dizer alguma coisa inteligente.
Estamos cercados de obras que são consideradas artísticas. Milhares de poemas líricos, milhares de poemas, de romances, de peças teatrais, de quadros, de composições musicais aparecem um após outro. Todos os poemas descrevem o amor, ou a natureza, ou o estado de espírito do autor, e todos observam métrica e rima. Todos os dramas e comédias são esplendidamente projetados e interpretados por atores excelentemente treinados. Todos os romances se dividem em capítulos, que descrevem o amor e contêm cenas comoventes, expondo os detalhes verdadeiros da vida. Todas as sinfonias contêm seu allegro, andante, scherzo e finale, e todas consistem em modulações e acordes e são tocadas por músicos treinados com muito refinamento. Todos os quadros, em suas molduras douradas, retratam vividamente pessoas e todos os acessórios. Mas entre essas obras de variadas espécies de arte existe uma em 100 mil que não é simplesmente um pouco melhor do que as outras, mas difere de todo o resto tal como um diamante difere de vidro. Essa única não pode ser comprada por nenhum valor, de tão preciosa que é; as outras não só não têm valor, como são até negativas, porque enganam e pervertem o gosto. E o pior é que, para um homem com senso de compreensão da arte pervertido ou atrofiado, elas são exatamente iguais.
A dificuldade de reconhecer trabalhos artísticos em nossa sociedade é aumentada também pelo fato de que, nas falsas obras, o valor superficial não só não é pior, como frequentemente é melhor do que nas obras verdadeiras. Muitas vezes a falsificação nos atinge mais do que a obra verdadeira e seu conteúdo é mais interessante. Como discriminar? Como encontrar essa única obra, que não difere na superfície de modo algum das centenas de milhares feitas deliberadamente para parecer com a verdadeira à perfeição?
Para um homem de gosto não pervertido — um trabalhador, não um morador da cidade — isso é tão fácil quanto para um animal de faro não degradado encontrar, entre milhares de pistas na floresta ou no campo, aquela de que ele precisa. Um animal encontrará sem erro o que ele necessita; assim também um homem, se suas qualidades naturais não estiverem pervertidas, escolherá sem erro, no meio de milhares de objetos, a verdadeira obra de arte de que precisa, que o contagia com o sentimento experimentado pelo artista. Mas isso não é assim para aqueles cujo gosto foi arruinado pela educação e pela própria vida. O sentido de percepção artística está atrofiado nessas pessoas, e ao avaliar trabalhos artísticos elas precisam ser guiadas pelo raciocínio e pelo exame, e isso às vezes as confunde, de forma que grande parte de nossa sociedade é totalmente incapaz de distinguir uma obra de arte da mais grosseira falsificação. Elas gastam longas horas em concertos e teatros, ouvindo as obras dos novos compositores, e consideram seu dever ler os romances novos dos famosos romancistas e ver os quadros que mostram ou algo incompreensível ou sempre as mesmas coisas de novo — coisas que veem muito melhor na realidade; e, acima de tudo, consideram uma obrigação admirar tudo isso, fazendo de conta que são todas obras de arte, e passam pelas verdadeiras obras de arte não somente sem lhes prestar atenção, mas até mesmo com desprezo, simplesmente porque elas não são contadas como arte em seu círculo.
Um dia desses eu voltava para casa, de uma caminhada, deprimido. Quando me aproximava de casa, ouvi o canto de um grande círculo de mulheres camponesas. Elas estavam saudando e homenageando minha filha, que se casara e tinha vindo para uma visita. Essa cantoria, com brados e batidas sobre os alfanjes, expressava um sentimento tão explícito de regozijo, alegria e energia que sem perceber fiquei contagiado por ele e me aproximei de casa mais alegre, entrando bem animado e contente. Descobri que todos da casa, que tinham ouvido esse canto, também estavam animados. Naquela mesma noite, um músico excelente, famoso por sua interpretação de peças clássicas, especialmente de Beethoven, veio nos visitar e tocou a sonata “Opus 101”, de Beethoven.
Acho necessário observar, para aqueles que queiram justificar minha opinião sobre essa sonata dizendo que nada entendo dela, que sou muito suscetível à música e entendo tudo o que os outros entendem nessa sonata, assim como em outras obras do último período de Beethoven, e da mesma maneira que eles. Por muito tempo me preparei para admirar essas improvisações sem forma que constituem as obras do último período de Beethoven, mas no momento em que comecei a tratar o assunto da arte com seriedade e comparei a impressão que elas me deixam com a impressão musical agradável, clara e forte produzida, por exemplo, pelas melodias de Bach (suas árias), Haydn, Mozart, Chopin — que não são deturpadas por complicações e adornos — ou as do próprio Beethoven em seu primeiro período e, acima de tudo, com as impressões recebidas das canções folclóricas italianas, norueguesas e russas, das czardas húngaras e outras assim tão simples, claras e fortes, aquela certa animação vaga e quase mórbida tirada das obras do último período de Beethoven, e que eu invocava artificialmente em mim mesmo, foi imediatamente destruída.
Quando a apresentação terminou, todos os presentes, embora fosse óbvio que estivessem todos entediados, elogiaram ansiosamente a obra profunda de Beethoven como se fosse uma obrigação, não esquecendo de mencionar que não haviam entendido esse período tardio antes, mas agora viam que ele era o melhor. Porém, quando comparei a impressão causada pelo canto das camponesas, que fora vivenciada por todos os presentes, com a impressão daquela sonata, os amantes de Beethoven apenas sorriram com desdém, considerando desnecessário replicar a uma conversa tão estranha.
E, no entanto, a canção das mulheres era arte verdadeira, que transmitia um sentimento preciso e forte, enquanto a sonata 101 de Beethoven era apenas uma tentativa malsucedida de arte, que não continha nenhum sentimento definido e, portanto, não contagiava ninguém com coisa alguma.
Para o meu trabalho sobre a arte, passei este inverno lendo, com diligência e grande esforço, os famosos romances e contos de Zola, Bourget, Huysmans e Kipling, que são elogiados em toda a Europa. E, nesse meio-tempo, deparei-me em uma revista infantil com uma história de um escritor totalmente desconhecido sobre os preparativos de Páscoa pela família de uma pobre viúva. O enredo é o seguinte: a mãe, tendo obtido com dificuldade um pouco de farinha branca, colocou-a sobre a mesa para ser sovada e foi em busca de fermento, pedindo às crianças que não saíssem de casa e tomassem conta da farinha. A mãe saiu e os filhos do vizinho vieram correndo até a janela, gritando para as crianças da casa que saíssem para brincar. As crianças, esquecendo a ordem da mãe, correm para fora e começam a brincar. Ela volta para casa com o fermento e encontra uma galinha em cima da mesa, atirando para o chão de terra o que ainda havia de farinha, para que seus pintinhos a catassem.
Desesperada, dá uma bronca nos filhos. As crianças choram. A mãe fica com pena deles, mas já não há farinha branca, e então, para alegrar as crianças, decide fazer um kulich de farinha de centeio peneirada, glaçá-lo com clara de ovo e colocar ovos em torno. “Pão de centeio eu adoro, sou franco; ele é o avô do pão branco”, recita a mãe para os filhos, a fim de consolá-los por não terem um kulich feito de farinha branca. E as crianças num instante vão do desespero a um feliz enlevo; cada uma repete o provérbio e espera o kulich com a maior alegria.
E o que tem isso? A leitura dos romances e contos de Zola, Bourget, Huysmans, Kipling e outros, com os assuntos mais provocantes, não me tocou nem por um momento. Antes, eu me sentia irritado com os autores o tempo inteiro, tal como você fica irritado com alguém que o considera tão ingênuo que nem ao menos esconde o método pelo qual quer apanhar você. Desde as primeiras linhas, vê a intenção por trás do texto e todos os detalhes se tornam supérfluos — você fica entediado. Acima de tudo, sabe que o autor nunca teve sentimento algum, exceto o desejo de escrever um conto ou um romance. E, portanto, não resulta disso nenhuma impressão artística. Porém, eu não conseguia me desprender da história do autor desconhecido, que falava das crianças e dos pintinhos, porque fiquei imediatamente contagiado pelo sentimento que ele obviamente tinha vivenciado e transmitido.
Na Rússia, temos o pintor Vasnetsov. Ele pintou os ícones da catedral de Kiev. Todos o louvam como fundador de algum tipo de arte cristã de gênero sofisticado. Ele trabalhou nesses ícones durante décadas e recebeu dezenas de milhares de rublos. Todos esses ícones são más imitações de imitações de imitações e não contêm um traço de sentimento. E o mesmo Vasnetsov desenhou uma ilustração para o conto de Turguênev “A codorniz” (que fala sobre um pai que matou uma codorniz na presença de seu filho e então se arrependeu disso), retratando o menino dormindo, com o lábio superior saliente, e, acima dele, como num sonho, a codorniz. E essa ilustração é uma verdadeira obra de arte.
Na academia inglesa, duas pinturas aparecem lado a lado. Uma é de J.C. Delmas e retrata a tentação de santo Antônio. Ele está de joelhos, rezando. Atrás dele está uma mulher nua e alguns animais. Pode-se ver que o artista gostou muitíssimo da mulher nua, mas não deu a menor atenção a Antônio, e que a tentação não só não o amedronta (ao artista), como é, ao contrário, muito agradável a ele. E, portanto, se existe arte nesse quadro, é muito ruim e falsa. No mesmo catálogo há, ao lado desse, um pequeno quadro de Langley,[99] mostrando um garoto mendigo que aparentemente foi convidado a entrar por uma mulher que se compadece dele. O menino, enfiando os pés nus pateticamente sob o banco, está comendo; a mulher o está olhando, provavelmente perguntando-se se ele quer mais; e uma menina de seus sete anos, com a cabeça apoiada na mão, está observando com atenção e seriedade, sem tirar os olhos do menino faminto, obviamente percebendo pela primeira vez o que é a pobreza, o que é a desigualdade entre as pessoas, e, pela primeira vez, fazendo-se a pergunta: por que ela tem tudo, enquanto esse garoto está descalço e com fome? Ela sente ao mesmo tempo pena e alegria. E ela ama o garoto e o bem... Sente-se que o artista amava essa garota e o que ela amava. E esse quadro de um pintor que, acredito, é pouco conhecido é uma bela e verdadeira obra de arte.
Lembro-me de ter visto o desempenho de Rossi em Hamlet,[100] peça em que a tragédia em si e o ator que faz o papel principal são considerados pelos nossos críticos a última palavra em arte dramática. E no entanto experimentei, durante todo o tempo da apresentação, tanto pelo conteúdo da peça quanto pelo desempenho, aquele sofrimento especial causado por falsos simulacros de obras artísticas. Li também, recentemente, uma descrição do teatro de um povo selvagem, os voguls. Uma das pessoas que estavam presentes descreve a seguinte apresentação: um vogul alto e um baixo, ambos vestidos com pele de rena, representam uma rena e seu filhote. Um terceiro representa um caçador com um arco e calçados de andar na neve. Um quarto imita o canto de um passarinho, avisando a rena do perigo. O drama consiste na perseguição que o caçador faz à rena e ao filhote, seguindo-lhes os rastros. Os animais correm para fora da cena e voltam correndo. A apresentação se dá em uma pequena tenda circular. O caçador chega cada vez mais perto de sua presa. O filhote está exausto e se gruda à mãe, que para a fim de descansar. O caçador os alcança e faz pontaria. Nesse momento, o passarinho pia, avisando a rena do perigo; os animais fogem. Novamente a perseguição, novamente o caçador se aproxima, alcança-os e lança a sua flecha. A flecha atinge o filhote. Incapaz de correr, o filhote se encosta na mãe, e esta lambe seu ferimento.
O caçador coloca outra seta no arco. Os espectadores, segundo a descrição do narrador, estão imóveis como pedras; podem-se ouvir fundos suspiros e até mesmo choro. E eu sinto, somente por essa descrição, que essa é uma verdadeira obra de arte.
O que estou dizendo será tomado como um paradoxo louco, com o qual alguém só pode se espantar, mas não posso deixar de dizer o que penso: a saber, que as pessoas do nosso círculo, algumas das quais escrevem versos, contos, romances, sinfonias, óperas e sonatas, pintam vários tipos de quadro e fazem esculturas, enquanto outras ouvem e olham essas coisas e outras, ainda, avaliam e criticam isso tudo, discutem, denunciam, triunfam, erigem monumentos umas às outras, e assim fizeram no curso de várias gerações; que todas essas pessoas — artistas, público e críticos —, com pouquíssimas exceções, nunca experimentaram — salvo na infância e na juventude, antes que ouvissem qualquer explicação sobre arte — aquele sentimento singelo, conhecido do homem mais simples e mesmo das crianças, de ser contagiado pelos sentimentos de outrem, algo que faz com que nos alegremos com a alegria do outro, soframos com seu sofrimento e misturemos nossa alma à dele, e que constitui a essência da arte; e que portanto essas pessoas não conseguem distinguir a arte verdadeira das falsificações e sempre confundem o que há de pior e mais falso com arte genuína, sem notar a genuína porque as falsificações são sempre mais chamativas, enquanto a arte verdadeira é modesta.

Leon Tolstói, in O que é arte?

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